Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2054/22.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:LINA COSTA
Descritores:IDLG
PRESSUPOSTOS
REGISTO
NACIONALIDADE
Sumário:I - O artigo 109º do CPTA prevê os requisitos da indispensabilidade e da subsidiariedade do meio processual de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias;
II - Não basta invocar na petição a ameaça ao exercício de direitos, tipificados na CRP como fundamentais ou direitos análogos, impondo-se ao requerente que alegue e prove factos que permitam concluir pela verificação, por referência ao seu caso concreto, dos pressupostos de admissibilidade da acção de intimação prevista no referido artigo 109º.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão da Subsecção de Administrativo Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

A..., devidamente identificado como requerente nos autos da acção intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias instaurada contra o Instituto dos Registos e Notariado, I.P., inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença, proferida em 15.9.2022, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que decidiu absolver a entidade requerida da instância.
Nas respectivas alegações, o Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
«1. A douta sentença recorrida ofende o direito à tutela jurisdicional efetiva, garantido pelo artº 20º,4 da Constituição da República;
2. A jurisprudência citada nada tem a ver com o quadro desta ação.
3. O recorrente é português de origem, por força do artº 4º da Constituição da República e do artº 1º,1 al. c) da Lei da Nacionalidade;
4. O exercício dos direitos fundamentais referidos no ponto anterior e nestas alegações está a ser ofendido, de forma direta e continuada pelo não processamento da inscrição de nascimento do recorrente, sendo certo que o direito a tal integração é, outrossim, um direito fundamental do recorrente, à luz do disposto no artº 16º,1 da lei fundamental.
5. O que se pretende com esta ação é pôr termo a essa ofensa atual, permanente e continuada do direito à identidade pessoal do A..
6. A postura adotada pelo recorrido ofende também o disposto no artº 129º do CPA, que o coloca na situação de violação do dever de decidir.
7. Há uma ofensa atual, direta, contínua e frontal dos direitos fundamentais referenciados na p.i. – em especial do direito à cidadania portuguesa e do direito à identidade pessoal, garantidos pelos artº 4º e 26 da Constituição - não tendo o recorrente outro tipo de processo que lhe permita por termo, em tempo útil, à ofensa de tais direitos fundamentais.
8. Não é admissível a ofensa do direito à nacionalidade portuguesa nem por 1 minuto.
9. Nada justifica, a absolvição da instância pois que não há outro meio processual disponível para pôr termo a esta ofensa, que nem no tempo do fascismo era admissível.
10. Só o Conselho de Ministros podia decretar a perda da nacionalidade e nenhuma repartição do Estado podia indeferir um pedido de reconhecimento da nacionalidade, fundado na Lei.
11. A postura agora adotada é muito mais brutal do que a que era admitida e processada no tempo da Ditadura, sendo certo que os tribunais, como aconteceu no caso vertente, lhe dão cobertura, como se pretendessem evitar que pessoas como o recorrente exerçam o direito que lhe é garantido pela Constituição da República.
12. A decisão proferida tem como efeito direito e imediato a consolidação da ofensa atual e permanente dos direitos fundamentais do recorrente e a sua denegação durante, pelo menos, 10 ou 15 anos, que é tempo normal do curso de uma ação de condenação à prática de ato.
13. A sentença recorrida contribui, ela própria, para a instabilidade das soluções jurídicas, pois que são inúmeras as decisões em sentido contrário, juntando-se, a titulo de exemplo mais 3 sentenças proferidas em processos idênticos pelo mesmo tribunal, no mesmo sentido da que se juntou como Documento nº 1 com a p.i. (Documentos 2ii, 3iii, 4iv).
14. Para além disso, a sentença recorrida é, em si mesma, uma declaração solene de discriminação, para os efeitos da Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, que estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem;
15. A, aliás douta, sentença recorrida opera, diretamente, um efeito discriminatório do recorrente, por relação a todos os que fizeram pedidos idênticos que, nas mesmas condições, foram deferidos.
16. Foram violadas pela sentença recorrida todas as normas atrás citadas.
17. A douta sentença recorrida ofende forma direta e frontal o disposto nos artºs 4º, 16º, 18º, 20º,5 e 26 da Constituição da República, o artº 41º, 1 e 2 do Regulamento da Nacionalidade e o artº 109º do CPA.
18. Não há qualquer fundamento para a absolvição da instância.».

O Recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«I – Deve o recurso apresentado ser declarado improcedente e manter-se na ordem jurídica a sentença recorrida, porque é válida, inexistindo qualquer vício de violação da lei que lhe possa ser imputado;
II – Tudo com as demais e legais consequências».

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Notificadas as partes do parecer que antecede, o Recorrente veio reiterar pela revogação da sentença recorrida.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. o nº 2 do artigo 36º do CPTA), mas com divulgação prévia do projecto de acórdão, vem o mesmo à sessão para julgamento.

A questão suscitada pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consiste, no essencial, em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter decidido absolver o Recorrido da instância.

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«a) Em 01/02/2021, o Mandatário do requerente enviou uma mensagem de correio electrónico para a Conservatória do Registo Civil de Lisboa a remeter um pedido de atribuição da nacionalidade portuguesa, referindo juntar documentos [documento de fls. 5 do processo administrativo].

b) Em 14/04/2021, os documentos referidos em a), bem como o documento comprovativo do pagamento dos emolumentos, deram entrada na Conservatória dos Registos Centrais [documento de fls. 3 do processo administrativo].

c) Através de mensagem de correio electrónico enviada em 06/12/2021, foi dado conhecimento ao Mandatário do requerente do despacho proferido em 02/12/2021, com o seguinte teor:


[documento de fls. 41 do processo administrativo].».

Da fundamentação de direito da sentença recorrida extrai-se o seguinte:
«A necessidade de uma tutela de mérito urgente, que tem de ser aferida face às circunstâncias do caso concreto, constitui, assim, um dos pressupostos do recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, pelo que a suscitada “impropriedade do meio processual” se prende, em rigor, com o preenchimento dos referidos pressupostos.
Na presente intimação, o requerente pede a intimação da entidade requerida a proceder ao registo de nascimento atributivo da nacionalidade, sendo que fundamenta a sua pretensão, em suma, na violação do seu direito à cidadania, consagrado no artigo 26.º da Constituição, que resulta de terem sido ultrapassados os prazos para a inscrição do seu nascimento no registo civil português.
Contudo, o requerente não alega quaisquer factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito que se arroga, tendo-se limitado a alegar, para fundamentar o recurso ao processo de intimação, que “a violação reiterada e contínua de vários direitos fundamentais não só não prejudica como justifica o direito de recorrer ao processo especial de intimação”.
Ora, a natureza do direito violado pela Administração não permite, por si só, o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, cujo primeiro pressuposto é, como já referimos, a necessidade de uma decisão de mérito urgente, sendo certo que o meio normal de reacção à inércia da Administração é a acção administrativa de condenação à prática do acto devido.
Como pode ler-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 04/07/2019, proferido no Processo n.º1798/18.5BELSB, em que estava em causa uma situação idêntica à dos presentes autos, “Como bem denota a sentença recorrida, o requerente não concretiza, na sua alegação, qualquer situação da qual resulte a indispensabilidade de que a decisão de mérito seja proferida num processo urgente (e não numa acção administrativa), não dando, por conseguinte, satisfação ao ónus de alegação e de prova que lhe estava cometido, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, no sentido de demonstrar a imprescindibilidade do recurso ao presente meio processual e não ser possível em tempo útil o recurso a uma acção administrativa.
[…]
Assim, atendendo a que o requerente não alegou quaisquer factos concretos que permitam concluir que uma acção administrativa de condenação à prática do acto devido não é suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito à nacionalidade, sendo indispensável a emissão urgente de uma decisão de mérito, concluímos que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende o recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da entidade requerida.».

E o assim bem decidido é para manter.
Com efeito, o Recorrente limita-se a discordar da sentença recorrida, alegando: em termos genéricos, que a mesma ofende o direito à tutela jurisdicional efectiva; que citou jurisprudência que não se aplica; que o seu direito à inscrição do seu nascimento está a ser ofendido, de forma actual, permanente e continuada; que há violação do dever de decidir; que não há outro meio processual disponível para pôr termo a esta ofensa; a sentença é discriminatória e ofende de forma directa e frontal o disposto nos artigos 4º, 16º, 18º, 20º, nº 5 e 26º da CRP, 41º, 1 e 2 do Regulamento da Nacionalidade e 109º do CPA; e que não há qualquer fundamento para a absolvição da instância.
Mas nada do que alega/conclui em recurso permite infirmar a conclusão do juiz a quo de que, na petição, nada alegou, como é seu ónus, sobre necessidade, indispensabilidade em obter uma decisão célere e definitiva para assegurar em tempo útil o exercício do direito fundamental que considera ameaçado.
Saber se o meio processual, consagrado no artigo 109º do CPTA, é o idóneo para a satisfação da pretensão deduzida em juízo depende do caso concreto em apreciação, delimitado em função do que é alegado pelo autor.
No mesmo sentido já decidiu o STA, no acórdão de 7.4.2022, proc. nº 036/22.0BELB, conforme resulta do respectivo sumário: “I - O processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias, só podendo aquele meio ser utilizado quando o mesmo se revele indispensável para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos referidos direitos. // (…)” e da respectiva fundamentação de direito, designadamente:
“8. A questão essencial de direito que se discute na presente reclamação é, portanto, a de saber se, neste caso, se encontra ou não preenchido o requisito da indispensabilidade do meio processual, que o citado número 1 do artigo 109.º exige como condição da admissão de qualquer pedido de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Não está, por isso em causa, a questão de saber se os AA., ora Reclamantes, são ou não titulares dos direitos, liberdades e garantias que se arrogam, nem se os mesmos merecem tutela jurisdicional, mas apenas a questão de saber se é indispensável que essa tutela seja concedida através de uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Daí que não procedam as alegações de violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, quer na sua formulação constitucional, nos artigos 20.º e 268.º da CRP, quer na sua formulação legal, no artigo 7.º do CPTA, na medida em que o despacho reclamado não recusou essa tutela, mas apenas o meio processual pela qual ela vem requerida.”.
Bem como este Tribunal, designadamente, no acórdão de 6.10.2022, proc. 01749/22.2BELS, com o seguinte sumário:
«I – De acordo com o disposto no artigo 109º, nº 1 do CPTA (na redacção dada pela Lei nº 118/2019, de 17/9), “a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar”.
II – Os requisitos de que depende a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias reconduzem-se, na prática, aos seguintes critérios:
a) o juiz do processo principal (não urgente) não chegaria a tempo de ditar a justiça que a situação requeria, isto é, para protecção de um direito, liberdade ou garantia; e,
b) o juiz da causa cautelar, caso ditasse a justiça para aquela situação, teria antecipado ilegitimamente a decisão de mérito.
II – Os requisitos ou pressupostos deste meio processual diferem dos da tutela cautelar ou provisória, visto que o pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias visa proporcionar uma tutela principal, permitindo que o autor obtenha, em tempo útil e por isso com carácter de urgência, uma pronúncia definitiva sobre a relação jurídico-administrativa em questão, formando-se sobre aquela pretensão/pedido caso julgado material.
IV – Carece manifestamente de fundamento a alegação da autora de que, estando em causa uma questão relativa à aquisição da nacionalidade, tal seria suficiente para o uso da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, uma vez que o meio processual idóneo para a defesa do alegado direito da autora à aquisição da nacionalidade portuguesa é a acção administrativa, de acordo com o disposto no artigo 37º, nº 1, alínea b) do CPTA.
V – Não invocando a autora qualquer facto concreto do qual resulte que, pela circunstância da sua pretensão vir apenas a ser apreciada no âmbito da acção administrativa, ficará sem qualquer utilidade a eventual condenação dos réus que aí possa vir a ocorrer, de deferimento do pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa oportunamente formulado, bem andou a decisão recorrida ao entender que a questão para a qual era solicitada tutela não podia ser resolvida através do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, visto que não vinha invocada qualquer situação concreta de urgência a exigir uma decisão de fundo no âmbito desse processo.».
E no de 26.1.2023, proc. nº 2036/22.1BELSB, com o sumário:
I - Só é admissível o uso do processo de intimação previsto no artigo 109.º e ss. do CPTA quando esteja em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de um direito, liberdade e garantia ou de um direito fundamental de natureza análoga, cuja protecção careça da emissão urgente de uma decisão de fundo (indispensabilidade) e não se verifique uma impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar, instrumental de uma acção administrativa (subsidiariedade).
II - Não basta a mera invocação de qualquer direito fundamental por parte do requerente. Exige-se, quanto aos pressupostos processuais do presente meio de tutela “urgentíssimo”, a alegação e concretização pelo interessado dos concretos factos que sustentam a ameaça ou a lesão do direito invocado.
III - Cabia, pois, ao Recorrente (autor) explicitar de que modo carece da tutela judicial urgente ora peticionada, concretizando de que forma o seu alegado direito de cidadania se encontra afectado ou afecta outras vertentes da sua vida pessoal, social, profissional ou outra.”,
Todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Assim, não basta invocar na petição a ameaça ao exercício de direitos, tipificados na CRP como fundamentais ou direitos análogos, impondo-se ao requerente que alegue e prove factos que permitam concluir pela verificação, por referência ao seu caso concreto, dos pressupostos de admissibilidade – indispensabilidade e subsidiariedade - da acção de intimação prevista no artigo 109º do CPTA.
Ónus que o Requerente/recorrente, ao contrário do que vem alegado no recurso, não logrou cumprir, não demonstrando a pretendida urgência do uso desta acção excepcional de intimação.
Por fim, não podem proceder as alegações genéricas de violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, de ofensa ao direito à identidade e à nacionalidade, e mesmo de discriminação em razão da raça e da etnia, cor, ascendência e território de origem ou referentes ao dever de decidir, por o juiz a quo, na decisão recorrida, não ter entrado na apreciação do mérito da causa – a que todas estas questões respeitam -, mas sim absolvido o Recorrido da instância por não se verificarem os pressupostos adjectivos de admissão da acção de intimação.
Face ao que o presente recurso não pode proceder.

Não são devidas custas por os processos de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias delas estarem isentos, nos termos do disposto na alínea b) do número 2 do artigo 4º Regulamento das Custas Processuais (RCP).

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e, em consequência, manter a sentença recorrida na ordem jurídica.

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 19 de Março de 2024.


(Lina Costa – relatora)

(Marcelo Mendonça)

(Pedro Figueiredo)