Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11816/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/12/2015
Relator:ANTÓNIO VASCONCELOS
Descritores:ACÇÃO DE OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE PORTUGUESA
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA.
ÓNUS DA PROVA
LIGAÇÃO EFECTIVA DO INTERESSADO À COMUNIDADE NACIONAL
Sumário:I – A acção destinada à declaração da inexistência da ligação à comunidade portuguesa deve ser qualificada como acção de simples apreciação negativa, pelo que, atento o disposto no art. 343º nº 1 do Cód. Civil compete ao Réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.

II – Para que o cidadão estrangeiro adquira a nacionalidade portuguesa não basta a prova do casamento com cidadão português há mais de 3 anos (art.3º da Lei da Nacionalidade) e a declaração da vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa, sendo, conforme art.9º, al. a), daquela Lei, indispensável a existência duma ligação efectiva do interessado à comunidade nacional, que lhe incumbe provar, como estabelecido no art. 56º nº 2 do Regulamento respectivo.

III – Essa ligação tem sido aferida em função de factores como a residência ou uma residência em território nacional, o uso da língua portuguesa nas diferentes relações sociais, e os interesses económicos, sociais e culturais que exprimam objectivamente uma intensa, relevante, ligação à comunidade nacional.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência , na Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo , do Tribunal Central Administrativo Sul:



O MINISTÉRIO PÚBLICO inconformado com a sentença do TAC de Lisboa, de 23 de Julho de 2014, que julgou improcedente por não provada a acção de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa por si instaurada e consequentemente ordenou o prosseguimento do processo conducente ao registo da nacionalidade por parte de Aurélio ……………………, pendente na Conservatória dos Registos Centrais, dela recorreu e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões:

“ 1. A presente acção corresponde a uma acção declarativa de simples apreciação negativa;

2. Neste tipo de acções cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, atento o disposto no artº 343º, nº 1 CC;

3. In casu caber-lhe-ia demonstrar a sua efectiva ligação à comunidade nacional;

4. Facto que configura um dos pressupostos do direito que, junto da CRCentrais, declarou pretender exercer – a aquisição da nacionalidade portuguesa;

5. Não tendo apresentado contestação, como não apresentou, o réu não alegou os factos concretizadores daquele pressuposto do direito que se arroga, nem o mesmo resulta demonstrado a partir dos factos documentados no processo e dados como provados;

6. A vivência comum entre cônjuges de diferentes nacionalidades pode implicar uma reciproca interiorização e influência das respectivas culturas, valores e referências;

7. A intensidade e sentido em que essa influência se concretiza carece de alegação factual e de prova;

8. Não existem, nos autos, factos que permitam inferir judicialmente a ligação efectiva do réu à comunidade portuguesa como decorrência da sua vivência conjugal com cidadã portuguesa;

9. A actual redacção do artº 9º, alínea a) Lei 37/81 não contém, implícita ou explicitamente, qualquer posição do legislador quanto à distribuição do ónus da prova do correspondente facto;

10. O ónus da demonstração de tal facto será determinado com recurso às regras da prova previstas nos artºs 341º a 348º do Código Civil, máxime ao artº 343º, nº 1 atenta a específica natureza da acção em causa;

11. Ao julgar improcedente a acção por o Ministério Público não ter provado a inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional, o Mº Juiz a quo violou a regra de distribuição do ónus da prova consagrado no artº 343º, nº 1 CC;

12. E cometeu, ainda, um erro de julgamento, face à existência de factos – cônjuge nascido no Brasil, pais de nacionalidade brasileira e residente no Brasil – que apontam no sentido oposto, ou seja, que o Réu não tem qualquer ligação relevante à cultura, referências, valores, usos e costumes portugueses.”

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Não foram apresentadas contra – alegações.

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Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência para julgamento.

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A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663º nº 6 do Código de Processo Civil.

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Tudo visto cumpre decidir.

Veio o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do TAC de Lisboa que julgou improcedente por não provada a acção de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa instaurada pelo Ministério Público e consequentemente ordenou o prosseguimento do processo conducente ao registo da nacionalidade por parte de Aurélio ……………., pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

A sentença a quo entendeu, no essencial, que, com a entrada em vigor da Lei nº 2/2006, de 17 de Abril, e do Dec. – Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro, o ónus da prova, no que concerne à inexistência da ligação efectiva à comunidade portuguesa, pertence ao Ministério Público, uma vez que é entendido como facto impeditivo. Por outro lado, da matéria de facto dada como provada, no âmbito da presente acção não resulta infirmado a inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional.

As questões primordiais a discutir no presente recurso jurisdicional são as seguintes:

1 . A questão de saber se com as alterações introduzidas pela Lei nº 2/2006, de 17 de Abril, o ónus da prova da inexistência da ligação efectiva à comunidade portuguesa independentemente da sua natureza jurídica ser constitutiva ou impeditiva, inverteu o ónus da prova cabendo ao Ministério Público fazer prova de tal requisito.

2. E, ultrapassada a questão da aplicação imediata das normas referidas, impôr-se-á necessariamente ao Tribunal ad quem , face à matéria dada como provada, ponderar se o Requerido tem ligação efectiva à comunidade portuguesa.

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1. A questão de saber se cabe ao Ministério Público o ónus da prova da inexistência da ligação efectiva à comunidade portuguesa.

Vejamos.

O art. 56º nº 2 do Dec. – Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro ( actual Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) , que corresponde ao revogado art. 22º do Dec. – Lei nº 322/82, de 12 de Agosto, prevê:
“ 2 – Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa , por efeito da vontade ou da adopção:
a) A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional;
b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela pratica de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;
c) O exercício de funções publicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.”

E o art. 57º nº 1 deste diploma, dispõe que:
“ Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas als. b) e c) do nº 2 do artigo anterior”.

Mais estabelece o nº 7 do mesmo preceito que:
“ Sempre que o conservador dos Registos Centrais ou qualquer outra entidade tiver conhecimento de factos susceptíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade, por efeito da vontade ou por adopção, deve participá-los ao Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal, remetendo-lhe todos os elementos de que dispuser”.

Da análise dos preceitos citados conclui-se que o legislador deixou de exigir que o interessado comprove a sua ligação efectiva à comunidade nacional, constituindo fundamento da oposição a “ não comprovação” dessa ligação efectiva. Ou seja, na actual lei não se faz menção a essa “ não comprovação”, mas tão só à inexistência de ligação à comunidade nacional, devendo ser feita ao Ministério Público a participação de factos susceptíveis de fundamentarem a oposição. De qualquer modo, continua o interessado a ter necessidade de “ pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional”, depreendendo-se que será a partir dessa pronúncia que o Conservador poderá aquilatar da existência/inexistência de ligação à comunidade nacional e, no caso de indícios da inexistência, comunicá-la ao Ministério Público para instauração da competente acção de oposição.
Tais considerações servem para justificar que a acção destinada à declaração da inexistência da ligação à comunidade portuguesa pode ser qualificada como uma acção de simples apreciação negativa .
A acção de simples apreciação tem por fim unicamente obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – art. 10º nº 2 e 3 al. a) do actual Cód. Proc. Civil.
Configurando-se a acção de oposição à aquisição da nacionalidade como acção de simples apreciação negativa, destinada à demonstração da inexistência de ligação à comunidade nacional, com as consequências daí advindas, face ao disposto no art. 343º nº 1 do Cód. Civil, compete ao Réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga .
De qualquer modo, pelo facto de estarmos perante uma acção que é consequência de uma pretensão, junto dos Registos Centrais, por parte do interessado, que aí manifesta a sua intenção de adquirir a nacionalidade portuguesa, também lhe cabe, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos da sua pretensão.
Ora, tendo o Ministério Público proposto a competente acção de oposição à aquisição da nacionalidade – acção de simples apreciação negativa -, onde apreciou a pronúncia feita pelo requerido sobre a existência daquela ligação e a respectiva prova documental, apresentada por este no processo que correu termos na Conservatória dos Registos Centrais, e tendo concluído que dessa mesma documentação resultava a inexistência de ligação efectiva, forçosamente teria que propôr a respectiva acção.

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2. Aqui chegados, importa apurar se da matéria factual e documental carreada para os autos resulta a pertença ou ligação efectiva à comunidade nacional .

Na verdade, o que está em causa na presente acção é a oposição à aquisição da nacionalidade por casamento com base nos fundamentos inscritos nas al. a) e b) do nº 2 do artigo 56º do Regulamento (cfr. idem art. 9º al. b) da Lei da Nacionalidade) pelo que urge, antes de mais, constatar se tais fundamentos ocorrem ou não.
Para adquirir a nacionalidade portuguesa são necessários diversos requisitos, nomeadamente a ligação efectiva à comunidade nacional, devendo verificar-se, para além de outras, uma forte e duradoura afinidade com a matriz cultural portuguesa, considerando os nacionais


portugueses como uma comunidade sócio politica e culturalmente organizada, unidos por uma história comum e língua falada.
A questão a dilucidar prende-se em saber se a circunstância de o Requerido ser casado com uma cidadã nascida no Brasil, filha de pais portugueses, que adquiriu entretanto a nacionalidade portuguesa, pode, só por si, ser tido como elemento constitutivo e determinante da sua ligação à comunidade portuguesa, pois, por força da lei, essa ligação não decorre automática e exclusivamente do facto de o Requerido ser casado com aquela.
No caso em apreço, é de relevar a existência de dois filhos nascidos no Brasil e com nacionalidade portuguesa, tendo em vista salvaguardar o principio da unidade familiar. No entanto, tal facto, desprovido de outras provas não é meio suficiente para demonstrar ligação efectiva do Requerido à comunidade nacional.
Como referimos, por outras palavras, a prova da efectiva ligação, para os efeitos previstos na al. a) do artigo 9º da Lei da Nacionalidade há-de ser feita em função de variados factores relacionados, designadamente, com o domicilio, a língua, os aspectos sociais e de amizade e até de ordem económica que abonem a ideia de um sentimento perene de pertença à comunidade portuguesa.
Ora, no caso não resultam provados factos da existência de elos persistentes que possam corporizar um sentimento de pertença à comunidade nacional, de modo a poder afirmar-se que o Requerido é já psicológica e sociologicamente português.
Na verdade, os documentos juntos apenas comprovam que o mesmo é casado com uma cidadã de nacionalidade portuguesa sem contudo ter qualquer identificação cultural e sociológica com a comunidade nacional porquanto todo o seu processo de crescimento e de maturação, com a consequente absorção de costumes referências e valores se desenvolveu no Brasil, país onde nasceu , no qual tem, obviamente, todas as referências sociais e culturais e onde sempre residiu e reside actualmente.
Aliás, as únicas referências nos autos a Portugal traduzem-se em meras deslocações turísticas ao nosso País por motivos relacionados com as raízes familiares do cônjuge e sogros.
Ora, tal como resulta dos artigos 22º e 56º nº 2 do Regulamento da Nacionalidade nas suas sucessivas redacções deve ser comprovada a ligação efectiva à comunidade nacional.
Constitui jurisprudência firme a de que:
“ Para que o cidadão estrangeiro adquira a nacionalidade portuguesa não basta a prova do casamento com cidadão português há mais de 3 anos (art.3º da Lei da Nacionalidade) e a declaração da vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa, sendo, conforme art.9º, al. a), daquela Lei, indispensável a existência duma ligação efectiva do interessado à comunidade nacional, que lhe incumbe provar, como estabelecido no art.22º do Regulamento respectivo.
Essa ligação tem sido aferida em função de factores como a residência ou uma residência em território nacional, o uso da língua portuguesa nas diferentes relações sociais, e os interesses económicos, sociais e culturais que exprimam objectivamente uma intensa, relevante, ligação à comunidade nacional. Mais desenvolvidamente:
A conclusão pela existência, ou não, de ligação efectiva ou pertença à comunidade nacional terá de resultar da ponderação dum conjunto de circunstâncias, como é o caso do domicílio, da estabilidade de fixação, da família, relevando, no caso, a nacionalidade portuguesa da mulher e dos filhos, da actividade económica ou profissional, do conhecimento da língua falada e escrita, dos usos, costumes e tradições, da história, da geografia, do convívio e integração nas comunidades de portugueses, das relações sociais, humanas, de integração cultural, da participação na vida comunitária portuguesa, designadamente em associações culturais, recreativas, desportivas, humanitárias e de apoio, isto é, de todos os aspectos familiares, sociais, económico-profissionais, culturais, e de amizade, reveladores dum sentimento de pertença à comunidade portuguesa em Portugal ou no estrangeiro, relevando para tanto todos os elementos ou factores susceptíveis de revelar a efectiva inserção do interessado na cultura e no meio social nacional que no caso concorram - ou deixem de concorrer.

A ligação efectiva à comunidade nacional exigida pelo art.9º, al.a), da Lei da Nacionalidade só se configura quando na realidade seja de considerar que o requerente já é psicológica e sociologicamente português, isto é, que realmente interiorizou os valores, costumes e cultura nacionais.
A omissão da prova desse requisito constitui fundamento válido da procedência da oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa.” – cfr. Acórdão do STJ de 6 de Julho de 2006, in Proc. nº 06B1740 www.dgsi.pt.

Esta ideia de pertença ou prova de ligação efectiva à comunidade nacional implica ainda “ uma integração na sociedade portuguesa, uma vez que só esta permite conhecê-la, partilhar dos seus valores, inteirar-se dos seus problemas, e deste modo, contribuir para a expressão da cultura e melhoria das condições de vida dos portugueses.” – cfr. Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 2004, in Proc. nº 03B3941 www.dgsi.pt.

Em face do que ficou exposto, inexiste ligação efectiva à comunidade portuguesa por parte do Requerido, pelo que é de conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e revogar a sentença recorrida com a consequente procedência da acção de oposição de aquisição da nacionalidade portuguesa interposta pelo Ministério Publico e o inerente arquivamento do processo conducente ao registo da nacionalidade do ora Recorrido pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

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Acordam, pois, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo, deste TCAS, em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e revogar a sentença recorrida com a consequente procedência da acção de oposição de aquisição da nacionalidade portuguesa interposta pelo Ministério Publico e o inerente arquivamento do processo conducente ao registo da nacionalidade do ora Recorrido pendente na Conservatória dos Registos Centrais.

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Custas pelo ora Recorrido apenas na 1ª instância.

Lisboa, 12 de Março de 2015
António Vasconcelos
Pedro Marchão Marques
Conceição Silvestre