Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1026/14.2BELRS
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:05/04/2024
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL VS JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
DECRETO-LEI Nº 74-B/2023, DE 28/08
EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR
LEI INTERPRETATIVA
LEI INOVADORA
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Decisão:
Indicações Eventuais:Vice-Presidente em substituição do Juiz Presidente
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO

I- RELATÓRIO

A Senhora Juíza do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante, TAC de Lisboa ou TACL) veio, na mesma decisão em que se declara materialmente incompetente para o conhecimento da causa, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul, ao abrigo do disposto na alínea t) do nº1 do artigo 36º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e o Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal, uma vez que ambos se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da ação administrativa que I …………………… intentou no TACL contra a C………..- Comissão ……………………. e a C ………………...


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Chegados os autos a este TCA Sul, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 112º, nº 1 do CPC; as partes nada disseram.

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Foi dada vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência dever ser atribuída ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa.

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- QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A questão colocada consiste em determinar se a competência para decidir a presente ação, que deu entrada em juízo em 5 de Maio de 2014, ou seja, antes da alteração ao artigo 44º-A do ETAF (operada pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08), em que está em causa um litígio relacionado com o exercício do poder disciplinar, cabe ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa ou ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

Para julgamento do presente conflito são relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1) Em 05/05/2014, I …………………. intentou, no TAC de Lisboa, ação administrativa contra a C………..- Comissão ……………….. (CPEE) -atualmente C………..- Comissão …………………………. - e a C ………………., com vista, entre o mais, à declaração de nulidade da Deliberação nº1082/2013, de 12/12/2013, do Grupo de Gestão da C……….. que, na sequência da medida de suspensão do exercício da profissão, aplicada no âmbito do processo disciplinar nº64/2013, nomeu um agente de execução liquidatário para promover a liquidação dos processos judiciais que se encontravam a seu cargo.[cfr. pi e 4 docs. fls.1/61- SITAF].

2) Por decisão de 24/11/2023, o Senhor Juiz do Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa, excecionou a incompetência em razão da matéria daquele Juízo Comum e determinou a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal por entender ser esse Juízo competente, aduzindo, para tanto, a seguinte fundamentação:

«(…)

A A. vem, através da presente acção administrativa especial, impugnar, prima facie, a decisão proferida pela R., nos termos da qual terá nomeado um agente de execução liquidatário, na sequência da aplicação de uma medida cautelar de suspensão preventiva de funções.

Ora, considerando que:

(a) Este Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dispõe, desde 01.09.2020, de um juízo administrativo social em funcionamento, nos termos conjugados do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13.12, e da Portaria n.º 121/2020, de 22.05;

(b) A este juízo administrativo social compete, nos termos do artigo 44.º-A, n.º 1, alínea b), subalínea ii), do ETAF, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28.08, “conhecer de todos os processos relativos a: (…) Exercício do poder disciplinar”, aí se incluindo, como tal e de forma inequívoca, o objecto dos presentes autos, por configurar um litígio que respeita ainda ao exercício do poder disciplinar da R. sobre a A.;

(c) Com as alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28.08, pretende, de acordo com o respectivo preâmbulo, “clarifica[r]-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF”, cabendo, neste desiderato, “realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar” – em linha, de resto, com o que exsuda do artigo 2.º, alínea e), da Lei n.º 34/2023, de 19.07, que, neste conspecto, concede apenas ao Governo a autorização legislativa para “Clarificar as competências dos juízos administrativos sociais nas matérias relativas a vínculos de emprego público, nomeadamente as respeitantes ao exercício do poder disciplinar e efetivação de responsabilidade civil, e dos juízos de contratos públicos, concretizando os tipos contratuais abrangidos” – significando isto, pois, que o sobredito artigo 44.º-A, n.º 1, alínea b), do ETAF é imediatamente aplicável ao caso dos autos (cf. artigo 13.º do CC), remeta os presentes autos àquele Juízo Administrativo Social deste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em obediência ao disposto no artigo 61.º do CPC. (…)».

[cfr. fls.276/277- SITAF]

3) Uma vez ali chegados, a Senhora Juíza a quem os presentes autos foram distribuídos, proferiu sentença com data de 26/01/2024, a declarar-se igualmente incompetente em razão da matéria para dirimir o litígio que lhe foi submetido, devolvendo, a competência ao Juízo Administrativo remetente (leia-se, Comum), acolhendo a fundamentação vertida na decisão proferida (naquele Juízo) no âmbito do processo nº 165/21.8BELRS, que transcreve . Da decisão em conflito extrai-se o seguinte trecho:

“(…) Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 74.º-B/2023 de 28/08 não se aplicam aos processos pendentes nos Tribunais Administrativos, mas apenas aos processos intentados após a sua entrada em vigor.

Se assim é considerando que a presente ação deu entrada em Tribunal em 05/05/2014, dúvidas inexistem que é aplicável aos presentes autos a redação do artigo 44.ºA do ETAF na versão anterior à entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 74.º-A/2023 de 28/08.

Ora, no que concerne à matéria disciplinar, o legislador decidiu, bem ou mal, alargar ex novo o âmbito da competência material do Juízo Administrativo Social, com efeitos a partir de 29 de agosto de 2023.

Não se trata, portanto, de lei interpretativa como defende o Mmº Juiz do Juízo Administrativo Comum, quando recorre, brevitatis, ao artigo 13.º do Código Civil.

De facto, nesta matéria, contrariamente ao que sucedia com a matéria em matéria previdencial, onde existia uma divergência quanto ao que é ou não é matéria previdencial, em matéria disciplinar, inexistia e inexiste qualquer querela ou dúvida interpretativa que carecesse de intervenção do legislador para que se justificasse vir interpretar o que quer que seja.

Daí que, o legislador tomou uma decisão, ex novo, e a valer para o futuro no que concerne à matéria disciplinar.

Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 44.º-A, n.º 1, alínea b) do ETAF, na redação anterior à conferida pelo Decreto-Lei n.º 74.º-B/2023, de 28/08, a competência material para a decisão dos presentes autos pertence ao Juízo Administrativo Comum deste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e não ao Juízo Administrativo Social.

(…)”

[cfr. fls.485/497- SITAF]

4) Quando os presentes autos chegaram a este Tribunal ambas as decisões judiciais tinham transitado em julgado.

[cfr. consulta ao SITAF]


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- De direito

A questão trazida a juízo é em tudo idêntica à que foi objeto da decisão deste Tribunal Superior, proferida em 19 de abril de 2024, no âmbito do processo nº1640/22.2BELRS, bem como às decisões prolatadas nos processo nºs 2462/16.5BELRS, de 22 de abril de 2024, nº165/21.8BELRS e 716/22.0BESNT, ambas de 26 de abril de 2024 (todas disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtcae.), nos quais, à semelhança do que ocorre no caso dos autos, também cabia apreciar e decidir qual o Juízo Administrativo materialmente competente para tramitar e, a final, proferir sentença numa ação administrativa relativa ao exercício do poder disciplinar instaurada em data anterior à publicação e entrada em vigor das alterações ao artigo 44º-A do ETAF, introduzidas pelo Decreto-Lei nº74-B/2023: se o Juízo Administrativo Social do TAC de Lisboa ou se o Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal.

Considerando, por um lado, que no em apreço a ação administrativa deu entrada em juízo no dia 5 de maio de 2014 e, por outro lado, que os Senhores Magistrados em conflito não apontam razões que justifiquem que nos afastemos da posição por nós assumida no processo nº1640/22.2BELRS, passamos a transcrever a decisão por nós aí proferida, na parte relevante. Aí se escreveu:

Assim:

“ (…)Nos termos do artigo 36º, nº1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135º a 139º do CPTA.

Estabelece-se no nº 1 do artigo 135º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” segue o regime da ação administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109º e segs. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

E, apesar do citado artigo 136º do CPTA manter a redação originária, acima transcrita, afigura-se-nos que a mesma não afasta a aplicação da norma do nº 1 do artigo 111º do CPC, a qual deve ser também aplicada no contencioso administrativo, com as devidas adaptações, por força do citado artigo 135º do CPTA.

Tenha-se presente que o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria – artigo 13º do CPTA.

Continuando, sob a epígrafe “Conflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

“1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.

Vejamos, então, repetindo que a questão que nos é agora trazida a juízo coloca-se por via da alteração ao artigo 44º-A, do ETAF, operada pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08, mais precisamente no que respeita à competência que é atribuída ao Juízo Administrativo Social para julgar as causas relativas ao exercício do poder disciplinar, a qual se mostra contemplada em ii), da alínea b),do nº1, do citado preceito.

De acordo com a nova redação dada à alínea b), do nº1 do artigo 44º-A, do ETAF, introduzida pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a:

i) Litígios emergentes do vínculo de emprego público, incluindo a sua formação;

ii) Exercício do poder disciplinar;

iii) Formas públicas ou privadas de previdência social;

iv) Pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial;

v) Efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas referidas nas subalíneas anteriores;

vi) Demais matérias que lhe sejam deferidas por lei” (sublinhado nosso).

Por sua vez, na redação anterior, decorrente da Lei nº114/2019, de 12/9, o artigo 44.º-A, do ETAF dispunha, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, o seguinte, no que para aqui releva:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei”.

Ou seja, à luz da redação do artigo 44º-A do ETAF, introduzida pela Lei nº114/2019, de 12/9, e no que aqui releva, apenas integravam a competência do juízo administrativo social as causas relativas ao exercício do poder disciplinar que emergissem do vínculo de trabalho em funções públicas.

Ora, o legislador de 2023 (leia-se, o Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08) incluiu - como decorre da norma supra transcrita - no âmbito da esfera de competência do juízo administrativo social, todos os litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar (em geral e não apenas os emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas).
Disso deu conta o preâmbulo do aludido diploma quando refere que “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…).”( sublinhado nosso).
Como deixámos evidenciado, a questão que aqui se coloca e que fundamenta a divergência subjacente às decisões em conflito, está em saber se a apontada alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ao citado artigo 44º-A do ETAF, tem natureza interpretativa (como defende a Senhora Juíza do Juízo Comum) ou inovatória (como defende o Senhor Juiz do Juízo Social). Dito de outro modo, importa saber se a alteração verificada é imediatamente aplicada a todos os processos relativos ao exercício do poder disciplinar, aí se incluindo os instaurados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ou se, diferentemente, apenas se aplica às ações entradas em juízo a partir de 29 de Agosto de 2023 (cfr. artigo 9º do citado diploma).
Dispõe o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (CC), que “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza”.
Comecemos por caracterizar brevemente as leis interpretativas.
Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, pode dizer-se que são de natureza interpretativa aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado. Com efeito, tem-se entendido que a “razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nº 465/19.7 YRLSB 7).
“Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tomou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a lei nova que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 14/2013 de 12/11/13.
Como ensina Batista Machado, para que uma lei nova (LN) possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora – cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1991, pp. 345-347
Ainda a propósito do conceito de lei interpretativa, ensina Santos Justo que a lei interpretativa realiza uma interpretação autêntica, querendo isto dizer que, “o legislador interpreta uma lei (LA) através duma nova lei (LN). Para que estejamos em face de uma lei interpretativa é necessário que sejam satisfeitos alguns requisitos: “1. tempo: a lei interpretativa (LN) deve ser posterior à lei interpretada (LA); 2. finalidade: a lei interpretativa deve interpretar a LA, cuja solução, que oferece, se apresenta controvertida ou incerta; 3. fonte: a lei interpretativa não deve ser hierarquicamente inferior à lei interpretada” (Cfr. A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 2012, p. 390).
Vejamos, então, se podemos afirmar o caráter interpretativo da LN [o Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, na parte em que alterou o artigo 44º-A no segmento que aqui nos ocupa – nº1, alínea b), ii)], ou seja, vejamos se a LN passa no teste que nos permitirá saber se a mesma é interpretativa.
Em primeiro lugar, importa saber se há uma declaração expressa contida no texto do diploma nesse sentido. E aqui, percorrido o texto do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, a resposta é negativa.
Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter interpretativo constante do preâmbulo do diploma. Aí, tal afirmação também não se mostra feita.
Por último, se o diploma nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto (e até em conjugação com o teor do seu preâmbulo) quando for manifesta a referência (tácita) da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Também aqui, a resposta terá que ser negativa.
É verdade, e este Tribunal não o desconsidera, que, como evidencia a Mma. Juíza do Juízo Administrativo Comum, do preâmbulo do DL nº 74-B/2023, de 28/08, consta, além do mais, a propósito da competência dos juízos administrativos sociais, a referência a “interpretações divergentes” e “clarificação”. Com efeito, aí se lê, no que para aqui interessa, o seguinte:
“Ao nível da primeira instância, e face às interpretações divergentes que se têm verificado relativamente ao âmbito da competência dos juízos administrativos sociais e dos juízos de contratos públicos, e que conduziram a diversos conflitos negativos de competência, clarifica-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.
Assim, no que toca ao juízo administrativo social, prevê-se que a respetiva competência abrange os processos relativos a litígios emergentes de qualquer tipo de vínculo de emprego público, ao invés de se circunscrever unicamente aos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas, conforme resultava da versão originária da alínea b) do n.º 1 do referido artigo 44.º-A. Da mesma forma, o conceito de «formas públicas ou privadas de proteção social», originariamente empregue na redação inicial da norma delimitadora da competência do juízo administrativo social, é agora substituído pela noção, mais restrita e mais rigorosa, de «formas públicas ou privadas de previdência social». Neste sentido, clarifica-se que o juízo administrativo social não é o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de proteção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios respeitantes a questões relacionadas com o sistema previdencial, refletindo assim, de forma mais fiel, aquela que era a intenção originária do legislador da Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro.
Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…)” (sublinhado nosso)

Ora, a leitura integral deste trecho do preâmbulo, face ao conhecimento das interpretações divergentes antes verificadas, permite-nos concluir que a clarificação do âmbito da competência do juízo administrativo social diz respeito aos litígios relativos a questões de proteção social (vide, entre outras, a Decisão do Presidente do TCA, de 01/07/22, no processo nº 196/21.8 BESNT).

No mais, e no que para aqui importa – processos relativos ao exercício do poder disciplinar - se atentarmos na asserção “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar”, somos levados a concluir que o legislador de 2023, através do DL 74-B/2023, de 28 de agosto, entendeu, inovadoramente, que o Juízo Administrativo Social era o juízo mais preparado para o julgamento de todos os litígios relativos ao exercício do poder disciplinar e não apenas ao exercício daquele poder, no âmbito de um vínculo de trabalho em funções públicas. Daí, entende-se, o legislador ter consagrado a autonomização do conhecimento dos processos relativos ao exercício do poder disciplinar.

De resto, até ao DL 74-B/2023, não cremos que tenha havido “interpretações divergentes” sobre o âmbito das competência, entre os juízos administrativos comuns e sociais, quanto aos processos relativos ao exercício do poder disciplinar, pois era pacífico, na redação do artigo 44º-A de 219, que ao juízo administrativo social só competia apreciar e decidir as causas relativas ao exercício do poder disciplinar que decorressem do vínculo de trabalho em funções públicas; todos os demais processos relativos ao exercício do poder disciplinar eram da competência do Juízo Administrativo Comum.

Diga-se, ainda, quanto à “aplicação no tempo” do DL 74-B/2023, de 28/08, que o artigo 8º de tal diploma previu expressamente a aplicação aos processos pendentes das alterações respeitantes à “alínea b) do artigo 26.º do ETAF e ao artigo 280.º do CPPT” e, bem assim, a norma revogatória contida na “alínea a) do artigo 6º” (o nº 2 do artigo 83º do Regime Geral das Infrações Tributárias).

Face a tudo quanto ficou exposto, não se vê qualquer razão para reconhecer natureza interpretativa à nova redação do artigo 44º-A, nº1, alínea b), do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, nos termos que aqui fomos chamados a apreciar, antes – isso, sim – natureza inovatória.

Resta convocar para aqui o estatuído do 5º do ETAF, nos termos do qual “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”, de conteúdo análogo ao artigo 38.º da Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário que dispõe no seu nº1 que “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.”

(…)”.

O acima transcrito, retirado da decisão por nós proferida no passado dia 19 do corrente mês, é – com as devidas adaptações concernentes à especificidade do caso concreto – inteiramente aplicável à situação de conflito que aqui nos ocupa.

Com efeito, atento o exposto e considerando que, no caso dos autos, a ação administrativa deu entrada em juízo no dia 5 de maio de 2014 (ou seja, em momento anterior à publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/8), conclui-se que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo de administrativo social do TAC de Lisboa mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal - artigo 5º do ETAF, alínea b) do nº 1 do artigo 44º-A do ETAF, na redação dada pela Lei nº 114/2019, de 12/9 e artigo 2º, alínea a) do DL nº 174/2019, de 13/12 (criação de juízos de competência especializada/ ETAF), conjugado com a alínea a) do artigo 1º da Portaria nº 121/2020, de 22/5 (Entrada em Funcionamento dos Juízos Especializados dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 04/05/24


A Vice-Presidente, em substituição do Presidente do TCA Sul

Catarina Almeida e Sousa