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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1052/16.7BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:01/16/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA TEMPORÁRIA, INSTRUÇÃO PROCEDIMENTAL, INSTRUÇÃO PROCESSUAL, INQUISITÓRIO
Sumário:I. Não incorre a sentença recorrida em nulidade decisória, por omissão de pronúncia ou por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, c) e d), do CPC, se os fundamentos invocados não se subsumem ao disposto nos citados preceitos legais.

II. Limitar-se a sentença recorrida a reproduzir os factos constantes da Informação elaborada pela Administração na fase procedimental, sem a análise crítica dos factos apresentados pelo Autor na petição inicial, nem à análise da prova documental junta, desconsiderando também a prova testemunhal requerida, sendo dispensada a fase de instrução da causa, incorre em violação dos princípios do contraditório, da defesa, da descoberta da verdade material e do inquisitório que vigoram no processo administrativo, nos termos do disposto nos artigos 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA e artigos 411.º e 413.º do CPC.

III. Os factos apurados pela Administração na fase procedimental e o respetivo processo administrativo não fazem prova plena dos factos apurados, antes se encontrando submetidos à livre apreciação da prova, podendo ser contraditados pelo Autor na ação judicial instaurada.

IV. Se assim fosse, recaía sobre uma das partes da causa o poder de “fabricar” as suas próprias provas, além de a ação administrativa deixar de ser de plena jurisdição, no sentido de conhecer integralmente de facto e de direito, segundo os artigos 2.º e 3.º do CPTA.

V. Apresentada outra versão dos factos e feita a sua comprovação factual, não se podem manter os pressupostos de facto em que a Administração se baseou, antes devendo ser renovado o procedimento administrativo, para o integral esclarecimento dos factos pertinentes da pretensão.

Votação:MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

P......, devidamente identificado nos autos de ação administrativa instaurada contra o Ministério da Administração Interna, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 11/04/2018, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou a ação improcedente, mantendo o ato impugnado de cancelamento de autorização de residência temporária na ordem jurídica.


*

Formula o aqui Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que ora se reproduzem:

“a) O tribunal “a quo” apreciou do mérito da causa proferindo saneador sentença sem ter realizado a audiência de discussão e julgamento considerando que a prova documental era suficiente e que o Autor não logrou fazer prova dos meios de subsistência;

b) Ora, com a petição inicial foi junto um documento que consubstancia um contrato de trabalho celebrado com a empresa “C........ Lda.”, com início em 02-01-2010 e termo em 29-10-2011, caso não fosse renovado, auferindo o Autor o montante mensal de 491,50€, acrescido de subsídio de alimentação no valor de 5,00€ dia.

c) Tal documento não foi impugnado pelo ora recorrido.

d) Outrossim, com a petição inicial foi arrolada a testemunha A……., gerente comercial da sociedade supra identificada, a qual tem conhecimento pessoal e direto dos factos.

e) Assim, se o Recorrente não logrou fazer prova dos meios de subsistência foi porque coarctou os meios probatórios ao Autor não realizando a audiência de discussão e julgamento para inquirição da testemunha.

f) Tal violação colide frontalmente com o princípio do contraditório e o princípio da descoberta da verdade material, uma vez que o Recorrente nunca prescindiu da inquirição da testemunha que o tribunal devia ouvir.

g) Por outro lado, o tribunal considerou que o Recorrente prestou “falsas declarações” quanto aos meios de subsistência, apreciando única e exclusivamente a prova documental junta aos autos, mormente porquanto “alegou trabalhar para uma empresa que já não exercia atividade.”

h) Com o devido respeito, a prova documental só por si é insuficiente para considerar que existiram “falsas declarações” por parte do Recorrente. Carece de matéria factual e prova os factos conducentes a tal crime.

i) Em consequência, não sabemos se, pese embora tivesse sido comunicado à Autoridade Tributária que a empresa “S......, Lda.” tinha cessado a atividade, na prática e efetivamente o tinha já feito.

j) E se efetivamente tinha cessado de facto toda a atividade porque continuou a emitir recibos ao ora Recorrente?

k) Como poderia o Recorrente ter conhecimento de que a empresa tinha cessado a atividade se a mesma não lhe comunicou? E este continuava a prestar serviço nos mesmos termos e condições.

l) Se houve falsas declarações nunca estas podem ser imputadas ao Recorrente que disso não tinha conhecimento e sempre pautou a sua conduta, vivendo em Portugal desde 2006) com honestidade e cumprimento de todas as suas obrigações legais e fiscais.

m) A douta sentença recorrida enferma de nulidade por duas ordens de razão, em primeiro lugar o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar preterindo diligências de prova requeridas que podiam levar a uma decisão diferente, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA; em segundo os fundamentos estão em oposição com a decisão carecendo de factos e da respetiva demonstração probatória, que sustentem, sem dúvidas, o fundamento de “falsas declarações” por parte do Recorrente, cujo ónus cabia ao Recorrido.”.

Pede a revogação da sentença recorrida, no âmbito delimitado pelo objeto do presente recurso ou, caso assim se não entenda, que baixem os autos para realização de audiência de discussão e julgamento.


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Notificada, a Entidade Demandada não contra-alegou o recurso, nada tendo dito.

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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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O processo vai com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artº 140º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de:

1. Violação do princípio do contraditório e da descoberta da verdade material, ao prescindir da fase de instrução da causa e ao julgar que o Autor não logrou fazer prova dos meios de subsistência;

2. Nulidade decisória, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, ao preterir diligências de prova;

3. Nulidade decisória, por contradição entre os fundamentos e a decisão, no respeitante à demonstração probatória das falsas declarações do Autor.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:

“1. O Autor é natural do SENEGAL, onde nasceu em 26/10/72 – doc. nº 1, fls. 8 do p.a., em suporte de papel

2. Aos 26/10/2006, o ora impugnante regularizou a sua permanência em Portugal, ao abrigo do art. 71.º do Decreto Regulamentar n.º 6/2004, de 26 de Abril, o que se materializou na vinheta n.º P01…… aposta no passaporte – facto admitido.

3. Aos 08/02/2007 foi prorrogada a sua permanência em Portugal com autorização para trabalhar até 08/02/2008, o que se materializou na vinheta nº P02….. aposta no passaporte – fls. 9 do p.a.

4. Aos 18/06/2008 foi-lhe concedida autorização de residência temporária, ao abrigo da disposição transitória contida no n.º 1 do art. 217.º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, materializada no título de residência nº P00….. válido até 08/02/2010 – facto admitido.

5. Aos 12/03/2010 foi renovada a autorização de residência temporária a seu favor, nos termos do art. 78.º da Lei n.º 23/200,7, de 04 de Julho, materializada no título de residência n.º G0….. válido até 08/02/2012 – facto admitido.

6. Aos 06/02/2012 foi-lhe, novamente, renovada a autorização de residência temporária, nos termos do art. 78.º da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, materializada no título de residência nº 6…… válido até 08/02/2014.

7. Aos 28/11/2013 renovou, mais uma vez. a autorização de residência temporária, nos termos do art. 78º da Lei nº 23/2007, de 04 de Julho, na redacção conferida pela Lei nº 29/2012, de 9 de Agosto, materializada no título de residência nº 5……. válido até 08/02/2016 – facto admitido.

8. No âmbito do procedimento administrativo que culminou na emissão do título de residência temporário n.º G…….., ao ora impugnante, e em ordem a fazer prova de que se encontrava em Portugal a exercer uma actividade profissional subordinada, da qual lhe provinham os seus meios de subsistência, juntou ao processo os seguintes documentos: - uma declaração da empresa "S…… Lda,", com o NIF 5…….., comprovativa de que se encontrava a trabalhar para esta empresa; - uma declaração de IRS de 2009 em que figura o NIF .…… como entidade pagadora; - um extracto de remunerações da segurança social em que figura a empresa "C….., Lda." como sua entidade patronal entre Julho de 2009 e Fevereiro de 2010 – resulta do p.a.

9. No âmbito do procedimento administrativo que culminou na emissão do título de residência temporário n.º 6……, e em ordem a fazer prova de que se encontrava em Portugal a exercer uma actividade profissional subordinada, da qual lhe provinham os seus meios de subsistência, o ora impugnante juntou: uma declaração da empresa "S…… Lda.", com o NIF .……, comprovativa de que se encontrava a trabalhar para esta empresa; um extracto de remunerações da segurança social em que figura a empresa "C…… Lda." com sua entidade patronal entre Julho de 2009 e Outubro de 2011 e uma declaração de IRS de 2010 em que figurei o NIF .…… como entidade pagadora.

10. Posteriormente, por Auto de Notícia, datado de 19/02/2014 e publicado no Portal da Justiça, concernente a procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de sociedade comercial instauração pela Autoridade Tributária e Aduaneira, apurou-se que a empresa “C……. Lda.”, com o NIPC …….., já não exerce actividade comercial desde há mais de dois anos.

11. Foi ainda esclarecido pela Autoridade Tributária e Aduaneira / Direcção de Finanças de Coimbra que a referida empresa cessou a sua actividade aos 09/03/2010.

12. Em 6/03/2015 o Director Nacional Adjunto do SEF proferiu Despacho pelo qual procedeu ao cancelamento do título de residência do Requerente, com os fundamentos na Informação nº …………………de 9 de Setembro de 2014, onde se Concluiu o seguinte:

“(…)

a. A renovação da autorização de residência temporária depende da apresentação de documentos comprovativos da posse de meios de subsistência, bem como do cumprimento efectivo das obrigações fiscais e perante a segurança social;

b. para prova da posse de meios de subsistência, em sede de procedimentos administrativos iniciados pelo próprio aos 12.03.2010 e aos 06.02.2012, o c. e. afirmou ao SEF que estava a exercer uma actividade profissional subordinada em Portugal, efectuando os competentes descontos para a segurança social e apresentado a sua declaração de rendimentos perante as Finanças;

c. a empresa "S…… Lda. ", com o NIPC .….., cessou a sua actividade aos 09.03.2010;

d. as declarações comprovativas da existência de um vínculo laboral entre o c.e. e a empresa "S……. Lda.", as remunerações registadas na Segurança Social em nome do c. e. entre 04/2010 e 10/2011, bem como os rendimentos declarados pelo c. e. à Autoridade Tributária e Aduaneira em sede de IRS de 2010 e 2011, são documentos de falso teor por não corresponderem a uma efectiva relação de trabalho entre o c. e. e a empresa referida;

e. na verdade, e no âmbito dos procedimentos administrativos iniciados pelo próprio aos 12.03.2010 e aos 06.02.2012, o c. e. não fez prova de que possuía meios de subsistência.

2. Deste modo, é inquestionável que o c. e. utilizou de meios fraudulentos nos pedidos de renovação de autorização de residência temporária apresentados ao SEF, tendo-se servido de declarações "falsas ou enganosas" e de documentos "falsos ou falsificados" para fazer prova da posse de um contrato de trabalho válido de onde lhe provinha os seus meios de subsistência.

3. Previamente à elaboração da presente proposta de decisão final, foi o c.e. regularmente notificado em sede de audiência de interessados para se pronunciar sobre o projecto de decisão.

1. Pelo que se conclui estarem preenchidos os requisitos legais plasmados na alínea b) do nº 1 do art.° 85.° da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, na redacção conferida pela Lei n.? 29/2012, de 9 de agosto, sendo de proferir uma decisão de cancelamento do direito de residência temporário, subjacente aos títulos de residência emitidos a favor do cidadão P…….

(…)

- fls. 120/121 do p.a.

4. O Autor requereu providência cautelar que correu neste tribunal com o nº 1052/16-A, onde foi proferida decisão de improcedência – de conhecimento oficioso.


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Motivação

A convicção que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou no teor dos documentos constantes dos autos, do processo administrativo e no acordo das partes, conforme discriminado em cada uma das alíneas do probatório.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional, segundo a sua ordem lógica e prioritária de conhecimento.

1. Nulidade decisória, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, ao preterir diligências de prova

Vem o Recorrente a juízo assacar a nulidade decisória da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC.

Sustenta que o Tribunal a quo dispensou a realização de audiência prévia e a audiência final, assim como prescindiu da testemunha arrolada pelo Autor.

Considera que o Tribunal deixou de pronunciar-se sobre que questões que devia apreciar, preterindo diligências de prova requeridas que podiam levar a decisão diferente.

Sem razão.

As questões invocadas pelo Recorrente não se subsumem ao conceito de nulidade decisória por omissão de pronúncia, não logrando o Recorrente identificar qualquer questão sobre que impendia o dever de conhecimento do Tribunal a quo e que não logrou ser apreciada e decidida na sentença recorrida.

No que se refere a este fundamento de nulidade, a que alude a alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, a mesma ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, isto é, quando o tribunal não aprecia e/ou decide uma questão que foi chamado a resolver.

Significa ausência de posição expressa ou de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções (excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras), bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual – vide Acórdão do STA de 07/06/2005, proc. nº 1110/04; ANTUNES VARELA, in RLJ 122º, pág. 112; ALBERTO DOS REIS, CPC Anotado, pág. 143; LEBRE DE FREITAS, CPC Anotado, 2º Vol., 2ª ed., anotação ao n.º 2 ao artigo 660.º e ao n.º 3 ao artigo 668.º, em relação ao anterior CPC.

O juiz deve conhecer todas as questões que lhe foram submetidas, isto é, todos os pedidos e todas as causas de pedir, pelo que, o não conhecimento de questão cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento anterior de outra questão, integra a nulidade por omissão de pronúncia.

Analisado o teor da alegação recursiva e das respetivas conclusões de recurso é manifesto que não logra ser identificada qualquer questão que tenha sido omitida na sentença recorrida.

A dispensa da realização da audiência prévia, após despacho em que as partes foram notificadas para se pronunciar sobre essa dispensa, nos termos do despacho proferido em 02/02/2017, assim como a dispensa da abertura da fase de instrução da causa com a consequente dispensa da produção da prova testemunhal a ocorrer durante a fase de audiência final, não constituem fundamento de nulidade decisória por omissão de pronúncia.

Pelo exposto, improcede, por não provada a nulidade decisória por omissão de pronúncia.

2. Nulidade decisória, por contradição entre os fundamentos e a decisão, no respeitante à demonstração probatória das falsas declarações do Autor

Vem o Recorrente a juízo assacar a nulidade decisória à sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC, por contradição entre os fundamentos e a decisão, no respeitante à demonstração probatória das falsas declarações do Autor.

Alega que o ónus da prova das falsas declarações cabia ao Réu e que o mesmo não logrou fazer prova.

Também neste caso, sem razão.

A sentença recorrida ao julgar a ação improcedente, recusou os fundamentos de invalidade contra o ato impugnado, em cujo procedimento se considerou que o interessado, ora Recorrente, havia prestado falsas declarações de forma a obter a autorização de residência.

Quanto muito a sentença pode incorrer em erro de julgamento de direito ao dar como provados certos factos, que o direito probatório aplicável pode não permitir ou no caso de adotar erroneamente certa interpretação e aplicação do direito aos factos demonstrados em juízo, mas que não integra o fundamento da nulidade decisória invocada pelo Recorrente.

Se o Recorrente considera que recai sobre o Recorrido o ónus da prova das falsas declarações e que essa prova não foi feita, tal integra o fundamento de erro de julgamento e não de nulidade decisória.

Nem sequer é possível descortinar que a sentença haja seguido certa linha de raciocínio, acolhendo certo tipo de fundamentos e que, posteriormente, haja decidido em sentido contrário ou divergente, em termos que as razões apresentadas não o permitissem sustentar.

Também neste caso o ora Recorrente dirige contra a sentença uma censura que não se verifica, por as razões apresentadas não se subsumirem ao fundamento de nulidade decisória previsto no artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC.

Pelo que, não procede o fundamento do recurso, por resultar não provado.

3. Violação do princípio do contraditório e da descoberta da verdade material, ao prescindir da fase de instrução da causa e ao julgar que o Autor não logrou fazer prova dos meios de subsistência

Por último, entende o Recorrente que a sentença recorrida incorre em violação do princípio do contraditório e da descoberta da verdade material, ao prescindir da fase de instrução da causa e, simultaneamente, ao julgar que o Autor não logrou fazer prova dos meios de subsistência.

Sustenta que arrolou uma testemunha na petição inicial e que o Tribunal a quo andou mal ao não realizar a audiência de discussão e julgamento da causa, tendo coartado os meios probatórios ao Autor, por ele pretende provar os factos que vêm por si alegados, sendo negada qualquer possibilidade de defesa.

Não se pode sufragar o entendimento de que a prova documental é suficiente para a apreciação do litígio, nem que seja suficiente para dar por provadas as falsas declarações.

Vejamos, tendo presente a configuração do objeto da causa.

O Autor instaurou a presente ação administrativa de impugnação da decisão de cancelamento da autorização de residência temporária e de abandono do território nacional, e a condenação à prática de ato devido.

Tendo sido concedida a sua autorização de residência temporária, o Autor foi requerendo a sua renovação, que foi sendo concedida, nos termos dos pontos 2. a 7. do julgamento de facto da sentença.

Porém, apresentado novo pedido de renovação de autorização de residência temporária, a Entidade Demandada veio a apurar no procedimento administrativo que para efeitos de emissão de dois dos títulos de residência temporário, a que se reportam os pontos 8. e 9. da matéria de facto assente, são falsos os documentos apresentados pelo ora Recorrente para comprovar que se encontra em Portugal a exercer uma atividade profissional subordinada, da qual lhe provém meios de subsistência.

E com base no apuramento dessa factualidade, a Entidade Demandada indeferiu o pedido do requerente, ora Recorrente.

Porém, alega o Autor na petição inicial que desconhecia que a empresa “S……., Lda.” já não se encontrava em atividade desde 2010 e que não é a mesma empresa com que tinha celebrado contrato, nem que a mesma já não se encontra em atividade.

Alega ainda que em 02/01/2010 celebrou com a sociedade “C……, Lda.” um contrato a termo certo, até 29/10/2011, que junta como doc. 5 (fls. 15 verso e 16), tendo sempre recebido os recibos de vencimento, tendo entendido tratar-se da mesma empresa.

Mais invoca que a entidade empregadora com quem o Autor celebrou o contrato, declarou à Segurança Social a existência de um vínculo laboral entre o trabalhador e a empresa “S……, Lda.”.

Pelo que, defende que não poderia o Autor saber que esta empresa não se encontrava em atividade.

Por outro lado, compulsando, quer a contestação apresentada em juízo, quer a sentença recorrida, decorre que ambas reproduzem a factualidade constante na Informação n.º 134/DRED/AJ, de 22/08/2014, relativa ao projeto de decisão de cancelamento da autorização de residência.

Nem a Entidade Demandada se pronunciou em juízo sobre o facto alegado na petição inicial pelo Autor, de ter celebrado novo contrato de trabalho em 02/01/2010, com efeitos até 29/10/2011, comprovado documentalmente pela junção do documento n.º 5, nem a sentença recorrida relevou este facto, não o levando ao julgamento de facto, quer no respeitante aos factos provados, quer aos factos não provados.

Não obstante a factualidade apurada pela Administração durante o procedimento administrativo, na presente ação administrativa o Autor apresenta uma versão diferente dos factos, junta prova documental comprovativa e ainda requer a produção de prova testemunhal.

Todo este circunstancialismo de facto não foi apreciado durante o procedimento administrativo pela Entidade Demandada, do mesmo modo que foi totalmente desconsiderado pelo Tribunal a quo na fase judicial, ao não proceder à instrução da causa, nem apreciar por algum modo os factos alegados pelo autor na petição inicial.

Sendo verdade que o Autor instruiu os vários pedidos de renovação de autorização de residência temporária com documentos, sendo com base neles que a Administração se baseou para a apreciação dos pedidos e a respetiva decisão a proferir, não é menos verdade que vigora o princípio do inquisitório no procedimento administrativo, que não só habilita, como impõe a investigação dos factos pertinentes para o proferimento da decisão administrativa, nos termos do disposto no artigo 56.º do CPA/91 e do artigo 58.º do CPA/2015.

Mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, os órgãos administrativos podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados e decidir sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida, quando o interesse público o exigir.

Por este motivo, na investigação que realizou a Entidade Demandada veio a apurar que os factos apresentados pelo interessado não correspondem à verdade.

Porém, em face da alegação factual do Autor e da sua respetiva comprovação documental, tem se ser devidamente apurado se tal atuação deve ser imputada à entidade patronal ou se ao próprio interessado.

Assim, com relevo para o mérito do litígio e para a pretensão requerida pelo Autor, tem de ser apurado se existiu a cessação da sociedade indicada pelo Autor, mas foi criada outra, com a mesma estrutura, para o qual o Autor passou a ser exercer funções.

Além de que deve ser apurado se é ou não falso o contrato de trabalho que o Autor junta como documento 5 e que foi totalmente desconsiderado pela Entidade Demandada, quer na fase procedimental, quer na presente ação, por a ele nunca se referir na contestação apresentada em juízo, não impugnando tal facto, nem impugnando a falsidade do documento junto pelo Autor.

Por outro lado, a sentença recorrida omite a fase de instrução da causa, não procedendo à análise critica dos factos alegados pelo Autor na petição inicial, nem à análise da prova documental junta, desconsiderando também a prova testemunhal requerida.

Na petição inicial o Autor não apenas contraria os factos em que se baseia a Entidade Demandada para praticar o ato impugnado, como apresenta uma outra versão dos factos, assim como produz prova documental que abala os pressupostos de facto em que a Administração se baseou, além de ainda requerer a prova testemunhal.

Tudo desconsiderado pela Entidade Demandada na contestação e tudo desconsiderado pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida.

Impõe-se afirmar que os factos apurados pela Administração na fase procedimental e o respetivo processo administrativo não fazem prova plena dos factos apurados, antes se encontrando submetidos à livre apreciação da prova, podendo ser contraditados pelo Autor na ação judicial instaurada.

Se assim fosse, recaía sobre uma das partes da causa o poder de “fabricar” as suas próprias provas, além de a ação administrativa deixar de ser de plena jurisdição, no sentido de conhecer integralmente de facto e de direito, segundo os artigos 2.º e 3.º do CPTA.

Nos termos em que o Autor configurou a presente ação, apresentando factos que não foram considerados pela Entidade Demandada na fase procedimental e que também se coibiu de os contraditar na fase judicial, assim como, mediante a junção pelo Autor de um contrato de trabalho com uma outra sociedade comercial abrangendo o período temporal a que se refere a análise dos factos para a renovação da autorização de residência temporária, logra proceder a censura dirigida contra a sentença recorrida, no tocante à violação do princípio do contraditório e do dever de descoberta da verdade material da causa.

Impunha-se que o Tribunal a quo tivesse apreciado a versão dos factos apresentada pelo Autor na petição inicial, assim como os seus respetivos meios probatórios juntos e a produzir, extraindo as respetivas consequências no plano da legalidade do ato impugnado e quanto ao pedido de condenação à prática de ato devido peticionado.

Limitar-se a sentença recorrida a reproduzir os factos constantes da Informação elaborada pela Administração na fase procedimental, sem a análise crítica dos factos apresentados pelo Autor, constitui uma violação dos princípios do contraditório, da defesa, da descoberta da verdade material e do inquisitório que vigoram no processo administrativo, nos termos do disposto nos artigos 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA e artigos 411.º e 413.º do CPC.

Do mesmo o modo o revela a Administração, pois apresenta o Autor uma versão dos factos que não foi apreciada pela Administração na fase administrativa.

Em face dos factos alegados pelo Autor e respetiva comprovação, de que em 02/01/2010 celebrou contrato de trabalho com a empresa “C…….., Lda.”, pelo período de 21 meses, até 29/11/2011, não se podem manter os pressupostos em que se baseia o ato impugnado, que considera que no período em causa o Autor não apresenta meios próprios de subsistência que lhe permitam sustentar o pedido de renovação de autorização de residência temporária em Portugal e a sua continuação de permanência no território nacional.

Impõe-se que a Administração, ora Entidade Demandada, reinstrua o processo administrativo, investigando amplamente os factos, designadamente, no que concerne à existência de uma relação de trabalho do Autor e só após, decida em conformidade.

Os pressupostos em que a Administração se baseou para praticar o ato impugnado encontram-se totalmente abalados pela versão factual apresentada nos presentes autos, devendo a Administração retomar o procedimento, investigar toda a factualidade pertinente e voltar a decidir com base nos novos factos apurados, decidindo em conformidade.

Nestes termos, em face de todo o exposto, não se pode manter a sentença recorrida, enfermando da censura que contra ela se mostra dirigida, pelo que, sendo revogada, se decide, em substituição, conceder provimento à ação administrativa, anulando o ato impugnado e condenar a Entidade Demandada a retomar o procedimento administrativo, a investigar todos os factos pertinentes à situação jurídico-laboral do Autor e a decidir em conformidade, renovando ou não a autorização de residência.


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Termos em que será de conceder provimento ao recurso interposto, por provado o seu fundamento.

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Sumariando, nos termos do nº 7 do artº 663º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I.Não incorre a sentença recorrida em nulidade decisória, por omissão de pronúncia ou por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, c) e d), do CPC, se os fundamentos invocados não se subsumem ao disposto nos citados preceitos legais.

II.Limitar-se a sentença recorrida a reproduzir os factos constantes da Informação elaborada pela Administração na fase procedimental, sem a análise crítica dos factos apresentados pelo Autor na petição inicial, nem à análise da prova documental junta, desconsiderando também a prova testemunhal requerida, sendo dispensada a fase de instrução da causa, incorre em violação dos princípios do contraditório, da defesa, da descoberta da verdade material e do inquisitório que vigoram no processo administrativo, nos termos do disposto nos artigos 90.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA e artigos 411.º e 413.º do CPC.

III. Os factos apurados pela Administração na fase procedimental e o respetivo processo administrativo não fazem prova plena dos factos apurados, antes se encontrando submetidos à livre apreciação da prova, podendo ser contraditados pelo Autor na ação judicial instaurada.

IV. Se assim fosse, recaía sobre uma das partes da causa o poder de “fabricar” as suas próprias provas, além de a ação administrativa deixar de ser de plena jurisdição, no sentido de conhecer integralmente de facto e de direito, segundo os artigos 2.º e 3.º do CPTA.

V. Apresentada outra versão dos factos e feita a sua comprovação factual, não se podem manter os pressupostos de facto em que a Administração se baseou, antes devendo ser renovado o procedimento administrativo, para o integral esclarecimento dos factos pertinentes da pretensão.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e, em substituição, conceder provimento à ação, anulando o ato impugnando e condenando a Entidade Demandada a retomar o procedimento administrativo, a investigar os factos pertinentes e a decidir em conformidade com a factualidade que vier a ser apurada.

Custas na 1.ª instância pela Entidade Demandada e sem custas nesta instância de recurso.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)


(Sofia David)

[voto vencida]



(Alda Nunes)

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Voto vencido. Não acompanho a fundamentação da decisão recorrida quando conhece dos erros decisórios que vinham invocados, nem a fundamentação e o segmento decisório relativo ao conhecimento em substituição, pelas seguintes razões:
1) Na PI o A. e Recorrente requereu a declaração de nulidade da decisão de cancelamento da autorização de residência e pediu a condenação do R. a restituir-lhe essa autorização.
2) Apenas em sede processual, o A alega que celebrou com a sociedade de construções L......, Lda, um contrato a termo até 29/10/2011, que não se apercebeu que tal empresa era distinta da S......, Lda, que desconhecia a cessação de actividade desta última empresa e que a entidade empregadora do A. declarou à Segurança Social a existência de um vinculo laboral entre esta última empresa e o A.
3) Tal como decorre da matéria de facto assente, estas invocações não foram feitas em sede procedimental. No procedimento administrativo prévio à acção judicial também não foram entregues pelo A. e ora Recorrente quaisquer documentos que indiciassem aquelas circunstâncias.
4) Consequentemente, não se acompanha a fundamentação decisória quando imputa ao R., O Ministério da Administração Interna (MAI) um comportamento omissivo, violador do princípio do inquisitório, por não ter ponderado em sede procedimental alegações e factos que só se apresentam na fase judicial, que lhe é subsequente.
5) Porque o A. e Recorrente apresentou em sede processual uma versão dos factos diferente da versão que apresentou procedimentalmente, enquanto interessado, existia nos autos matéria que importava para a decisão da causa e estava controvertida, a saber, os factos relativos ao não preenchimento pelo A. e Recorrente das condições necessárias a manter a sua autorização de residência.
6) Existindo matéria que relevava para a apreciação da legalidade do agir administrativo e para o pedido condenatório que vinha formulado na acção, que se apresentava controvertida, cumpria ao Tribunal ad quo abrir a fase de instrução, com a produção da prova testemunhal oferecida, tal como vem invocado em recurso.
7) Por conseguinte, daria procedência ao recurso e revogaria a decisão recorrida, por a mesma padecer de erro de julgamento, por não ter sido aberta uma fase de instrução, quando existia matéria controvertida a apurar. Consequentemente, determinaria a baixa dos autos para se proceder a essa instrução, prosseguindo o processo, a partir daí, os seus termos.
8) Quanto ao apelidado julgamento em substituição não se acompanha a correspondente fundamentação, nem o seu sentido decisório.
9) Como já se indicou, considera-se que o MAI não tinha a obrigação de melhor averiguar relativamente a alegações e factos que não tinham sido alegados pelo interessado em sede procedimental e que só se suscitaram numa fase posterior, já processual. Logo, não se acompanha o julgamento quando ali se considera ter ocorrido uma violação do princípio do inquisitório no procedimento administrativo.
10) Já se indicou que se julgaria determinando a baixa dos autos para a produção de prova.
11) Assim, só após a prova que fosse feita em julgamento, caso viesse a concluir-se que as declarações que foram feitas em sede procedimental pelo interessado - ora A. e Recorrente - não eram falsas, assim como o não eram os documentos que entregou ao MAI, por haver uma coincidência entre as supra-indicadas empresas, ou porque o A. e Recorrente estava crente naquela coincidência e desconhecia a cessação de actividade da 1.ª empresa, só então verificar-se-ia a existência de um erro nos pressupostos de facto, que inquinaria a conduta administrativa.
12) Caso se chegasse a essa conclusão no termo do julgamento, haveria que anular a decisão do MAI de cancelamento da autorização e determinar a reinstrução do procedimento, considerando que os factos e documentos entregues no procedimento pelo interessado não eram falsos ou baseados em declarações falsas.
13) Ou seja, com base nos factos ora apurados consideramos não se poder concluir, de imediato, pela existência de uma violação do princípio do inquisitório e pela existência de um défice instrutório, prolatando o apelidado julgamento em substituição.
14) Por último, indique-se, que não se acompanha a fundamentação decisória em sede de “Direito”, quando se afirma estarem provados nos presentes autos factos que abalam os pressupostos em que se baseia o acto impugnado - que se indica como os relativos à celebração de um contrato de trabalho entre o A. e Recorrente e a empresa Construções L......, Lda e aos meios de subsistência que eram necessários - quando é certo que essas alegações do A. não ficaram dadas por assentes, por provadas, no segmento decisório relativo aos fundamentos de facto e esse mesmo julgamento da matéria de facto não ter sido impugnado pelo Recorrente, nem ter sido alterado por este TCAS.