Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:914/22.7 BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:05/18/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
PETIÇÃO INICIAL
ENVIO VIA CORREIO POSTAL REGISTADO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
PRINCÍPIO PRO ACTIONE
Sumário:I. Sendo a impugnação judicial apresentada diretamente junto do tribunal tributário, da leitura conjunta do art.º 103.º, n.º 1, do CPPT com o seu n.º 6, verifica-se que, exclusivamente no que respeita à apresentação da petição inicial, o legislador manteve a possibilidade de a mesma ser feita através de correio postal registado.

II. Havendo norma própria no CPPT, não há que lançar mão do disposto no art.º 24.º do CPTA, apenas aplicável subsidiariamente para as situações omissas – que abrangem, concretamente, todos os atos praticados por mandatário ulteriores à petição inicial, dada a exceção referida supra.

III. Esta opção do legislador bem se compreende, porquanto, admitindo-se que a impugnação seja apresentada junto dos serviços da administração tributária via correio postal, justifica-se igual solução, para a apresentação junto do tribunal tributário.

IV. A não apresentação via eletrónica da petição inicial, quando obrigatória, não implica o seu indeferimento liminar (mesmo quando haja convite à apresentação da peça por tal via), porquanto trata-se de mera irregularidade processual que, em regra, não é suscetível de influir no exame ou decisão da causa – sem prejuízo da condenação em custas, pelo(s) incidente(s) processual(is) inominado(s) que daí advenham.

V. O indeferimento liminar, numa situação como a descrita, representa uma restrição desproporcionada do acesso ao direito.

VI. Esta interpretação é igualmente a mais consentânea com o respeito pelo princípio pro actione, previsto no art.º 7.º do CPTA.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

M. P. Lda (doravante Recorrente) veio recorrer da sentença proferida a 12.12.2022, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi rejeitada liminarmente a impugnação por si apresentada, com fundamento na falta de apresentação da peça via SITAF.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“1. A recorrente intentou competente acção

2. E fê-la dentro de prazo

3. A requerente apresentou em papel porque é impossível faze-lo via SITAF

4. O sistema bloqueia e não trabalha

5. A PI foi acompanhada de documento a dizer isso mesmo

6. Mas mesmo que o não fosse não existe fundamento para não aceitar

7. Alias foi aceite e distribuída

8. Pelo deveria se ver e sentenciar os factos alegados não questões colateriais

PEDIDO:

Deverá conceder-se provimento ao presente Recurso, julgando procedente o pedido feito e em consequência os autos prosseguir e ser julgada posteriormente a impugnação e revogada esta decisão”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram aos autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de não dever ser conhecido o recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, uma vez que a impugnação foi apresentada tempestivamente, sendo que o SITAF não funciona e inexiste fundamento para indeferir liminarmente a impugnação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A. A 31.10.2022 foi recebida, via postal, a petição inicial dirigida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, onde consta, nomeadamente, que vem “contra a Direção Nacional da PSP – Departamento de Segurança Privada, e “ao abrigo do disposto no artigo 99.º e seguintes do CPPT (Código de Procedimento e de Processo Tributário), deduzir impugnação de decisão administrativo por ilegal de 12.09.2022.”, pedindo, a final, que seja decretada a anulação da decisão de 12.09.2022 da PSP [cf. petição inicial].

B. Por despacho de 07.11.2022 foi determinada a notificação do Impugnante para, no prazo de 10 (dez) dias, apresentar a peça processual pela via exigível por lei, mais esclarecendo qual o meio processual que pretende utilizar, e o valor da causa [despacho – documento 006579275 de 07.11.2022 SITAF].

C. O Impugnante não deu cumprimento ao determinado no despacho identificado no ponto anterior”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao indeferir liminarmente a presente Impugnação, em virtude de a mesma não ter sido apresentada via SITAF, estando devidamente justificado o justo impedimento e inexistindo fundamento legal para não a aceitar.

Antes de mais, refira-se que se considera que o recurso apresenta condições mínimas para ser conhecido, na medida em que se apreende o respetivo fundamento, motivo pelo qual se irá proceder à sua apreciação.

Vejamos então.

In casu, ao abrigo do art.º 99.º do CPPT, a Recorrente apresentou petição inicial junto do TAF de Sintra, remetida via correio postal registado.

Sendo a impugnação apresentada diretamente junto do tribunal tributário, da leitura conjunta do art.º 103.º, n.º 1, do CPPT, com o seu n.º 6, verifica-se que, exclusivamente no que respeita à apresentação da petição inicial, o legislador manteve a possibilidade de a mesma ser apresentada através de correio postal registado.

Com efeito, atentando na redação da referida disposição legal:

“1 - A petição é apresentada no tribunal tributário competente ou no serviço periférico local onde haja sido ou deva legalmente considerar-se praticado o ato.

(…) 6 - A petição inicial pode ser remetida a qualquer das entidades referidas no n.º 1 pelo correio, sob registo, valendo, nesse caso, como data do ato processual a da efetivação do respetivo registo postal”.

Ou seja, ao contrário do que sucede no CPTA e no CPC, o legislador manteve, no caso da impugnação judicial, a possibilidade de a respetiva petição inicial ser apresentada via correio postal registado, não distinguindo as situações em que a parte é ou não representada através de mandatário.

Assim, nestes casos, havendo norma própria no CPPT, não há que lançar mão do disposto no art.º 24.º do CPTA, apenas aplicável subsidiariamente para as situações omissas – que abrangem, concretamente, todos os atos praticados por mandatário ulteriores à petição inicial, dada a exceção referida supra.

É certo que, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 380/2017, de 19 de dezembro (que regula a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais administrativos de círculo, nos tribunais tributários, nos tribunais centrais administrativos e no Supremo Tribunal Administrativo), “[a] apresentação de peças processuais, documentos e processo instrutor por transmissão eletrónica de dados por mandatários e representantes em juízo é efetuada através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais administrativos e fiscais, acessível, através de certificado digital emitido por entidade certificadora credenciada ou por recurso ao Sistema de Certificação de Atributos Profissionais associado ao Cartão do Cidadão e à Chave Móvel Digital, no endereço https://www.taf.mj.pt, de acordo com os procedimentos e instruções aí constantes”.

No entanto, havendo uma norma legal específica para a petição inicial em sede de impugnação judicial, que admite a sua apresentação via correio postal registado, não há que, quanto a essa específica peça processual, lançar mão da exigência da sua apresentação via SITAF.

Esta opção do legislador bem se compreende, porquanto, admitindo-se que a impugnação seja apresentada junto dos serviços da administração tributária via correio postal, justifica-se igual solução, para a apresentação junto do tribunal tributário.

Daí que a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que alterou diversas disposições legais constantes do CPPT, no sentido de o adaptar à tramitação eletrónica, tenha deixado intocado o mencionado n.º 6 do art.º 103.º do CPPT, não obstante, por exemplo, ter alterado os art.ºs 10.º e 110.º daquele diploma.

Ou seja, o que decorre do regime vigente, quer por aplicação subsidiária do art.º 24.º do CPTA, quer considerando as cirúrgicas alterações nesta matéria feitas ao CPPT, pela a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, é que a tramitação, no caso da impugnação judicial, em que seja constituído mandatário, é, concretamente do lado do impugnante, eletrónica. No entanto, tal não invalida, excecionalmente, que a instauração da mesma possa ser feita nos termos consignados no art.º 103.º, n.º 6, do CPPT, que admite, sem restrições, a sua apresentação através de correio postal registado.

Sempre se refira que, mesmo que se considerasse ser de aplicar à petição inicial o disposto no art.º 24.º do CPTA, ex vi art.º 2.º, al. c), do CPPT, a solução nunca passaria, em situações como a dos autos, pelo indeferimento liminar motivado pela apresentação via postal da petição inicial – que, aliás, a secretaria digitalizou ex officio.

Com efeito, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 171 e 172):

“[I]mporta fixar as consequências para a inobservância desta via [eletrónica]. Embora se trate, indiscutivelmente, de uma irregularidade, pois o ato é praticado por um meio não autorizado por lei, será difícil sustentar que ocorre uma nulidade, para os efeitos do art. 195.º, n.º 1, já que, em regra, o vício não é suscetível de influir no exame ou decisão da causa. (…)

Se o desrespeito pelo regime (…) não for detetado pela secretaria nesse momento inicial, cumpre ao juiz, logo que confrontado com tal circunstância, determinar o que for necessário e pertinente para assegurar o cumprimento da lei. Sabendo-se que a transmissão eletrónica de dados assegura a todos os intervenientes processuais um melhor acesso e conhecimento das peças que integram os autos, deverá o juiz determinar a notificação da parte faltosa para, em prazo, apresentar a peça em causa por essa via, sancionando-a com as custas do incidente processual.

(…) Se a parte não acatar a notificação, sempre poderá o juiz ordenar que a secretaria proceda à digitalização da peça processual, condenando-a nas custas desse incidente (…). Em casos de reiterada violação (…), a conduta da parte poderá conduzir à sua condenação como litigante de má-fé, quando se deva entender que ocorre violação grave do dever de cooperação…”.

Em sentido próximo, referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras notas ao novo Código de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2014, pp. 155 a 157):

“A apresentação em juízo de um ato processual por um meio não admitido constitui uma irregularidade. No entanto, se o meio empregue for, em abstrato, admissível – embora não o seja no caso concreto – , dificilmente se poderá afirmar que tal irregularidade pode ‘influir no exame ou na decisão da causa’ (art. 195.º, n.º 1), pelo que não ferirá o ato de nulidade – o mesmo se diga do consequente ato irregular de junção ou recebimento pela secretarial judicial. Temos, pois, que, se o ato for praticado em suporte de papel – meio admitido pela lei (…) –, mas fora dos casos previstos, estaremos perante um ato irregular, mas não nulo, por regra. (…)

Sobrevivendo o articulado irregularmente apresentado ao controlo inicial (…), é de evitar qualquer solução drástica que sacrifique inutilmente a realização da justiça material, promovendo apenas a justiça formal, considerando que o ato não está, por regra, ferido de nulidade (…).

Liminar ou subsequentemente (…), o juiz deve gerir o processo de modo a garantir que a irregularidade não causará perturbação processual relevante. Sem prejuízo de se ter por válido e eficaz, embora irregular, o ato praticado pelo meio impróprio, o juiz poderá determinar que a parte, em homenagem ao princípio da cooperação (art. 7.º, n.º 1), reproduza o ato praticado, agora pelo meio devido (…). No limite, poderá ordenar à secretaria que digitalize o articulado, condenando o infrator nas custas da atividade incidental anómala a que deu causa…”.

Também no mesmo sentido, v. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 284.

Veja-se, ainda, a este propósito o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/2020, de 11.03.2020, no qual se decidiu “julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação do artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, do artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, com o disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, e artigo 195.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho segundo a qual é nulo o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível” (v. igualmente o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2020, de 14.05.2020).

V. igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.06.2021 (Processo: 290/07.8GBPNF-G.P1.S1) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo citada, onde se conclui:

“Emana, pois, da jurisprudência do STJ e da doutrina que acabámos de citar, que o desvio da forma idónea de envio das peças processuais pelo mandatário judicial, mesmo que sem invocação do justo impedimento, não pode redundar numa restrição desproporcional no acesso ao Direito e aos Tribunais, ferindo o processo equitativo, como sucederia nos casos em que a omissão não influi na tramitação, nem prejudica direitos de outros intervenientes, e existem outros meios menos gravosos para sancionar o comportamento, como seja a multa processual”.

In casu, apesar de se concordar com o Tribunal a quo, quando afirma que não foi invocado qualquer justo impedimento – que, de facto, não foi, na medida em que a Recorrente se limita a referir que o sistema não funciona, não concretizando nem demonstrando com que concreto problema se deparou –, a verdade é que a irregularidade, ainda que não sanada pela parte, não obstante o convite para o efeito, foi suprida através da digitalização que a secretaria levou a cabo, representando, em nosso entender, pelos motivos já enunciados, uma restrição desproporcionada do acesso ao direito indeferir liminarmente a impugnação por esse motivo, quando não se trata irregularidade que influa na decisão da causa.

Esta interpretação é igualmente a mais consentânea com o respeito pelo princípio pro actione, previsto no art.º 7.º do CPTA, ex vi art.º 2.º, al. c), do CPPT, que aponta para interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, por excessivo de formalismo.

Como tal, assiste razão à Recorrente, revogando-se a decisão recorrida, devendo os autos retornar ao Tribunal a quo, para que o mesmo proceda à tramitação conducente à apreciação liminar (uma vez que, na decisão recorrida, não obstante se falar em bloco do despacho de aperfeiçoamento proferido, a sua fundamentação foi exclusivamente a falta de apresentação da peça processual eletronicamente), considerando o teor da petição inicial apresentada.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida;

b) Determinar a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para que aí, considerando a petição inicial apresentada, se leve a cabo a tramitação necessária à apreciação liminar dos autos;

a) Sem custas;

b) Registe e notifique.


Lisboa, 18 de maio de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)