Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:8606/15.7BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:VITAL LOPES
Descritores:IVA;
FACTURAS FICTÍCIAS;
ÓNUS DE PROVA.
Sumário:1. Não tendo a AT recolhido, no exercício da sua actividade inspectiva, indícios sérios, credíveis e consistentes de que as facturas contabilizadas de determinados emitentes não representam reais e efectivas operações económicas, não cumpriu o ónus de prova sobre os pressupostos legitimadores das correcções assentes na desconsideração, para efeitos de dedutibilidade, do IVA mencionado nessas facturas, nos termos do n.º3 do art.º19.º do CIVA;

2. Em tal situação, a questão termina logo aí, nenhum ónus se impondo ao impugnante e Recorrente de fazer a prova de que adquiriu os bens descritos nas referidas facturas e que os mesmos lhe foram fornecidos pelos respectivos emitentes.

3. A circunstância de elevados montantes visando o pagamento de facturas terem sido levantados ao balcão da entidade bancária é um indício ponderoso, para mais se articulado com outros recolhidos pela AT, de que as facturas não titulam reais e efectivas transacções económicas entre os sujeitos passivos envolvidos.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO


S... – C..., Lda., recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado e respectivos juros compensatórios, referenciados aos anos de 1995 e 1996, no valor total de 496.269,88 Euros.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
«
«Imagem no original»



».

Contra-alegações, não foram apresentadas.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se o julgado.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, são estas as questões centrais que importa apreciar: (i) se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão da prescrição da dívida; (ii) se ocorre nulidade processual por falta de notificação à impugnante da junção aos autos dos anexos ao relatório de inspecção tributária; (iii) se a sentença incorreu em erro de julgamento, de facto e de direito, ao concluir que a AT recolheu indícios bastantes de que as facturas desconsideradas para efeitos de dedução do IVA não traduzem reais e efectivas operações.
***


III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«

«Imagem no original»

«Imagem no original»

Ao abrigo do disposto no art.º 662/1 do CPC, adita-se ao probatório o seguinte facto, documentalmente provado como se indica:
D)

Consta a fls. 398 dos autos, informação executiva de 23/01/2009 de que consta, nomeadamente e, entre o mais, o seguinte: “a dívida impugnada não se encontra paga”; “foi instaurado processo de execução fiscal em 15/05/2000, com o n.º 1457200001...”; “a citação foi efectuada em 22/05/2000”; “em 16/01/2001 foi efectuada penhora do bem imóvel da executada, ao qual foi atribuído valor superior ao calculado para efeitos de garantia nos termos do artigo 199.º do CPPT”; “o processo executivo encontra-se suspenso desde 16/01/2001, a aguardar decisão no processo de impugnação n.º 58/2000, nos termos do artigo 169.º do CPPT”.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A recorrente começa por imputar à sentença nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão da prescrição da dívida.

As nulidades da sentença estão taxativamente previstas no art.º 615/1 do CPC e, em especial, no processo tributário, no art.º 125/1 do CPPT, nelas se incluindo “a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer”.

Prende-se esta nulidade com o disposto no art.º 608/2 do CPC, que dispõe: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

De facto, compulsados os autos, constata-se que a sentença impugnada se trata de nova sentença, tendo a anterior sido anulada por acórdão do TCA por deficit instrutório na apreciação da prescrição.

A sentença impugnada, porém, não tratou da prescrição, pese embora constem dos autos diligências instrutórias feitas no seguimento do acórdão anulatório.

Nessa medida, a sentença está inquinada de nulidade por omissão de pronúncia pelo que importará agora ao tribunal de recurso conhecer da omitida questão da prescrição da dívida impugnada – art.º 665/1 do CPC.

Ora, como aditamos ao probatório (ponto D), consta de fls.398 informação executiva no sentido de que em 16/01/2001 foi efectuada penhora de bem imóvel da executada, ao qual foi atribuído valor superior ao calculado para efeitos de garantia nos termos do art.º 199.º do CPPT e que o PEF se encontra suspenso desde aquela data de 16/01/2001 a aguardar a decisão no processo de impugnação 58/2000, nos termos do art.º 169.ºdo CPPT.

Pois bem, encontrando-se a dívida impugnada garantida por penhora, tal determina a suspensão da execução e, consequentemente, do prazo de prescrição (art.º 49/4, alínea b) da LGT), até à decisão final do processo de impugnação, período durante o qual a prescrição “não começa nem corre” (art.º 318.º do Cód. Civil).

Assim, estando em causa dívidas de IVA de 1995 e 1996 e tendo a impugnação sido autuada em 30/03/2000 (cf. carimbo de entrada da Repartição de Finanças, aposto a fls.2), constituindo o primeiro facto com virtualidade interruptiva à luz de qualquer dos regimes de prescrição potencialmente aplicáveis (cf. artigos 34.º do CPT e 49.º da LGT), sendo que logo em 16/01/2001 foi efectuada a penhora, manifesto é que a dívida não se encontra prescrita.

Nem venha a recorrente esgrimir com razões de constitucionalidade. Na verdade, a suspensão da execução fiscal ou da eficácia do acto de liquidação por virtude de impugnação judicial quando acompanhada ou seguida da constituição ou prestação de garantia idónea, da autorização da sua dispensa, ou da penhora de bens que garantam o pagamento integral da quantia exequenda e do acrescido, é encarada pela doutrina e jurisprudência, como um direito do contribuinte que se enquadra no âmbito do princípio da efectividade da tutela judicial, que encontra consagração nos artigos 20.º, n.º1 e 268.º, n.º 4 da CRP e art.º 9.º da LGT, mitigando a aplicação rigorosa do princípio do “solve et repete”.

Julga-se, por conseguinte, não verificada a prescrição da dívida impugnada.

Alega depois a recorrente que não foi notificada da junção aos autos dos 17 anexos ao relatório de inspecção tributária.

Compulsados os autos, não encontramos, de facto, qualquer notificação à impugnante dos documentos juntos pela parte contrária. Tal omissão constitui nulidade processual por violação do princípio do contraditório, estruturante do processo (art.º 3/3, do CPC).

O regime das nulidades processuais relativas está contemplado no art.º 195.º do CPC, com o prazo de arguição previsto no art.º 199.º (anterior 205.º) do mesmo compêndio, que estabelece:

«1 - Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
2 - Arguida ou notada a irregularidade durante a prática de ato a que o juiz presida, deve este tomar as providências necessárias para que a lei seja cumprida.
3 – (…)».

Pois bem, mostram os autos que a ora recorrente foi notificada do despacho que, a seu pedido, ordenou à Fazenda Pública a junção aos autos dos 17 anexos ao RIT (cf. fls. 192, 202 e 204 dos autos).

Posteriormente, a impugnante/recorrente praticou vários actos no processo, tendo sido notificada para alegações do art.º 120.º do CPPT, em 30/10/2013, peça que apresentou (fls.555).

Dispunha à época aquele art.º 120.º do CPPT: «Finda a produção da prova, ordenar-se-á a notificação dos interessados para alegarem por escrito no prazo fixado pelo juiz, que não será superior a 30 dias».

Ora, quando foi notificada para alegações (i.e., terminada a discussão de facto e de direito), a impugnante só podia prognosticar uma de duas coisas: ou os elementos probatórios diligenciados pelo tribunal não tinham sido juntos pela parte contrária com prejuízo da sua defesa, ou, os mesmos estavam nos autos sem o seu conhecimento, dúvida que sempre imporia a conduta diligente da consulta do processo com vista ao seu esclarecimento, o que não fez, não sendo agora, em alegações de recurso, oportuna a arguida nulidade processual à luz do disposto no art.º 199/1 do CPC, que assim improcede.

Outrossim, invoca a recorrente que não foi dada pronúncia sobre a prova pericial requerida, nem sobre elementos probatórios que juntou ao processo.

Desde logo convém assentar que a falta de pronúncia que a lei sanciona com a nulidade é a falta de pronúncia sobre questões e não a falta de realização de diligências instrutórias ou de falta de avaliação de provas que poderiam ter sido apreciadas – neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, “CPPT – Anotado”, 4.ª ed. 2003, a pág. 566.

Como também refere o mesmo autor, relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão (art.º 596.º, do CPC).

Se se pretende colocar a questão como consubstanciando preterição do inquisitório e da oficiosidade (art.º 13.º do CPPT), ou deficit instrutório, então importaria que a recorrente concretizasse que factos pertinentes se colheriam das diligências de provas omitidas ou dos documentos pretensamente não examinados e deveriam ser aportados ao probatório ou imporiam decisão de facto diversa da proferida.

De resto, note-se, se a recorrente pretendia impugnar a decisão relativa à matéria de facto, não o fez eficazmente, isto é, com observância do ónus imposto no art.º 640.º do CPC, que dispõe no segmento relevante:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – (…)»

Como assim, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Tal significa que é com o probatório da sentença (a que se aditou o ponto D.), que temos de prosseguir na apreciação das demais questões do recurso.

Mostram os autos que em visita de fiscalização se apurou um conjunto de facturas relativamente às quais fora deduzido pela impugnante o IVA nelas mencionado, que a AT considerou não terem subjacente quaisquer operações económicas.

Dispõe o n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, que «não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente».

Como tem sido realçado, reiterada e uniformemente, pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente por este Tribunal Central Administrativo, quando a Administração tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do art.º74.º da LGT, competindo à Administração fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade. Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção – vd., entre muitos outros, os acórdãos do STA, de 20/11/2002, proc.º 01483/02 e do TCA Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.

Assim sendo, importa analisar se a Administração tributária fez a prova que lhe competia da verificação de indícios que permitem concluir que às facturas contabilizadas pela Impugnante, ora Recorrente, não subjazem as operações que, alegadamente, teriam implicado a respectiva emissão.

Tenha-se em conta, como também é aceite, que não é imperioso que a Administração efectue uma prova directa da simulação. Como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indirecta, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o acórdão do TCAN, de 26/04/12 (processo nº 00964/06.0 BEPRT).

Ou seja, a Administração Tributária não tem que demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo (Acórdão do STA de 27/10/04, Processo 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade – artigos 78.º do CPT e 75º da LGT.

Os indícios são definidos por João de Castro Mendes como aqueles factos que “permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos, em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência” - citado por Saldanha Sanches, “A Quantificação da Obrigação Tributária”, 2ª edição, pág. 311.

Nesta tarefa e como é salientado no Acórdão do TCA Norte de 28/02/2013, proferido no proc.º00383/08.4BEBRG, poderá a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado, revelando-se, até, a fiscalização cruzada, um procedimento crucial no combate à fraude e evasão fiscais.

Vertendo aos autos os considerandos doutrinais e jurisprudenciais expostos, constata-se que as facturas desconsideradas para efeitos de dedução do IVA nelas mencionado respeitam a um conjunto de emitentes. No entanto, a validação dos indicadores de falsidade deve ser referenciada à relação concreta de cada um dos emitentes com o utilizador das facturas, no caso, a impugnante.

Relativamente ao fornecedor “R...” refere a AT a emissão de facturas documentando transacções formalizadas em nome da “A... – Soc. Comercial de Bebidas, Lda.”, titular de um entreposto fiscal, que tinham por destinatário efectivo a impugnante, para assim poder receber bebidas alcoólicas em regime de suspensão.

Ora, na situação descrita, a operação fictícia foi a que se estabeleceu entre o emitente da factura e o utilizador A..., embora visando a cobertura de uma operação real e efectiva (mas não titulada) do emitente com a impugnante, S....

Esta operação apenas indirectamente poderá valer como indicador de utilização por parte da impugnante de facturas falsas, na medida em que se a operação económica real não é titulada por factura do fornecedor emitida em nome da impugnante, esta, com grande probabilidade, recorrerá à facturação de terceiros emitentes (para efeitos dedutibilidade), cujos títulos não têm subjacente qualquer operação económica com o utilizador.

Relativamente ao emitente “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, refere a AT a existência de duas facturas, n.ºs 262 e 297, emitidas à impugnante, S... e por esta não contabilizadas, bem como diversos pagamentos de facturas deste fornecedor feitos pela S... através de cheques, “tendo sido alguns deles levantados ao balcão do banco sacado” procedimento nada habitual em termos comerciais atendendo às importâncias elevadas em questão, acrescenta. Mais adiante, refere declarações do sócio-gerente da “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, destacando-se esta passagem: “procedeu ao levantamento de cheques emitidos à “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, entregando as respectivas quantias a V... (da sociedade A..., Lda.) e a P... (da sociedade P..., Lda.) que posteriormente as entregavam à Soc. S..., o que vem de encontro com a relação apresentada anteriormente entre facturas e cheques levantados ao balcão”.

Ora, com estes elementos não vemos por que razão haveriam de ser desconsideradas pela AT todas as facturas contabilizadas deste emitente, mesmo aquelas que o utilizador (a impugnante) pagou através de cheque passado ao emitente e foram depositados em instituições bancárias, por conseguinte, não levantados ao balcão.

Ou seja, os indicadores de falsidade enunciados, não se prestam à desconsideração da generalidade das facturas contabilizadas deste emitente.

Na verdade, nunca é referido pela AT que a “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, emitente de que agora tratamos, não desenvolvia qualquer actividade ou não dispunha de meios compatíveis com a realização das operações facturadas, apenas é dito que se encontrava em situação fiscal irregular. Nessa medida, não se pode descartar a possibilidade de a sociedade emitente facturar efectivas e reais operações, designadamente, na relação estabelecida com a impugnante, a par de outras sem qualquer relação subjacente e porventura destinadas à cobertura de operações reais de não emitentes.

Concluímos, portanto, que apenas sobre as facturas deste emitente cujo pagamento foi efectuado pela impugnante através de cheque “levantado ao balcão” e cujo valor alegadamente era depois devolvido à impugnante (conforme declarações do sócio-gerente da emitente, H...), recaem indícios credíveis de falsidade, sabendo-se que o circuito do dinheiro é um indicador bastante representativo da realidade ou mera aparência das operações facturadas.

Relativamente ao emitente “A... – S..., Lda.”, são apontadas pela AT diversas irregularidades de ordem declarativa e contabilística. No entanto, na relação estabelecida com a impugnante é unicamente referida a emissão da factura n.º 435, de Novembro/96 paga através de dois cheques da impugnante depositados em conta bancária de instituição cuja identificação à AT não foi possível.

Nada mais é assinalado de relevante. Apenas que no local indicado como sede funciona outra empresa, encontrando-se devoluto o último armazém e instalações da firma A.... No entanto, não vem clarificado se a realidade constatada e relatada pré-existia à data da única factura que emitiu à impugnante (nov./96), o que era decisivo para validação do indício.

Quanto à factura contabilizada deste emitente, não descortinamos indícios bastantes para a não aceitação da sua dedutibilidade fiscal.

Quanto ao emitente L..., é referido pela AT um conjunto de irregularidades de ordem contabilística e fiscal (não possui livro de existências nem qualquer documento de suporte que justifique os valores das existências constantes das declarações mod.2, relativamente aos exercícios de 1994 a 1996) e anomalias na relação deste emitente com os respectivos fornecedores (ou só há recibos e não facturas, ou só há facturas e não há recibos). No entanto, na relação com clientes e, nomeadamente, com a impugnante S..., nada é referido, tendo as operações facturadas sido pagas por cheque à ordem do emitente e depositados em instituição bancária.

Também neste caso, não descortinamos indícios sérios e seguros de que as operações facturadas não tenham subjacente a materialidade que reflectem.

Quanto ao emitente “S… – C… S.C., Lda.”, apenas são relatadas irregularidades relativas ao sujeito passivo emitente (incumprimento de obrigações declarativas; emissão de facturas de que consta uma morada diversa da da sede…). No entanto, expressamente se diz nada ter sido apurado de conclusivo quanto à capacidade da empresa para prestar os serviços facturados à impugnante, os quais, salienta-se, foram pagos através de cheques passados à ordem da sociedade emitente das facturas e depositados em conta bancária. Ou seja, nada é referido como indício de falsidade reportado à concreta relação comercial estabelecida com a impugnante.

Também no caso deste emitente não vemos indícios ponderosos de operações fictícias, susceptíveis de comprometer a presumida fiabilidade da declaração, contabilidade e escrita dos contribuintes.

Por último, no que concerne ao emitente “P... – Distribuição Alimentar, S.A.”, para além das irregularidades de ordem declarativa e na própria emissão das facturas (não mencionam o local de carga e descarga da mercadoria…), é ainda referido que “a morada constante nas facturas diverge da indicada como sede…” e que em visita de fiscalização se constatou que a firma não existia no local indicado como sede. Todavia, se outra era a morada constante das facturas, a verdade é que nada foi averiguado que permita concluir que a empresa emitente não funcionava (i.e., dispunha de estabelecimento ou instalações), na morada indicada nas facturas, sendo que a menção na factura de uma morada diversa da sede do emitente (art.º 35/5 alínea a) do CIVA), porventura correspondente ao local onde tem instalações ou estabelecimento mais conhecido, não inquinava o exercício do direito à dedução por parte do beneficiário, na interpretação da própria AT – vd. ofício-circulado n.º 11 909, de 29 janeiro de 1990, dos Serviços do IVA.

Quanto à falta de menção, na factura, dos locais de carga e descarga da mercadoria, à luz do que à época dispunha o art.º 35/5 do CIVA, tal não constitui qualquer falta de requisitos a inquinar a credibilidade do título para efeitos de dedução, tratando-se embora de elemento a constar obrigatoriamente dos documentos de transporte (v.g., guias de remessa), sobre cuja existência e conteúdo nada se diz (vd. D.L. 45/89, de 11 de Fevereiro, art.º 3.º, n.ºs 4 e 5).

Tendo em conta que é referido que também neste caso o pagamento da factura se fez através de cheque da impugnante passado à ordem do emitente e depositado em instituição de crédito, não subsistem indícios sólidos e credíveis de falsidade da factura emitida.

Não ignoramos que nas designadas fraudes em cadeia, uma simples análise isolada das operações comerciais apenas revelará a aparência de que tudo está correcto na conduta fiscal das empresas, mas a verdade é que nada é relatado de concreto e assertivo que permita surpreender o envolvimento da impugnante no esquema da pretensa fraude, o que careceria de melhor averiguação e fundamentação por parte da fiscalização tributária.

Rematando, contrariamente ao decidido pela Administração tributária e sancionado pela sentença, concluímos que não foram recolhidos indícios sérios e credíveis de que as transacções tituladas pelos sujeitos passivos “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, cujo pagamento se fez por cheque depositado em conta bancária, “A..., Lda.”, L..., “S... – Comércio e Distribuição, Lda.” e “P..., S.A.” não consubstanciem reais e efectivas operações, o que significa que em relação às transacções em causa a AT não cumpriu os pressupostos legitimadores da sua actuação correctiva, que se mostra inquinada de erro nos pressupostos, incorrendo em erro de julgamento a sentença na medida em que sancionou a correcção dessas transacções.

No que em particular respeita às transacções tituladas pelo sujeito passivo “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, cujo pagamento se fez através de cheque levantado ao balcão e cujo valor o gerente da emitente diz ter retornado à posse da impugnante, aqui recorrente, concluímos haver indícios globalmente seguros e credíveis que suportem a correcção em causa, sendo certo que não descortinamos no probatório explicação factual, que à impugnante cabia dar, capaz de permitir infirmar os indícios apontados e nos levar a concluir pela realidade das operações facturadas e pagas através de cheque levantado ao balcão.

Tudo visto, é de conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que validou as correcções das transacções com os sujeitos passivos “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, cujo pagamento se fez por cheque depositado em conta bancária, “A..., Lda.”, L..., “S... – Comércio e Distribuição, Lda.” e “P..., S.A.”, mantendo-a quanto ao demais, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que validou as correcções das transacções com os sujeitos passivos “Sociedade Vinícola T..., Lda.”, cujo pagamento se fez por cheque depositado em conta bancária, “A..., Lda.”, L..., “S... – Comércio e Distribuição, Lda.” e “P..., S.A.”, mantendo-a quanto às restantes correcções.

Custas na proporção do decaimento, sendo que a Fazenda Pública está legalmente isenta.


Lisboa, 30 de Setembro de 2021

[O Relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes–Desembargadores integrantes da formação de julgamento, Luísa Soares e MÁRIO REBELO].


Vital Lopes