Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 231/19.0BESNT |
| Secção: | CA |
| Data do Acordão: | 06/18/2020 |
| Relator: | PAULO PEREIRA GOUVEIA |
| Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO; RJUE; APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO; COMPORTAMENTO PERMANENTE. |
| Sumário: | I - De acordo com o artigo 3º/1 do RGCO, a punição da contra-ordenação, rectius, do comportamento humano, é determinada pela lei vigente (também) no momento do preenchimento dos pressupostos de que depende.
II - Daqui se conclui que, havendo um comportamento permanente que, entretanto, passou a ser punido com coima, i.e., que passou a ser proibido, é aplicável a esse comportamento o novo tipo punitivo. III - E por isso o ato administrativo punitivo aqui impugnado perante o Tribunal Administrativo de Círculo não violou o princípio da legalidade punitiva, nem na vertente da proibição da retroatividade das normas punitivas; precisamente porque o comportamento duradouro existente, antes permitido, passou a ser proibido num contexto legal e temporal novo em que há presença (i) dessa conduta e (ii) da vontade “nova” do agente da nova infração. IV - Esta voluntariedade num comportamento permanente, quando entrou em vigor o RJUE, é ponto essencial para se considerar que tal comportamento duradouro voluntário presente está abrangido pelo novo tipo legal contraordenacional “ocupação de edifício sem autorização de utilização” (artigo 98º/1-d) do RJUE). |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL
I – RELATÓRIO L................................., NIF…………., residente na Travessa…………, vivenda 1, Almornos, Almargem do Bispo, Sintra, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra processo de impugnação judicial de ato administrativo aplicativo de coima prevista no RJUE contra MUNICÍPIO DE SINTRA. A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte: - Anulação da decisão da autoridade administrativa de 2018 do Município de Cascais que a condenou em coima e custas, nos termos do artigo 58º do RGCO, por violação do artigo 4º-5(1), contraordenação prevista e punida pelo artigo 98º-1-d)(2) -4(3) do RJUE, na redação dada pelo DL nº 26/2010, de 30/03. Por sentença, o tribunal a quo decidiu - Julgar improcedente a acusação, e, consequentemente, absolver a arguida L................................. da contra-ordenação por que foi acusada. * Inconformado, o M.P. interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte quadro conclusivo: 1. O Ministério Público vem interpor recurso da “decisão-despacho” proferida nos presentes autos, através da qual o tribunal a quo decidiu conceder provimento ao recurso de impugnação judicial da decisão administrativa da Câmara Municipal de Sintra de aplicação de coima no valor de €10.000,00, acrescido de custas, interposto por L................................., e, em consequência, absolveu a arguida da prática da infração que lhe vem imputada. 2. Em tal processo de contra-ordenação está em causa a contra-ordenação de ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem a respectiva autorização de utilização, ilícito previsto e punido pelos artigos 4°, n.° 5 e 98°, n.° 1, al. d) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (doravante RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n° 555/99, de 16 de Dezembro. 3. Na decisão judicial ora impugnada, o Tribunal a quo entendeu, na nossa opinião mal, que o ilícito em causa se consumou ao iniciar-se a utilização das referidas edificações, com as consequências que daí extraiu – derivadas de tal equívoco – também erradas, quanto à conclusão que a data da consumação da infração ocorreu em 1981, 1982, como tal antes da entrada em vigor do RJUE/1999, data em que a lei veio prever essa autorização para esse específico fim como contraordenação, punindo a sua falta com uma coima. 4. As questões a decidir no âmbito do presente recurso são, assim, por um lado, a de aferir a natureza do ilícito contra-ordenacional de ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem a respectiva autorização de utilização, e a de aferir qual a previsão legal do tipo de contraordenação em causa, por outro lado. 5. Discordamos do entendimento da decisão recorrida de que a contra-ordenação em causa é um ilícito de consumação instantânea, porquanto perfilhamos o entendimento que a contra-ordenação em causa é uma contra-ordenação de natureza permanente, que se prolonga no tempo, renovando-se constantemente em todos os seus elementos constitutivos enquanto durar a respectiva utilização. 6. Em matéria de urbanismo, nomeadamente no que concerne ao licenciamento e autorização, não se pode confundir a situação em apreço nos pressentes autos – de ocupação de edifícios sem a respectiva autorização de utilização – com a situação decorrente de realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento sem o respectivo alvará de licenciamento. 7. Nestas últimas – de realização de quaisquer operações urbanísticas sujeitas a prévio licenciamento sem o respectivo alvará de licenciamento – é que, isso sim, estamos perante infracção de consumação instantânea, embora com efeitos duradouros (por subsistirem os efeitos da infracção), desde logo porque a acção antijurídica se esgota com o facto, uma vez que a manutenção da obra ilícita não constitui elemento do tipo. 8. Ao invés, na contraordenação em causa nos presentes autos – de ocupação de edifícios sem a respectiva autorização de utilização – estamos claramente perante uma infracção permanente em que a sua consumação material inicia-se com a efectiva ocupação de edifício sem autorização e só termina com o fim dessa ocupação não autorizada, pelo que enquanto a mesma se mantiver subsiste a consumação do ilícito. 9. Os ilícitos permanentes são assim designados por contraposição aos ilícitos instantâneos, ainda que estes possam ter efeitos duradouros. 10. A diferença entre os dois tipos de ilícito reside na relação entre os efeitos do ilícito e a sua consumação. 11. Tendo por referência a modalidade de ação normativamente densificada no tipo legal da contra-ordenação em apreço (ocupação de edifício sem autorização), a manutenção do estado antijurídico criado pela ação punível depende da vontade do seu autor, de maneira que, numa determinada perspectiva, pode afirmar-se que o facto se renova continuamente. 12. É este o sentido pacífico da doutrina e jurisprudência dominantes, nomeadamente no que concerne à prática da contra-ordenação em causa nos presentes autos (vide, entre outros, Ac. TR Porto de 04-12-1996, Processo n.° 9610680, Ac. TR Porto de 27-05-1998, Processo n.° 9640601, Ac. TR Porto de 11-01-2001, Processo n.° 0110385, Ac. TR Porto de 16-10-2001, Processo n.° 0111600). 13. Assim, sendo de qualificar a contra-ordenação em causa nos presentes autos como infracção de natureza permanente, subsiste a consumação do ilícito enquanto se mantiver a ocupação do edifício sem autorização, o que, in casu, conforme consta dos autos, ainda se verifica atualmente. 14. Desta forma, mal andou o tribunal a quo quando – utilizando o referido pressuposto de consumação instantânea da infração – considerou não ser possível concluir pela existência do tipo de ilícito respetivo, porque a autoridade administrativa não teria demonstrado que o regime legal vigente em 1981, 1982, exigisse uma «autorização de utilização» e punisse a sua falta, uma vez que o ilícito não se consumou nessa data, mas na data em que cessar a ocupação do edifício sem a correspondente licença de utilização, o que, conforme consta nos autos, ainda não sucedeu, persistindo ainda atualmente a sua consumação (ou, pelo menos, em 04.12.2014, data do auto de notícia). 15. Daí que, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, à data do levantamento do auto de notícia, em 04/12/2014, ao ser constatado que a arguida ocupava efetivamente as referidas edificações sem possuir a necessária autorização de utilização, era-lhe aplicável o disposto no artigo 4.°, n.° 5 do RJUE e a sanção prevista no artigo 98.°, n.° 1, d) e n.° 4 do mesmo diploma legal. 16. Para a consumação material do tipo legal da contra-ordenação em causa, basta a ocupação efetiva da edificação sem autorização de utilização, não exigindo a lei a prévia existência de qualquer construção licenciada, pois tal conduta não constitui elemento do tipo. 17. A arguida vem usando os edifícios em causa sem estar munida de autorização de utilização, situação que se verifica há vários anos, bem sabendo da necessidade da respetiva autorização e que se encontra a ocupar as aludidas construções ilegalmente, sem o licenciamento da construção e da respetiva autorização de utilização. 18. Não obstante disso ter perfeito conhecimento, a arguida continua a manter a ocupação e o uso dos edifícios não autorizado, onde mantém a sua residência. 19. Desta forma, mal andou igualmente o tribunal a quo – mais uma vez – quando ao utilizar o referido entendimento da previsão do tipo legal da contraordenação – decidiu absolver a arguida da prática da contraordenação por que vinha acusada. 20. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez errada interpretação, e como tal as violou, das seguintes normas jurídicas: Artigo 4°, n.° 5 do RJUE; Artigo 98°, n.° os números 1, al. d), 4 e 9 do RJUE. * Cumpridos que estão neste tribunal de apelação os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento. * Delimitação do objeto da apelação - questões a decidir Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal de apelação resolver o seguinte: -Erro de julgamento de direito quanto ao preenchimento do tipo legal de contraordenação pela conduta perante da arguida, com violação consequente dos artigos 4°, n.° 5, e 98°, n.°s 1, al. d), 4 e 9 do RJUE. * II – FUNDAMENTAÇÃO II.1 – FACTOS PROVADOS O tribunal a quo fixou o seguinte quadro factual:
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* II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO Tendo presente o exposto, bem como o disposto nos artigos 1º, 4º, 8º e 9º do Código Civil e nos artigos 110º, n.º 1, 203º e 204º da Constituição, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso. 1. Ora, “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (artigo 1º RGCO). Só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática (artigo 2º RGCO, princípio da legalidade). As tendências recentes do Direito contraordenacional ou de mera ordenação social espelham uma aproximação do regime jurídico das contraordenações aos quadros gerais e a princípios do Direito penal, mas sem que a centralidade saia do RGCO (DL nº 433/82 atualizado), ainda que a par de uma nova espécie de contraordenações típica de uma economia de mercado muito complexa e de um Estado-garante. O Direito contraordenacional distingue-se do Direito penal em vários aspetos: - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre o regime geral de punição das infrações disciplinares, bem como dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo (artigo 165º/1-d) CRP); é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal (artigo 165º/1-c) CRP); - O conteúdo ético-social está mais presente na criminalização do que no ilícito contraordenacional, falando-se neste caso em neutralidade ética ou axiológica (cf. J. de FARIA COSTA, Direito Penal, 2017, pp. 38-39); - A natureza do ilícito contraordenacional é administrativa, tal como a coima - que é infungível - e a competência para a aplicar; - Os tipos contraordenacionais são desenhados com referência a normas administrativas ou a atos administrativos (“acessoriedade administrativa” na construção legislativa do tipo contraordenacional); afinal, o tipo contraordenacional assenta na violação de deveres de natureza jusadministrativa; - A aplicação – menos intensa, pois não está em causa a privação da liberdade (cf. artigo 18º/1/2 CRP) - de alguns princípios de Direito penal (legalidade(4), culpa(5), ne bis in idem, garantias processuais de defesa; artigos 20º/4(6) e 32º/10(7) da CRP) ao Direito contraordenacional (ex.: artigo 50º do RGCO) justifica-se como direta decorrência do princípio do Estado de Direito material(8) (especialmente atento às restrições a direitos fundamentais) e não por uma semelhança entre o crime e a contraordenação ou entre a pena criminal e a coima (o Direito contraordenacional, sendo aliás de natureza administrativa e axiologicamente neutra, não faz parte do Direito penal em sentido amplo); - Embora o princípio geral da legalidade tenha, no Direito contraordenacional (por causa princípio do Estado de Direito material), os mesmos efeitos gerais que tem no Direito penal quanto à tipicidade (cf. artigo 1º do RGCO)(9), a verdade é que há uma clara diferença material e qualitativa entre o crime e a contraordenação, nomeadamente quanto à responsabilidade das pessoas coletivas, ou à censura da culpa, ou à comparticipação, ou à medida concreta da pena, ou ao processo, ou ao acusatório, ou à imediação e oralidade, enfim, quanto aos pressupostos e critérios respetivos do crime e da contraordenação (cf. A. SILVA DIAS, D. das Contra-Ordenações, 2019, reimp., pp. 41-47); afinal, no Direito contraordenacional o bem jurídico é somente motivo do tipo de ilícito e não também conteúdo; a ilicitude é só consequência da proibição legal contraordenacional e não causa (cf. assim FIG. DIAS, D. Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 7, §11); - Aliás, a prova do dolo no RGCO exige menos do que no CP e no CPP; é o que resulta da tipificação dos ilícitos contraordenacionais, sem prejuízo de, talqualmente no Direito penal, o dolo se provar por inferências e não por presunções com as inerentes inversões do ónus probatório (as presunções que, em rigor, nem são meios de prova) (cf. A. SILVA DIAS, D. das Contra-Ordenações, 2019, reimp., pp. 105-107); - Aqui, a culpabilidade, ou censurabilidade, está muito ligada ao papel social em certo setor da sociedade, para efeitos de reprimenda social, e não tanto a uma ética social, pelo que a presença da censura à culpa do agente seja menos importante do que no Direito penal, tendo a coima como (uma) importante função o absorver das vantagens económicas obtidas com a contraordenação (cf. artigo 18º/2 RGCO); aqui, a culpa como censura dirige-se ao agente e seu papel social no âmbito de um padrão de certo setor de atividade social, desembocando numa censura menos individual e menos ética (embora se exija imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de um comportamento conforme ao dever); - Os fins das coimas são essencialmente: reafirmar a coima e confiscar, bem como restabelecer a expetativa normativa violada (i.e., advertir e admoestar); enfim, são finalidades de prevenção geral de dissuasão e, principalmente, de prevenção geral positiva integradora (advertir e admoestar é a censura). Nada têm a ver com repressão-punição e com reintegração social, uma vez que a finalidade primacial do Direito de mera ordenação social é ordenar e promover a ordenação dos comportamentos uteis ao desenvolvimento comunitário, aspirando a um grau mínimo ou insignificante de conflitualidade (J. de FARIA COSTA, Direito Penal, 2017, p. 48). Feito este breve enquadramento jurídico geral, vejamos o caso concreto. 2. O presente caso envolve aspetos jurídicos muito interessantes e complexos, mais tratados do Direito Penal. Referimo-nos à aplicação da lei punitiva no tempo, maxime a exigência de lei punitiva prévia, e ainda a sua relação com condutas humanas que tenham natureza permanente ou duradoura. “1 - A punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento (i) da prática do facto ou (ii) do preenchimento dos pressupostos de que depende. 2 - Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada. 3 - Quando a lei vale para um determinado período, continua a ser punida a contra-ordenação praticada durante esse período.” (artigo 3º RGCO) O Tribunal Administrativo de Círculo considerou que o concreto comportamento da arguida, de existente desde anos antes do RJUE, punido pela entidade administrativa (a ocupação de edifícios ou suas frações autónomas sem autorização de utilização: artigo 98º/1-d) do RJUE) não constitui contraordenação, precisamente porque teve início vários anos antes da vigência das normas legais por que foi punido. Além do que, segundo a sentença recorrida, tal infração teria como pressuposto que a edificação em causa estivesse previamente licenciada, licenciamento que não ocorre de facto. O recorrente, o MP, contrapõe que se trata de uma contra-ordenação de natureza permanente, que se prolonga no tempo pela vontade da arguida até hoje, renovando-se constantemente em todos os seus elementos constitutivos enquanto durar a respectiva utilização. Logo, seria púnivel desde a vigencia do RJUE. Ora, em primeiro lugar, não parece que o tipo contraordenacional cit. distinga entre dono do imóvel edificado ou mero ocupante utilizador do mesmo. O agente desta infração pode ser qualquer pessoa, desdeque utilizadora do edifício. O que resulta do tipo legal citado é que ninguém pode utilizar um edifício sem que este tenha autorização de utilização. Nada mais, nada menos. E este elemento objetivo do tipo verifica-se no caso em apreço. Não depende de a construção ter sido ou nao ter sido licenciada. Por outro lado, parece claro que a já longa e ainda presistente ocupação do edifício sem autorização de utilização, anterior ao RJUE, não é hoje permitida pelo Direito; é proibida desde a vigência do RJUE/1999. De acordo com o artigo 3º/1 RGCO, a punição da contra-ordenação, rectius, do comportamento humano, é determinada pela lei vigente (também) no momento do preenchimento dos pressupostos de que depende. Daqui se conclui que, havendo um comportamento permanente que, entretanto, passou a ser punido com coima, i.e., que passou a ser proibido, é aplicável a esse comportamento o novo tipo punitivo. E por isso o ato administrativo punitivo aqui impugnado perante o Tribunal Administrativo de Círculo não violou o princípio da legalidade punitiva, nem na vertente da proibição da retroatividade das normas punitivas; precisamente porque o comportamento duradouro existente, antes permitido, passou a ser proibido num contexto legal e temporal novo em que há presença (i) dessa conduta e (ii) da vontade “nova” do agente da nova infração. Esta voluntariedade num comportamento permanente, quando entrou em vigor o RJUE, é ponto essencial para se considerar que tal comportamento duradouro voluntário presente está abrangido pelo tipo legal contraordenacional citado, “ocupação de edifício sem autorização de utilização”. É que, com a entrada em vigor do RJUE e a nova proibição de “ocupação de edifício sem autorização de utilização”, os cidadãos deveriam agir de acordo com tal proibição. Se decidiram agir ex novo contra tal proibição ou, como aqui ocorre, se decidiram a continuar uma conduta duradoura prévia, entretanto tornada punível com uma coima, ocupando edifício sem autorização de utilização, existe contraordenação. Aquela conduta, voluntária e permanente, tornou-se proibida e punível com a entrada em vigor do RJUE. Por isso não releva, a favor da arguida, o ocorrido anteriormente à proibição surgida com a previsão no RJUE desta concreta infração de mera ordenação social. Interessa, sim, o comportamento que seja imputável à vontade da arguida após a proibição legal de tal conduta, e que aqui foi e é, simplesmente, a (continuação da) ocupação de edifício sem este ter autorização de utilização. Assim não ficam em crise nem o princípio da censura social contraordenacional, nem o princípio da segurança jurídica em matéria de ilícito de ordenação social. Como a consumação da conduta humana em causa se prolonga no tempo, até hoje, releva o momento em que a conduta duradouramente consumada se torna proibida e punível. Afinal, a arguida continuou a ter a possibilidade de se conformar ao Direito vigente, tendo volição para tal. Mas não passou a respeitar a nova lei. Enfim, aqui, a conduta nao se consumou há 30 ou 40 anos. Ela continua a consumar-se todos os dias, porque, sendo permanente ou duradoura, pode cessar a qualquer momento. A permanência da conduta ou a sua cessação depende do agente da conduta. Logo, não se está a visar um facto já ocorrido, já findo, mas sim um comportamento repetido no sentido de "continuado e permanente", assim mantido por quem o adota; embora possa cessar por decisão do agente de tal comportamento. A conduta duradoura entretanto punida como contraordenação (“ocupação de edifício sem autorização de utilização”) podia e devia ter cessado em consequência do artigo 98º/1-d) do RJUE de 1999, bastando para tal a vontade da arguida; porém, não cessou, pelo que a arguida incorreu, com o RJUE, na contraordenação por que foi punida. Pelo exposto, o Tribunal Administrativo de Círculo aplicou incorretamente os artigos 4º/5 e 98º/1-d)/4 do RJUE e o princípio da legalidade punitiva decorrente do princípio do Estado democrático de Direito. * III - DECISÃO Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do nº 1 do artigo 1.º do EMJ [ex vi artigo 57.º do ETAF], os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso de apelação, revogar a sentença, julgar improcedente a impugnação interposta contra o cit. ato administrativo de aplicação da coima e custas e julgar procedente a acusação do MP, mantendo assim a decisão administrativa. Custas no TAC a cargo da arguida impugnante (artigo 94º/3 RGCO); sem custas neste TCAS. Lisboa, 18-06-2020 Paulo H. Pereira Gouveia - Relator Catarina Jarmela Paula de Ferreirinha Loureiro
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