Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12259/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/25/2015
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PROVA PERICIAL; OBJECTO DA PERÍCIA
Sumário:i) A prova pericial “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devem ser objecto de inspecção judicial” (art. 388.º do C. Civil).

ii) Compete ao juiz da causa verificar se a perícia não é impertinente por não respeitar aos factos da causa, nem dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

Jorge ………………………… (Recorrente) interpôs recurso jurisdicional do despacho da Mma. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que, no âmbito da acção comum, com forma ordinária, proposta contra o Estado Português (Recorrido), indeferiu a prova pericial por si requerida.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões (por nós renumeradas):

1- Por requerimento apresentado em 21.06.2013, veio o Autor requerer a produção de prova através de perícia ao estado mental e emocional do Autor, com vista à prova do quesito 24 da base instrutória relativo aos danos morais sofridos ( 24 - o Autor sofreu angustias, desanimo, desespero, ansiedade e frustração pela ineficácia do sistema judicial na defesa dos seus interesses?).

2- Na verdade, o petitório do Autor consiste no seguinte:

«Nestes termos e nos mais de direito deve a presente acção ser considerada procedente por provada e, consequentemente, ser o Estado Português condenado ao pagamento de uma indemnização, nos termos do disposto na Lei 6712007 de 31 de Dezembro, por todos os danos resultantes do exerclcio da função administrava e jurisdicional, sofridos pelo Autor no valor de € 318.153,31 (trezentos e dezoito mil cento e cinquenta e três euros e trinta e um cêntimos) designadamente:

a) Lucros cessantes no valor de € 270.000,00 (duzentos e setenta mil euros), e

b) Danos emergentes no valor de 8. 153,31 (oito mil cento e cinquenta e três euros e trinta e um cêntimos); e

c) Danos não patrimoniais no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros),

Em virtude da prática dos seguintes actos:

a) Rescisão contratual com fundamentos em factos prescritos e ilícitos não averiguados por parte do Conselho de Ministros;

b) Recusa na investigação e averiguação dos factos indiciadores da prática de crimes por parte da

c) Demora na tramitação dos processos que motivou a prescrição dos factos por parte dos serviços do Ministério Público da Comarca e Loulé;

d) Não exercício do poder de direcção referente ao inquérito n.º 1040194 por parte do Procurador do Ministério Público da Comarca e Loulé;

e) Notificação tardia aos Autos de insolvência da S……….. quanto ao arquivamento dos procedimentos criminais, nomeadamente após 14 anos desde a data do Despacho de Arquivamento, por parte do Procurador do Ministério Público da Comarca de Loulé;

Por violação das normas contidas nos artigos 20.º, 22.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 137.º do Decreto-Lei 422/89 de 2 de Dezembro, artigo 304.º no n.º 1 do CC, artigos 15.º, 42.º, 43.º e 44.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro (RJIFNA), artigo 4.º n.º 1 alínea a) do DL 184/88 de 25 de Maio, artigos 48.º e 53.º do Código de Processo Penal.»

3- Com efeito, por se tratarem de factos que não são susceptíveis de prova testemunhal nem documental porquanto, o Autor vive sozinho, sem grandes relações sociais com terceiros que possam testemunhar a ocorrência de tais danos, não lhe restou outra alternativa senão requerer ao douto Tribunal perícia médico legal.

4- Por despacho de fls. 552 a 555, veio o douto Tribunal a quo indeferir a realização da perícia médica por carecida de fundamento.

5- Alegou ainda que «sempre teria a perícia médico legal requerida ser pedida ao Gabinete Médico Legal e não poderia o Tribunal nomear perito, como requerido e sempre seriam devidos preparos, para a sua efectivação. Ao que acresce que o quesito em causa pode ser provado nos autos, é indeferida por carecida de fundamento.»

6- A rejeição de meio de prova, sendo este o único à disposição do Autor, é clara e inequivocamente violação do direito de acesso à justiça e uma privação do direito à prova.

7- Dispõe o artigo 467 .º do NCPC que:

«1- A perícia, requerida por qualquer das partes ou determinada oficiosamente pelo juiz , é requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizada por um único perito, nomeado pelo juiz de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

2- As partes são ouvidas sobre a nomeação do perito, podendo sugerir quem deve realizar a diligência; havendo acordo das partes sobre a identidade do perito a designar, deve o juiz nomeá-lo, salvo se fundadamente tiver razões para pôr em causa a sua idoneidade ou competência.

3- As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta.

4- As restantes perícias podem ser realizadas por entidade contratada pelo estabelecimento, laboratório ou serviço oficial, desde que não tenha qualquer interesse em relação ao objeto da causa nem ligação com as partes.»

8- O que significa que ao contrário do entendimento do douto Tribunal a quo, não competia ao Autor requerer a realização da perícia directamente ao Gabinete Médico Legal mas sim ao Tribunal que, por despacho, o requisita directamente.

9- Acresce que, para prova dos danos morais sofridos pelo Autor o único meio de prova existente para a descoberta da verdade material é a perícia médico legal ao estado emocional e físico do Autor, porquanto a prova testemunhal e documental é inexistente.

10- Admitir-se a rejeição da realização da prova pericial com vista à prova do quesito 24.º da base instrutória é sentenciar o Autor ver o seu pedido de condenação ao pagamento da quantia de € 40.000,00 por danos morais sofridos ser julgado improcedente por falta de prova.

11- O mesmo é dizer que a negação da justiça!

Face ao supra exposto, requer-se a V. Exa. que seja o presente recurso julgado procedente e, consequentemente, seja admitida a realização de perícia médico-legal, nos termos da regulamentação aplicável, ao estado emocional e físico do Autor para prova do quesito 24.º da base instrutória, devendo ser o presente recurso instruído com peças processuais seguintes: petição inicial, contestação, despacho saneador, requerimento datado de 21.06.2014 e despacho de fls. 552 a 555.



O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo concluído do seguinte modo:

4.1. O Autor requereu a realização de um exame pericial médico-legal não porque os factos a esclarecer exijam especiais conhecimento de medicina forense, mas porque não dispõe de outra prova relativamente aos factos quesitados no número 24) da base instrutória;

4.2. A prova pericial médico-legal justifica-se quando o conhecimento de factos exija especiais conhecimentos de medicina forense, nomeadamente a existência de patologias do foro psicológico e sua relação com um evento danoso - artigo 388.º do Código Civil;

4.3. Em consequência, e porque os factos quesitados no referido número 24) se resumem a factos pessoais do Autor – "dores de alma", portanto danos morais – a prova pericial médico­ legal afigura-se injustificada e inadmissível -artigo 388.º do Código Civil;

4.4. Ainda que se admita a justificação da realização da prova pericial em causa, ao seu requerente, o aqui AUTOR, incumbia o ónus processual de delimitar o objecto da perícia e as questões de facto que pretendia ver esclarecidas -artigo 475.º do Código de Processo Civil;

4.5. Tal ónus processual adquire foros de maior relevância quando os factos que constituem a causa de pedir remontam aos anos de 1993 e 1994 em diante, e onde se pretende ver no funcionamento da Administração e da Justiça factos ilícitos geradores dos alegados danos morais;

4.6. Tal ónus não cumpriu o Autor, limitando-se a requer uma perícia médico-legal, para prova do numero 24) da base instrutória, omissão esta que não pode de forma alguma ser suplantada pelo tribunal, implicando a sua rejeição -artigo 475.º,n.º 1 do CPC.



Com dispensa dos vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter indeferido a realização da perícia médica em causa nos autos, por ser esta carecida de fundamento.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Embora não venha autonomizada no despacho recorrido a matéria de facto considerada provada, do mesmo retira-se que a Mma. Juiz do TAC de Lisboa deu como assente o seguinte facto único:

A) É do seguinte teor o quesito formulado: «24) O Autor sofreu angústias, desânimo, desespero, ansiedade e frustração pela ineficácia do sistema judicial na defesa dos seus interesses?»



II.2. De direito

Vem questionada no recurso a decisão da Mma. Juiz do TAC de Lisboa que indeferiu a realização de perícia médico-legal requerida pelo ora Recorrente, a qual tinha como objecto o facto 24.º da instrutória (v. supra). Considerou o Tribunal a quo que, ao que aqui importa, que “o quesito em causa pode ser provado pela prova testemunhal, apresentada// Em face do exposto, a realização da perícia médica em causa nos autos, é indeferida, por carecida de fundamento”.

Diverge o Recorrente dessa conclusão, sustentando, em síntese, por se tratarem de factos que não são susceptíveis de prova testemunhal nem documental porquanto, o Autor vive sozinho, sem grandes relações sociais com terceiros que possam testemunhar a ocorrência de tais danos, não lhe restou outra alternativa senão requerer ao douto Tribunal perícia médico legal.

Vejamos então, da admissibilidade da perícia pretendida.

Sobre o âmbito e objecto da prova pericial escreveu-se no acórdão deste TCAS de 20.11.2014, proc. n.º 11160/14, o seguinte:

Consigna a lei no tocante à prova pericial que esta “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devem ser objecto de inspecção judicial.” – Código Civil, artº 388º.

O que significa, como esclarece a doutrina especializada, que este meio de prova “(..) Tem, assim, uma dupla finalidade – fornecer ao tribunal a percepção dos factos susceptíveis de apreensão por qualquer dos sentidos – maxime a apreensão ocular – e a sua apreciação, ou tão só a sua apreciação à luz das regras da experiência; - portanto prova posta ao serviço da utilização destas regras. (..) diversamente do anterior direito … passou a poder limitar-se tão só à apreciação dos factos quando de ordem a exigir conhecimentos especiais que os julgadores não possuam(...)"(1)

Diz impressivamente Alberto dos Reis que “(..) o juiz é técnico do direito … há-de desembrulhar-se pelos seus próprios meios (..)”; a função do perito é de habilitar o juiz a apreciar o facto, sendo exactamente por isso que o traço diferencial da perícia face às demais provas pessoais, maxime, a prova por testemunhas, reside em que “(..) a declaração do perito é consequência de actos processuais que ele realiza previamente … O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem. (..)”[Alberto dos Reis, Código de Processo Civil – anotado, Vol. IV, Coimbra Editora/1962, págs. 181, 168 a 171].

Neste quadro é uma evidência que o âmbito da prova pericial apenas se define no processo em concreto, através do elenco de factos articulados seja pelo requerente seja pela parte contrária (577º/2, hoje 475º/2), por sua vez levados ao questionário ou base instrutória (artº 511º nº 1) e, no regime adjectivo cível vigente, enunciados nos temas da prova (artºs. 410º e 596º).

Sendo os meios probatórios uma incumbência das partes, a lei coloca a cargo do requerente o ónus de circunscrever o objecto da perícia mediante indicação dos quesitos (577º/1), hoje, questões de facto (475º/1).

Por fim, em via de estabilidade instrutória, compete ao juiz da causa verificar se a perícia “não é impertinente nem dilatória”(578º/1 actual 476º/1), “(..) impertinente por não respeitar aos factos da causa, ou dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388 CC). Sendo a diligência impertinente ou dilatória, o juiz indefere-a, sendo o despacho recorrível nos termos gerais.

Trata-se da aplicação à prova pericial da norma geral consagrada no artº 265-1 (ver também o artº 513º). Já assim dispunha o anterior artº 572-2, em redacção que transitara, da revisão de 1967, do artº 581-1 originário que, por sua vez, tinha recebido o preceito do artº 585 do CPC de 1939. (..)” [Lebre de Freitas, Código de Processo Civil – anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora/2008, págs.537/538].

A prova pericial terá lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos probandos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo assim, efectuada por pessoas dotadas desses especiais conhecimentos. A finalidade da perícia é a percepção desses factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível pelo julgador, através da formulação de um juízo técnico e científico (inerente à prova pericial). Em todos os casos, como ensina Lebre de Freitas, “entre a fonte de prova (pessoa ou coisa) e o juiz interpõe-se a figura do perito, intermediário necessário em virtude dos seus conhecimentos técnicos: apreendendo ou apreciando factos, por serem necessários conhecimentos especiais (…)” (cfr. ob. cit., p. 490).

Posto isto, temos que o objecto da perícia pretendida, de tipo médico-legal, incide sobre a seguinte questão fáctica: “O Autor sofreu angústias, desânimo, desespero, ansiedade e frustração pela ineficácia do sistema judicial na defesa dos seus interesses?

Ora, lido este quesito, devidamente enquadrado na causa de pedir vertida na p.i., verifica-se que o Autor, ora Recorrente, pretende provar factos que são, no fundo e essencialmente, factos pessoais – nas palavras do Recorrido, “moléstias psicológicas” e “dores de alma” – com recurso a um meio de prova que está claramente reservado para factos cujo apuramento exige especiais conhecimentos técnicos ou científicos, o que não é o caso. Efectivamente, como já se disse, as provas periciais podem e devem ser ordenadas pelo tribunal apenas e quando os factos a apurar exijam, para a boa decisão da causa, conhecimentos especiais que os julgadores não possuam (artigo 388.º do Código Civil).

E como proficuamente alegado pelo Recorrido, no caso da perícia médico-legal, os factos a conhecer são relativos ao corpo e mente humana, a exigir portanto conhecimento específicos de medicina forense, sendo exame típicos os de autópsia médico legal, os de avaliação de dano corporal (incluindo sexual) e os de avaliação no âmbito da psiquiatria e psicologia forenses, estes tipicamente relacionados com a personalidade da pessoa, sua imputabilidade ou grau de perigosidade e avaliação do tipo de personalidade.

Por outro lado, evidencia o próprio requerimento probatório em questão, o que é reiterado expressamente no presente recurso, que o Autor, ora Recorrente, requer afinal a realização de uma prova pericial médico-legal, não porque estejam quesitados factos a carecer de especiais conhecimentos de medicina forense, mas antes porque não dispõe de meio de prova, designadamente testemunhal, para comprovar os danos morais que alega. Porém, a prova pericial, considerando o seu âmbito e objectivos, não serve nem tem como função colmatar o eventual deficit de prova (ónus de alegação e de prova). Sendo que o Autor indicou testemunhas (duas) na sequência de notificação para efeitos do disposto nos então artigos 511.º e 512.º do CPC (cfr. req. probatório), o que foi admitido pelo despacho de 26.03.2012, tendo posteriormente requerido o aditamento ao rol de mais uma testemunha, também deferido.

Assim, haverá que concluir-se como no Tribunal a quo que a realização da perícia, face à concreta questão factual sobre a qual haveria aquela de incidir, a qual não consubstancia qualquer quesitação técnica especial, é impertinente. Razões pelas quais, improcedem as conclusões de recurso, tendo o despacho recorrido, que indeferiu a realização da perícia médico-legal requerida para prova do quesito 24.º da base instrutória, que ser confirmado.



III. Conclusões

Sumariando:

i) A prova pericial “tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devem ser objecto de inspecção judicial” (art. 388.º do C. Civil).

ii) Compete ao juiz da causa verificar se a perícia não é impertinente por não respeitar aos factos da causa, nem dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.

Lisboa, 25 de Junho de 2015

Pedro Marchão Marques

Maria Helena Canelas

António Vasconcelos