Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:60/22.3BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/21/2022
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR
TAD
AUTOINCRIMINAÇÃO
Sumário:I – Decorre da interpretação conjugada dos artigos 86.º-A do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que impende sobre o clube desportivo o dever de facultar o acesso aos registos de imagem por si captados, quando para tal solicitado pelo organizador da competição desportiva.
II - O direito à não autoincriminação, que se integra no princípio nemo tenetur se ipsum accusare, beneficia de proteção constitucional, mas não configura um direito absoluto, podendo ser objeto de restrições, conforme decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, mesmo no âmbito do processo criminal.
III - É de entender como conforme à Constituição a intimação do visado em processo sancionatório a fornecer elementos na sua posse, para efeito da respetiva instrução.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO
A Federação Portuguesa de Futebol vem Recorrer para esta Instância do Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, que julgou procedente o recurso apresentado pelo S... – F....., SAD, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 42-19/20 e Apenso 44-19/20.
O objeto do litigio resulta da aplicação da sanção de multa no valor de 8.930€, em cúmulo jurídico, pela prática, em concurso efetivo, de duas infrações disciplinares previstas e punidas pelo n.º 1 do artigo 86.º-A do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal 19/20.

Decidiu-se no Acórdão Arbitral:
“Nos termos e fundamentos supra expostos, delibera o Colégio Arbitral, por unanimidade, dar provimento ao recurso interposto pela Demandante, e em consequência, revogar o Acórdão de 28 de janeiro de 2020, proferido pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 42-19/20 e Apenso 44-19/20.”

Não se conformando com a decisão proferida pelo TAD, veio a Federação Portuguesa de Futebol Recorrer para esta instância, tendo concluído:
“1. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Colégio Arbitral no âmbito do processo de ação arbitral necessária n.º 4/2020, que declarou procedente a ação interposta pela ora Recorrida e determinou a revogação do acórdão de 28 de janeiro de 2020 proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, através do qual a Recorrida foi condenada, pela prática de duas infrações disciplinares p. e p. pelo artigo 86.º-A, n.º 1, do RD da LPFP, na sanção de multa de €8.930.
2. Em concreto, a Recorrida foi sancionada por, apesar de regulamentarmente notificada para tal, não ter habilitado a Comissão de Instrutores, no prazo de 2 dias, ou em qualquer outro, com cópias de qualquer registo de imagem e/ou som criado pelo sistema de videovigilância (vulgo CCTV) instalado no Estádio da Luz aquando da realização dos seguintes jogos: (i) Jogo n.º 12104, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S... – F....., SAD e a Clube Desportivo Nacional – Futebol, SAD, a contar para a 21.ª jornada da Liga NOS, época 2018/2019; (ii) Jogo n.º 12305, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S... – F....., SAD e a G..... – Futebol, SAD, a contar para a 23.ª jornada da Liga NOS, época 2018/2019; (iii) Jogo n.º 12704, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S... – F....., SAD e a CD T..... – Futebol, SAD, a contar para a 27.ª jornada da Liga NOS, época 2018/2019; e (iv) Jogo n.º 11002, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S... – F....., SAD e a R... – F....., Lda, a contar para a 10.ª jornada da Liga NOS, época 2019/2020.
3. A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existem vários erros graves de julgamento na interpretação e aplicação do Direito, devendo por isso ser anulada, conforme se passa a demonstrar.
4. A Recorrida, por ser promotora dos espetáculos desportivos sub judice, estava legalmente obrigada, na data dos factos, a instalar, manter em perfeitas condições e em funcionamento, um sistema de videovigilância, que permitisse o controlo visual de todo o recinto desportivo, e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas (nos termos conjugados da alínea t) do n.º 1 do artigo 35.º do RC LPFP, alínea u) do artigo 6.º do Anexo VI ao sobredito RC LPFP [Regulamento de Prevenção da Violência], bem como nos n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º Lei n.º 52/2013, de 25/07).
5. Numa perspetiva sistemática e de coerência do sistema jurídico – não só na ótica das normas supra mencionadas, entre si, mas também destas com a preservação do direito à segurança de pessoas e bens que subjaz ao n.º 1 do mesmo artigo 18.º –, afigura-se-nos que a referência a imagens gravadas ou imagens recolhidas, nas citadas normas da Lei n.º 39/2009, compreende os registos de imagem e som captados pelos sistemas de videovigilância; o mesmo valendo, como resulta óbvio, para a exegese hermenêutica do artigo 86.ºA, n.º 1, do RDLPFP.
6. Ao contrário do que entende o Tribunal a quo e, também, a Recorrida, nenhuma ilegalidade pode ser assacada aos Despachos proferidos pela Comissão e Instrutores em causa devido ao facto de alegadamente esta Comissão e o Conselho de Disciplina não terem o direito de aceder às gravações de som.
7. Ainda que assim não se entenda, o que não se concebe e alega por mero dever de patrocínio, a Recorrida sempre estaria obrigada a remeter, quando notificada para tal as imagens captadas pelo sistema de videovigilância nos jogos dos autos.
8. Sucede que a Recorrida, apesar de regulamentarmente notificada para o efeito, não habilitou a Comissão de Instrutores naquele prazo, ou em qualquer outro, com cópias de qualquer registo de imagem criados pelo sistema de videovigilância dos jogos objeto dos presentes autos, como resulta, sublinhe-se, da factualidade considerada provada, também, pelo Tribunal a quo.
9. Ora, sem necessidade de mais delongas, tanto basta para preencher o tipo objetivo pelo qual a Recorrida foi condenada, previsto e sancionado pelo artigo 86-º-A, n.º 1 do RD da LPFP.
10. Cabe sublinhar que o RD da LPFP e o RC da LPFP são aprovados em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a Recorrida, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais.
11. Em concreto, a Recorrida não se manifestou contra a aprovação das normas sub judice em sede de Assembleia Geral tendo, pelo contrário, aprovado a mesma decidindo conformar-se com ela.
12. A interpretação supre exposta do artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho (que corresponde integralmente ao artigo 18.º, n.º 7 com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 113/2019, de 11 de setembro), bem como do artigo 86.º-A, n.º 1 do RD da LPFP, não colidem com alguma norma ou princípio constitucional, que justifique a sua não aplicação no caso concreto e, consequentemente, a revogação da sanção disciplinar aplicada pela Recorrente à Recorrida.
13. O Tribunal a quo, e também a Recorrida, parecem querer transpor para o procedimento disciplinar, de um modo global, direto e sem limites, as regras e princípios que vigoram no direito processual penal, posição que, atendendo à natureza distinta dos pressupostos da respetiva responsabilidade e diversa natureza e finalidade das sanções aplicadas naqueles processos, e que, não pode deixar de repercutir-se no respetivo ordenamento adjetivo que rege um e outro campo, não acolhemos.
14. Não obstante, sempre se dirá que terá de ser feito um juízo de concordância prática entre o direito a não fornecer elementos auto-incriminatórios e os direitos e interesses de valor social e constitucional que são prosseguidos pelas citadas normas da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho e, concomitantemente, pelas citadas normas regulamentares, com destaque, desde logo, para o direito à segurança (cf. artigo 27.º da CRP). Feita essa ponderação, à luz do princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, ressalta à evidência que a ordem de grandeza do que se restringe não é superior à ordem de grandeza do que se pretende tutelar com essa restrição.
15. Ou seja, não podemos deixar de sublinhar que o direito à não autoincriminação, em qualquer caso, nunca poderá ser um direito absoluto, antes se impondo a sua harmonização em nome e na defesa de determinados valores e interesses que o Estado visa salvaguardar, observado que seja o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e constatada a existência de lei prévia que consinta essa restrição.
16. Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, o Tribunal Constitucional consente, inclusive no âmbito do processo penal, que o direito à não autoincriminação tem de ceder em determinadas circunstâncias em prol da proteção de outros direitos fundamentais ou da prossecução do interesse público, o que, por maioria de razão, pode suceder no campo da aplicação de sanções disciplinares.
17. Por todo o acima exposto, a interpretação efetuada do disposto no n.º 1 do artigo 86.º-A do RD da LPFP e no n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (que corresponde integralmente ao atual artigo 18.º, n.º 7), quando interpretada no sentido de que o Arguido ou o visado/suspeito em Procedimento Disciplinar Desportivo é obrigado a remeter à Entidade Acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo por si utilizado para os jogos disputados na qualidade de visitante por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, não é inconstitucional.
18. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado aos acórdãos do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte do Tribunal Arbitral, andou mal o Colégio de Árbitros ao decidir anular a condenação da Recorrida pela infração p. p. pelo n.º 1 do artigo 86.º-A do RD da LPFP, devendo o mesmo ser revogado.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o Tribunal Central Administrativo Sul dar provimento ao recurso e revogar o Acórdão Arbitral proferido, com as devidas consequências legais, assim se fazendo o que é de lei e de Justiça.”

O S... – F....., SAD veio apresentar as suas Contra-alegações de Recurso, onde concluiu:
“1. Não assiste qualquer razão à Recorrente
2. A Recorrente considera que o organizador da competição desportiva, seja a Recorrida, seja outro, tem o direito de exigir, no âmbito de procedimento disciplinar, dos Arguidos o acesso irrestrito – no sentido de que é o próprio organizador que estabelece os parâmetros em que a cedência vai ocorrer – ao sistema de CCTV instalado no recinto desportivo.
3. A interpretação consagrada pela Recorrente desconsidera toda a letra do artigo 18.º, nomeadamente as importantes restrições ao uso dos sistemas de CCTV no mesmo contidas.
4. A Recorrente, conforme melhor se deu conta em sede de Alegações, desconsidera, igualmente, a letra do n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho – que consagra o direito de acesso do organizador da competição desportiva aos sistemas de CCTV –, nomeadamente no que respeita à remissão operada pelo preceito em causa para o n.º 2 do mesmo artigo.
5. O organizador da competição desportiva apenas pode aceder ao sistema de CCTV dos recintos desportivos caso a conduta que pretenda investigar configure, simultaneamente, um ilícito criminal ou contraordenacional, devendo obter tais imagens das forças de segurança, da APCVD ou do Ministério Público.
6. A pré-existência de um processo contraordenacional ou criminal (decorrente da remissão para o n.º 2 do artigo 18.º) funciona, pois, como fator de limitação da intrusão nos direitos fundamentais dos Clubes e daqueles que frequentam os recintos desportivos.
7. A interpretação normativa do n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho consagrada no Aresto Recorrido viola o princípio da não autoincriminação ou princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
8. Conforme bem nota a jurisprudência constitucional citada, o acima citado preceito constitucional não é absoluto, comportando exceções.
9. Tais exceções devem ser restringidas ao máximo, operando exclusivamente nos casos em que não seja possível aceder a determinados meios de prova, salvo através da colaboração do arguido, o que, conforme bem se demonstrou em sede de Alegações, não acontece no caso vertente.
10. A Recorrente não deu cumprimento à sua obrigação de fundamentação do ato em causa, nomeadamente conformando os elementos que permitam excecionar a aplicação do RGPD. Recorde-se que apenas existe obrigação de cumprimento de atos administrativos legais, o que não é o caso, conforme melhor se detalhou em sede de alegações.
11. O organizador do espetáculo desportivo, quando solicita tais imagens, deve informar o promotor do espetáculo desportivo se as mesmas podem servir para instruir processo disciplinar contra o mesmo ou se têm por destino processo disciplinar já instaurado.
12. O promotor do espetáculo desportivo tem o direito a recusar a entrega das imagens captadas pelo seu sistema de videovigilância quanto tal ato contribua para a sua autocriminação.
13. A Recorrente tinha o direito de recusar o envio das imagens do CCTV à Comissão de Instrutores.
Nestes termos e nos mais de direito deve o Recurso interposto pela Recorrente Federação Portuguesa de Futebol ser considerado improcedente, por não provado, e, consequentemente, ser mantida a decisão Recorrida.”

O Ministério Público, já neste Tribunal, notificado em 9 de março de 2022, nada veio dizer, requerer ou Promover.

II – Objeto do recurso:
Em face das conclusões formuladas, cumpre verificar e decidir da legalidade e constitucionalidade do disposto no n.º 1 do artigo 86.º-A do RD da LPFP e n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (atual artigo 18.º, n.º 7), quando interpretada no sentido de que o Arguido ou o visado/suspeito em Procedimento Disciplinar Desportivo é obrigado a remeter à Entidade Acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo por si utilizado, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III - Fundamentação De Facto:
No acórdão recorrido, relativamente à fixação da matéria dada como provada, consta o seguinte:
“1. No dia 10.02.2019, foi disputado o jogo oficialmente identificado sob o n.º 12104, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S…. - Futebol, SAD e a Clube D…… - Futebol, SAD, a contar para a 21.iI jornada da Liga NOS, época 2018/2019;
2. No dia 25.02.2019, foi disputado o jogo oficialmente identificado sob o n.º 12305, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S..... - Futebol, SAD e a G..... - Futebol, SAD, a contar para a 23.ª jornada da Liga NOS, época 2018/2019;
3. No dia 30.03.2019, foi disputado o jogo oficialmente identificado sob o n.º 12704, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S..... - Futebol, SAD e a CO T..... - Futebol, SAD, a contar para a 27.ª jornada da Liga NOS, época 2018/2019;
4. No dia 02.11.2019, foi disputado o jogo oficialmente identificado sob o n.º 11002, no Estádio do S..... (Estádio da Luz), em Lisboa, entre a S..... - Futebol, SAD e a R..... Lda, a contar para a 10.ª jornada da Liga NOS, época 2019/2020;
5. Relativamente a factos ocorridos aquando dos jogos elencados nos factos provados 1), 2) e 3), foi instaurado o Processo de Inquérito n.º 14-18/19;
6. Relativamente a factos ocorridos aquando do jogo referido no facto provado 4, foi instaurado o Processo Disciplinar n.º 36 - 19/20;
7. No âmbito daqueles procedimentos disciplinares, por despachos, respetivamente datados de 12.04.2019 (Processo de Inquérito n.º 14-18/19) e de 03.12.2019 (Processo Disciplinar n.º 36-19/20), cujo conteúdo se dá aqui por reproduzidos, foi determinado que se procedesse à notificação da S..... - Futebol, SAD para remeter, no prazo de 2 dias, a informação aí constante;
8. A S... – F....., SAD, no âmbito do Processo de Inquérito n.º 14-18/19, apresentou, em 17 de Abril de 2019, o requerimento cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
9. Em resposta a tal requerimento, a Comissão de Instrutores proferiu despacho, cujo teor se dá aqui por reproduzido, pelo qual indefere o peticionado pela S... – F....., SAD e reitera o pedido de envio das imagens;
10. A S... – F....., SAD, ainda no âmbito do Processo de Inquérito n.º 14-18/19, apresentou novo requerimento em 30 de Abril de 2019, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
11. A S... – F....., SAD, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 36-19/20, por requerimento apresentado em 05 de Dezembro de 2019, informou a Comissão de instrutores de que não podia cumprir o determinado por esta, pelas razões aí explanadas e que aqui se dão por reproduzidas;
12. A S... – F....., SAD não habilitou a Comissão de Instrutores no prazo que lhe foi fixado, nem em qualquer outro, com cópias os registos de imagem e som pretendidos.

Vejamos
Sumariou-se no Acórdão Arbitral recorrido:
“I – No âmbito de um jogo, o promotor do espetáculo desportivo está unicamente vinculado à entrega ao organizador do espetáculo desportivo das imagens captadas pelo seu sistema de videovigilância, não lhe podendo ser exigida a entrega de imagens e som.
II – O organizador do espetáculo desportivo, quando solicita tais imagens, deve informar o promotor do espetáculo desportivo se as mesmas podem servir para instruir processo disciplinar contra o mesmo ou se têm por destino processo disciplinar já instaurado.
III – O promotor do espetáculo desportivo tem o direito a recusar a entrega das imagens captadas pelo seu sistema de videovigilância quanto tal ato contribua para a sua autocriminação.” (sic)

A presente questão não é nova neste tribunal, já se tendo sumariado no Acórdão deste TCAS nº 76/20.4BCLSB, de 26-11-2020, o seguinte:
I. Decorre da interpretação conjugada dos artigos 86.º-A do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que impende sobre o clube desportivo o dever de facultar o acesso aos registos de imagem por si captados, quando para tal solicitado pelo organizador da competição desportiva.
II. O direito à não autoincriminação, que se integra no princípio nemo tenetur se ipsum accusare, beneficia de proteção constitucional, mas não configura um direito absoluto, podendo ser objeto de restrições, conforme decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, mesmo no âmbito do processo criminal.
III. É de entender como conforme à Constituição a intimação do visado em processo sancionatório a fornecer elementos na sua posse, para efeito da respetiva instrução.

Cumpre referir, desde logo, que, de acordo com os elementos de prova disponíveis, o RD da LPFP e o RC da LPFP foram aprovados em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a SAD aqui Recorrida, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais.

A interpretação adotada no acórdão do TCAS citado relativamente ao artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação introduzida pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho (que corresponde integralmente ao artigo 18.º, n.º 7 com a redação introduzida pela Lei n.º 113/2019, de 11 de setembro), bem como do artigo 86.º-A, n.º 1 do RD da LPFP, mostram-se concordantes com a CRP, não se vislumbrando qualquer dissonância com os princípios constitucionais aplicáveis, a ponto de justificar a ratificação do sentido da decisão do TAD aqui recorrida.

Efetivamente, pretende a recorrente que seja reconhecida a constitucionalidade da interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, à luz dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

O referido artigo 86.º-A do RDLFP, sob a epígrafe “falta de colaboração com a justiça desportiva”, tem a seguinte redação:
“1. O clube que, notificado para o efeito, não habilite a Comissão de Instrutores, no prazo de dois dias úteis, com cópia das imagens capturadas pelo sistema de videovigilância do respetivo estádio, será punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 20 UC e o máximo de 100 UC.
2. O clube que, notificado para o efeito, não habilite a Comissão de Instrutores, no prazo de dois dias úteis, com cópia das imagens, em bruto, captadas pelas câmaras da produção dos jogos que sejam transmitidos por sociedade comercial por si dominada nos termos do Código dos Valores Mobiliários, será punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 20 UC e o máximo de 100 UC.
3. Em caso de reincidência em algum dos ilícitos previstos nos números anteriores, os limites mínimo e máximo da sanção neles prevista serão elevados para o dobro.”

Já a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, na redação introduzida pela Lei n.º 113/2019, de 11/09, que veio estabelecer o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, prevê no artigo 18.º, relativo ao sistema de videovigilância, o seguinte:
“1 - O promotor do espetáculo desportivo, em cujo recinto se realizem espetáculos desportivos de natureza profissional ou não profissional considerados de risco elevado, sejam nacionais ou internacionais, instala e mantém em perfeitas condições um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas, as quais visam a proteção de pessoas e bens, com observância do disposto na legislação de proteção de dados pessoais.
2 - A gravação de imagem e som, aquando da ocorrência de um espetáculo desportivo, é obrigatória, desde a abertura até ao encerramento do recinto desportivo, devendo os respetivos registos ser conservados durante 60 dias, por forma a assegurar, designadamente, a utilização dos registos para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional, prazo findo o qual são destruídos em caso de não utilização.
3 - Nos lugares objeto de videovigilância é obrigatória a afixação, em local bem visível, de um aviso que verse «Para sua proteção, este local é objeto de videovigilância com captação e gravação de imagem e som».
4 - O aviso referido no número anterior deve, igualmente, ser acompanhado de simbologia adequada e estar traduzido em, pelo menos, uma língua estrangeira, escolhida de entre as línguas oficiais do organismo internacional que regula a modalidade.
5 - O sistema de videovigilância previsto nos números anteriores pode, nos mesmos termos, ser utilizado por elementos das forças de segurança.
6 - O organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares e no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, devendo, sem prejuízo da aplicação do n.º 2, assegurar-se das condições de reserva dos registos obtidos.”

Como claramente decorre do transcrito artigo, os registos em questão podem ser utilizados em três campos distintos, a saber, no processo penal, no processo contraordenacional e no processo disciplinar.

Da conjugação entre o n.º 6 deste artigo 18.º e aquele artigo 86.º-A claramente se retira que impende sobre o clube o dever de facultar o acesso aos registos de imagem, quando para tal solicitado pelo organizador da competição desportiva, no presente caso, a entidade recorrida.

Desta interpretação dos normativos discorda a recorrida, por entender que é violadora dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, invocando o seu direito à não autoincriminação.

Aquele artigo 18.º, n.º 2, consagra que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Por outro lado, o artigo 32.º, n.º 10, torna extensivas as garantias do processo criminal, no que respeita aos direitos de audiência e defesa, aos processos de contraordenação, bem como aos demais processos sancionatórios.

O invocado direito à não autoincriminação integra-se no brocardo de origem latina nemo tenetur se ipsum accusare, sendo comummente aceite enquanto expressão do direito de defesa do arguido e como tal beneficiando de proteção constitucional (cf., por todos, Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 201, pág. 125), significando, designadamente, que o arguido não será obrigado a produzir prova contra si próprio, contribuindo para a sua incriminação.

Aduz ainda a recorrida que o artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, remete para o respetivo n.º 2, implicando que o organizador da competição desportiva apenas pode aceder ao sistema de CCTV dos recintos desportivos caso a conduta que pretenda investigar configure, simultaneamente, um ilícito criminal ou contraordenacional, devendo obter tais imagens das forças de segurança, da APCVD ou do Ministério Público.

Tal interpretação não procede, desde logo por fazer tábua rasa do primeiro dos referidos normativos legais.

Estão evidentemente em causa dimensões distintas.
Conforme previsto no n.º 2, os registos de imagem e som podem ser utilizados para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional.

Conforme previsto no n.º 6, os registos de imagem podem ser utilizados para efeitos exclusivamente disciplinares pelo organizador da competição desportiva, no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais.

E não se vislumbra na interpretação que se vem de explicitar a violação de qualquer parâmetro constitucional, como se verá.

O direito à não autoincriminação encontra consagração constitucional, como já assinalado, mas não configura um direito absoluto, podendo ser objeto de restrições, conforme decorre do já citado artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Veja-se, por exemplo, a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade (cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 817/12.

Mais releva para o caso vertente não ser indiferente falar em garantias do processo criminal, por um lado, ou do processo contraordenacional ou disciplinar, por outro.

Como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 201/2014, “o dever, que impende sobre o Estado, de emitir normas de proteção de bens jusfundamentais não pode sacrificar os princípios da culpa ou da necessidade e subsidiariedade das penas, peso próprio que estes últimos encontram num sistema constitucional fundado na dignidade da pessoa (…). Diversamente se passarão as coisas no domínio contraordenacional, precisamente por aí valerem com “menos rigor” ou com “menos intensidade” os princípios que integram as normas da Constituição com relevo penal”.

E o Tribunal Constitucional tem-se orientado no sentido de ser conforme à Constituição a intimação do visado a fornecer elementos na sua posse, para efeito de instrução de processo sancionatório.
No acórdão n.º 461/11, relativamente à utilização em processo contraordenacional de elementos recolhidos pela Autoridade da Concorrência nas suas atividades de fiscalização e supervisão, entendeu-se estarmos perante uma restrição admissível do princípio da não autoincriminação, valorando na sua argumentação especialmente a circunstância de estarmos perante a possibilidade de aplicação de meras sanções contraordenacionais.

No acórdão n.º 360/2016, julgou-se não inconstitucional a interpretação normativa retirada dos artigos 116.° e 120.° do RGICSF, 361.° do CVM, 41.° e 54.° do RGCO, e 126.° e 261.° do CPP, com o sentido de, “após notícia do ilícito, os reguladores poderem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, podendo essa documentação assim obtida, ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros”.

Neste sentido igualmente se pronunciam Figueiredo Dias, Costa Andrade e Costa Pinto, relativamente a documentos recolhidos pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, posteriormente utilizados como prova em processo contraordenacional, movido pela mesma entidade (Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, 2009, págs. 39 ss).

Regressando ao caso vertente, já se viu que o n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, permite a utilização dos registos de imagem e som para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional, sendo que o n.º 6, permite a utilização dos registos de imagem para efeitos exclusivamente disciplinares pelo organizador da competição desportiva.

O referido, conjuga-se adequadamente com a norma prevista no artigo 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido de, em processo disciplinar desportivo, o visado ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo.

Trata-se, pois, de restrição ao direito à autoincriminação que respeita os parâmetros constitucionais, como decorre da jurisprudência e doutrina citadas.

Carece assim de sentido o entendimento, de acordo com o qual, sempre haveria necessidade de existir previamente um processo criminal e/ou contraordenacional, o que carece do mínimo apoio literal, e equivaleria ao esvaziamento de conteúdo do citado artigo 18.º, n.º 6.

Em conclusão, mostra-se conforme à Constituição a interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por não contender com o plasmado nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da CRP.

Assim, sem necessidade de acrescida argumentação, entende-se ser de revogar o Recorrido Acórdão Arbitral, proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, em face do facto de se não reconhecer que a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF mereça a censura que lhe foi imputada.

IV - Decisão
Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão Recorrido do TAD, mantendo-se na ordem jurídica o Acórdão proferido em 28 de janeiro de 2020 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 42-19/20 e Apenso 44-19/20.

Custas pela SAD.

Lisboa, 21 de abril de 2022
Frederico de Frias Macedo Branco

Alda Nunes

Lina Costa