Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:121/19.6BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/18/2021
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO;
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR SUMÁRIO;
AUDIÇÃO DO ARGUIDO;
DIREITO DE DEFESA.
Sumário:É nula, porque ofende o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de defesa vertidos nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da CRP, a decisão do Conselho Disciplinar que, no âmbito de procedimento disciplinar sumário, não foi precedida da faculdade de exercício pelo arguido dos direitos de audiência e defesa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. A Federação Portuguesa de Futebol, Recorrente e ora Reclamante, notificada da decisão sumária proferida em 21.01.2021, não se conformando com a mesma, vem, ao abrigo do n.º 3 do art. 652.º do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA, requerer que sobre o recurso em causa, incida acórdão.

O S... – Futebol SAD., Recorrido, respondeu à reclamação apresentada.

A decisão sumária reclamada, por remissão para a fundamentação do acórdão n.º 594/2020 do Tribunal Constitucional (1), negou provimento ao recurso e, embora com distinta fundamentação, manteve a decisão recorrida, declarando nula a deliberação da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrente, que, no âmbito do procedimento disciplinar sumário – P. 23-18/19 – condenou o Recorrido em multa no valor de € 7.650,00, pela prática da infração p. e p. pelo art. 183.º, n.ºs 1 e 2, do RD LPFP.

A decisão sumária recorrida fundamentou a sua decisão na inconstitucionalidade material do art. 214.º do RDLPFP por violação do disposto nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

1.1. A reclamação para a conferência constitui o meio adjetivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objeto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objeto do recurso no uso do direito conferido pelo art. 635.º, n.º 4, do CPC, mas não ampliar o seu objeto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do art. 636.º, n.º 1, do CPC. A reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária.

Cumpre, pois, reapreciar as questões suscitadas pela Recorrente em sede de conclusões recursais, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular proferida.

1.2. Recapitulando as conclusões apresentadas no recurso interposto para este tribunal ad quem pela Federação Portuguesa de Futebol, ora Recorrente:

«1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 23 de agosto de 2019, que julgou o processo n.º 94/2018, intentado junto do TAD.

2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral em conceder provimento à ação intentada pela ora Recorrida, anulando a sanção de multa aplicada.

3. O Tribunal a quo, apesar de entender que houve um comportamento incorreto dos adeptos da ora Recorrida, decide que não estão preenchidos todos os elementos do artigo 183.º do RD da LPFP, porquanto a causa determinante de interrupção do jogo não foi o arremesso de tochas para o terreno de jogo.

4. Tanto o relatório elaborado pela equipa de arbitragem, como o dos delegados da liga têm, como se sabe, presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).

5. O relatório do árbitro junto aos autos refere que "o jogo esteve interrompido cerca de 1 minuto e 30 segundos, entre os 11m e os 12m e 30s da primeira parte, por fumo da zona da baliza nascente e arremesso de 3 tochas para o terreno de jogo vindas da bancada atrás dessa baliza, zona onde estavam adeptos afetos ao clube B.".

6. Os esclarecimentos do árbitro referentes a este relatório dizem que "o jogo foi interrompido no espaço temporal indicado, em virtude do fumo que se encontrava naquela zona do terreno que levou a que a visibilidade nessa zona fosse reduzida e porque as 3 tochas arremessas podiam pôr em perigo a integridade física dos jogadores, a partir do momento em que as tochas foram retiradas e que o fumo praticamente na sua totalidade se dissipou retomei o jogo."

7. O relatório dos Delegados da Liga junto aos autos refere que "Aos 9 minutos e 30 segundos da primeira parte, na sequência da marcação de um golo, os adeptos do S... - Futebol SAD, identificados com camisolas, bandeiras, cachecóis e outros adereços alusivos ao clube, deflagraram na bancada nascente, que era exclusivamente ocupada por adeptos do S... — SAD, duas tochas. Por força do vento, o fumo resultante da referida deflagração, deslocou se para a área do terreno de jogo e consequência disso, aos 10 minutos e 30 segundos da primeira parte, quando o guarda-redes do S... se preparava para marcar um pontapé de baliza, o árbitro mandou que este parasse, interrompendo o jogo para que o fumo se dissipasse."

8. A conclusão a que chega o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não pode ser retirada dos relatórios nem dos esclarecimentos prestados quer pelo árbitro quer pelos delegados, ou seja, não se pode dizer que "foi, indubitavelmente, o fumo proveniente das duas tochas deflagradas na bancada ocupada pelos adeptos da Demandante" que determinou a interrupção do jogo.

9. O árbitro refere expressamente que foram as duas situações conjugadas que determinaram a interrupção do jogo. Para além disso, apenas a resolução das duas situações - quer a retirada das tochas quer a dissipação do fumo - é que determinou que se pudesse retomar o jogo.

10. Das declarações do árbitro resulta claramente que caso o fumo desaparecesse mas as tochas permanecessem no campo, o jogo não seria retomado. Daí ser causa de interrupção, sem margem para dúvidas.

11. Deste modo, os factos dados como provados no Acórdão recorrido sob as alíneas d), e) e f) devem ser alterados e deve ser dado como provado o facto "Que as tochas caídas no relvado retardaram o início do jogo, cerca de 1 minuto e 30 segundos, tempo necessário, para que fossem as mesmas retiradas do relvado e o fumo por elas provocado se dissipasse".

12. Por outro lado, verificando-se que os objetos arremessados são idóneos a colocar em perigo a integridade física de outras pessoas, e que tal arremesso determinou, justificadamente, que o árbitro interrompesse de forma não definitiva o jogo - ainda que o mesmo tenha sido retomado porque outra circunstância igualmente impeditiva da continuação do jogo que ficou resolvida em momento anterior -, conforme o mesmo disse e deixou bem claro quer no seu relatório quer nos esclarecimentos prestados, outra conclusão não se pode retirar senão que foi praticado o ilícito previsto e punido no artigo 183.º.

13. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte do Tribunal Arbitral, andou mal o Colégio de Árbitros ao decidir anular a condenação da Recorrida pela infração p. p. pelo artigo 183.º do RD da LPFP, devendo o mesmo ser revogado.»

Contra-alegou o S... – Futebol, SAD, defendendo, em suma, o não provimento do recurso.

Neste tribunal, a DMMP, não emitiu pronúncia.

Por despacho de 06.01.2021, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a desaplicação de norma, por inconstitucionalidade, ex vi art. 204.° da CRP, tendo em conta a doutrina que dimanou do acórdão Tribunal Constitucional, n.° 594/2020, de 10.11.2020, ao julgar inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito de processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do art. 214.° do RD LPFP, norma essa, aplicada que foi no caso em apreço – cfr. fls. 159, ref. SITAF.

Na sequência do que, veio a Recorrente responder - cfr. fls. 164, ref. SITAF - assim como o Recorrido - cfr. fls. 200, ref. SITAF.

Seguindo-se os ulteriores termos processuais, vem o processo agora à conferência para apreciação da reclamação deduzida, com dispensa de vistos atenta a natureza urgente do mesmo.

2. Dá-se por reproduzida, nos termos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, a decisão sobre a matéria de facto constante da decisão sumária reclamada, a qual não foi sujeita a impugnação.

3. Apreciando, temos que a Recorrente vem reclamar da decisão sumária da relatora de 21.01.2021, que decidiu pela manutenção da decisão recorrida, com fundamento na inconstitucionalidade da norma do art. 214.º do RD LPFP, que possibilita a aplicação de uma sanção disciplinar, no âmbito de processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência/defesa pelo arguido.

A decisão sumária reclamada, na sua parte relevante, é do seguinte teor:

«(…) Da desaplicação por inconstitucional, ex vi art. 204.° da CRP, tendo em conta a doutrina que dimanou do acórdão Tribunal Constitucional, n.° 594/2020, de 10.11.2020, que julgou inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do art. 214.° do RDLPFP.

O art. 214.° do RDLPFP, cuja aplicação está aqui em causa, rege, sob a epígrafe «Obrigatoriedade de audição do arguido» o seguinte:

Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.

Sobre esta questão – da constitucionalidade desta norma - pronunciou-se recentemente o Tribunal Constitucional em dois acórdãos - o acórdão n.° 594/2020 de 10.11.2020 – P. 49/2020 – referido no despacho da signatária de 06.01.2021, supra identificado e transcrito – e o acórdão n.° 742/2020 de 10.12.2020 – P. 506/2020(2) - tendo em ambos os arestos o Tribunal Constitucional decidido «a) Julgar inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.»

No mesmo sentido, aliás, já se pronunciou também este Tribunal Central Administrativo Sul em acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.° 40/19.0BCLSB, de 10.12.2019; n.º 35/19.0BCLSB, de 18.12.2019; n.º 14/20.4BCLSB, de 16.04.2020; n.º 13/20.6BCLSB, de 30.04.2020 e n.º 94/20.2BCLSB, de 10.12.2020 (3).

Concordarmos inteiramente com a apreciação da questão a que procedeu o Tribunal Constitucional, aderindo à mesma, designadamente, à que consta do citado acórdão n.° 594/2020, de 10.11.2020, e que a seguir se transcreve, na parte mais relevante para o âmbito deste recurso:

«(…) Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).

Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.

Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. (…)».

Assim, haverá que negar provimento ao recurso, manter o acórdão recorrido, embora com distinta fundamentação, e declarar a nulidade da deliberação punitiva, desaplicando, no caso em apreço, o art. 214.º do RDLPFP, em virtude deste suprimir a audiência do arguido em momento anterior ao da prolação do ato punitivo, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.s 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

Em face do que, fica prejudicado o conhecimento dos demais erros de julgamento invocados, por absoluta inutilidade face à declaração de nulidade da decisão punitiva.

III. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, manter o acórdão recorrido, embora com distinta fundamentação e declarar a nulidade da decisão disciplinar de 20.12.2018, proferida pelo Conselho de Disciplina da Recorrente.»

A decisão sumária proferida pela relatora sobre o mérito da causa é de manter integralmente, nos exatos termos da sua fundamentação, que aqui se reitera.

4. Nestes termos e face a todo o exposto, acórdão dos juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em indeferir a reclamação apresentada e em confirmar a decisão sumária da relatora.

Custas pela Reclamante.


Notifique o DMMP para os devidos efeitos.


Lisboa, 18.03.2021.


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Dora Lucas Neto

*

A relatora consigna e atesta, ao abrigo do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Mmos. Juízes Desembargadores, integrantes da formação de julgamento, Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira.

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(1) P. 49/2020, disponível em www.dgsi.pt

(2) Ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt

(3) Todos disponíveis em www.dgsi.pt, tendo a signatária sido relatora do P. 14/20, de 16.04.2020, proferido ainda antes, aliás, da primeira decisão do Tribunal Constitucional, supra identificada.