Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13283/16
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:06/16/2016
Relator:NUNO COUTINHO
Descritores:ACIDENTE AUTO-ESTRADA
PRESUNÇÃO DE INCUMPRIMENTO.
Sumário:I – Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho

II – Não se mostra satisfeito tal ónus quando, numa colisão entre um veículo automóvel e um javali, apenas resulta da matéria de facto assente as características da rede que vedava a auto-estrada onde ocorreu o acidente, bem como que a mesma se encontrava, à data do sinistro, em bom estado, tendo o acidente ocorrido de noite, em troço de auto-estrada com nós de acesso livre, que não dispõe de portagens, barreiras, cabines ou pórticos ou guardas e vigilantes fixos e a concessionária não alegou quais as concretas medidas de segurança, nomeadamente o patrulhamento diurno e nocturno, que adopta tendo em vista evitar a entrada na via de animais errantes.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório

Vítor …………………… intentou contra a Estradas de Portugal, S.A. acção administrativa comum na qual peticionou fosse a ora Recorrente condenada no pagamento da quantia global de 8.624,56 €, a título de reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais causados por acidente de viação ocorrido no dia 1 de Junho de 2012, na A23.

Por sentença proferida pelo T.A.F. de Leiria foi julgada parcialmente procedente a acção tendo a ora recorrente – agora Infra-Estruturas de Portugal, S.A. – sido condenada no pagamento da quantia de 7.384,56 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, decisão da qual recorreu formulando as seguintes conclusões:

“A) O acidente dos autos consistiu no embate de um javali com uma viatura automóvel de condutor assíduo da A23, ao km 5+ l00, via aberta, com Nós de acesso livre, sem portagens fixas, cabines, guardas ou vigilantes fixos, conforme com a lei, troço sui generis e diferente de todos os demais de auto-estradas do nosso País;
B) Em todos os Nós de entrada na A23 e ao longo desta são apresentados aos condutores sinais de perigo para a possibilidade de surgimento de animais na via. sinais A 19-b e as proibições sinal C4e, atento o facto de existirem localidades próximas;
C) A EP-Estradas de Portugal, SA vedou total e longitudinalmente a A23, por imposição legal com a excepção dos Nós que não podem ser vedados, e ficou comprovado nos autos que as vedações estavam em bom estado de conservação;
D) A via estava devidamente delimitada por uma rede de vedação normalizada, com quadrados de 6 centímetros, nos seus 4 lados, rede coelheira, encimada por 2 fiadas de arame farpado de um palmo de altura perfazendo assim uma defesa da estrada na altura de 170 centímetros, bem vincada ao solo por postes de madeira, de 3 em 3 metros, cravados no solo em profundidade e que possibilitavam estar a mesma esticada e sem buracos ou espaços, conjunto apto a evitar a introdução de animais ou pessoas na estrada;
E) Nos Nós de acesso foram instaladas câmaras de videovigilância e existiam, à data do acidente, modo adequado de inspecção, fiscalização, conservação da A23, via Contrato Público de Conservação Corrente, Núcleo de Controlo de Tráfego, Brigadas de Conservação da EP, Coordenação Operacional no terreno, colaboração da Protecção Civil, GNR,, meios informáticos e sites de alerta;
F) O Tribunal a quo errou no julgamento de direito porque a Ré não omitiu nenhum dever, não praticou conduta/omissão ilícita, não infringiu as regras técnicas ou do dever de cuidado, adequou os seus meios humanos e materiais à prevenção de acidentes na A23;
G) De facto interveio no acidente dos autos um animal que, entrado por um Nó, terá tentado atravessar a via rodoviária, no que foi visto pelo condutor que o avistou, mas daí concluir que a culpa é da concessionária pública, sem mais, é redutor e simplista, levando a um injusto decisório na acção;
H) Não se está perante um simples animal, tipo canídeo, mas sim perante um animal selvagem da espécie javali e não estamos perante um normal troço de auto-estrada mas sim perante um troço aberto ao público em geral, sem condicionantes físicas tipo portagens com barreiras ou outro meio de controlo de acessos;
I) Nunca o autor teve problemas na sua elevada assiduidade de circulação no troço em causa e não era expectável o surgimento de javali na zona, mais não o sendo porque a via até estava bem defendida por robusta protecção lateral e vedação sem nenhum defeito, como foi comprovado, em toda a sua extensão;
J) A Ré provou que diligenciou pela segurança e conservação constante da A23, no troço que lhe cabe gerir, entre Zibreira, após a saída da A1, e Abrantes, e ao ser entendido aplicar o instituto da reversão do ónus da prova, a Ré logrou fazê-lo na instância porquanto demonstrou que lhe era impossível ter outra atitude em concreto;
K) A aparição do animal da espécie javali era impossível de prever no tempo, modo e lugar em que ocorreu, até perante a demonstrada diligência e especial cuidado desenvolvido ela EP -Estradas de Portugal, SA em relação à A23, conduta de que o Tribunal Administrativo de Leiria tem perfeito conhecimento, mais sendo improvável a existência de javalis no local por inexistir zona de reserva ou de caça associativa ou municipal com javalis, não ser conhecida a realização de montarias na envolvente do troço da A23 em causa;
L) O Javali é um porco selvagem, agressivo e errante, normalmente não transportado em viaturas de onde possa soltar-se para a via, sendo sabido que deambula sem possibilidade de controlo ou de monitorização, isto é, sem possibilidade de intervenção directa do homem sobre tal espécie (à excepção de zonas de caça, e mesmo assim, com dificuldade);
M) Compreende-se e aceita-se a Jurisprudência do Colendo S.T.J. mencionada na sentença ora em crise mas, a verdade é que o javali não é um canídeo e a A23, no troço dos autos, não é igual às auto-estradas da Brisa;
N) Em relação aos canídeos e outros animais, principalmente domésticos ou mais ligados ao ser humano, é possível vir a ferir-se do modo como o mesmo surge nas vias rodoviárias, seguir-se o percurso m face da existência de chip, de chapa, marca de ferro, marca de etiqueta, sendo constatável a propriedade ou proveniência, introdução do mesmo na zona da estrada, abandono negligente ou intencional;
O) O Javali não é susceptível de apropriação ou de controlo de actividade, habitat selvagem, meio ambiente, circuitos realizados porque errante, caminhos ou trilhos usados para a sua alimentação e, repete-se, é desconhecida a sua presença no troço do acidente;
P) O Tribunal a quo errou de direito ao entender se de aplicar, mutatis mutandis, o Acórdão de 22-06-2004 do Supremo Tribunal de Justiça, justiça não administrativa e que julgou um caso de responsabilidade civil contratual, com um canídeo, de relativo fácil controlo, ou de possível averiguação de proveniência, numa auto-estrada típica com portagens, barreiras físicas de entrada e cabines e funcionários fixos, para além de postos da GNR e Centros de Assistência e Manutenção;
Q) O caso sub Judice é bem diferente, trata-se de uma espécie selvagem e impossível de controlar, a auto-estrada é totalmente aberta nos acessos livres e a entidade pública reconhecidamente manteve em muito boa conservação os elementos infra-estruturais da via, para segurança dos utentes, que não pagam portagem;
R) Cada caso é um caso, e no presente é injusto decidir que a Ré tem de pagar indemnização (devia ser o do seguro do condutor) quando a mesma tudo fez para assegurar a boa qualidade da via rodoviária, nomeadamente obrigar a Ré a demonstrar as condições em que o javali surgiu à vista do condutor teve intervenção em acidente, tarefa impossível de concretizar porquanto o animal é selvagem, possante, insusceptível de monitorização, sem identificação nem zona de caça próxima;
S) O surgimento inusitado, e inesperado por todos, para além do imaginável, de javali no local dos autos, só pode ter a natureza de caso fortuito, estanho à intervenção ou responsabilidade moral da Ré, tendo o mesmo entrado por um Nó livre de acesso, de noite e sem possibilidade de ser descortinado em tempo útil;
T) Mais é sabido que, tendo o Homem vindo a destruir vários habitats e florestas, alargando os espaços habitacionais e populacionais para dentro de zonas rurais e florestais, retira espaços e alimentação a várias espécies animais que se aproximam, por necessidade e sem medo, das zonas urbanas em busca de comida, e por tal facto, em face de ligações às cidades e localidades que são atravessadas na proximidade, a concessionária púbica de estradas do nosso País (ex- EP- Estradas de Portugal, SA, hoje Infra Estruturas de Portugal, SA) teve o cuidado de colocar bem visíveis em todos os Nós de entrada na A23, no troço que está livre, e ao longo do trajecto, sinais a alertar para a eventualidade de poderem surgir animais na rodovia (muitos abandonados por pessoas sem escrúpulos que os largam na A23 deixando-os à sua sorte, nomeadamente depois da época de caça, diga-se!);
U) A sentença ora recorrida, ao condenar a Ré, violou o Artigo 486° do Código Civil, a Lei nº 67/2007 de 31/12, o Dec. Lei nº 374/2007 de 7/11, o Dec.Lei nº 380/2007 de 13/11 e o Dec. Lei nº 110/2009 de 18/5.

O recorrido renunciou ao direito de contra-alegar.

II - Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

A) No dia 01.06.2012, pelas 00.30h, ocorreu um acidente de viação na A23, ao quilómetro 5,1, atento o sentido Este/Oeste, nas proximidades de Torres Novas.
B) Foi interveniente no acidente referido em A) o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de serviço particular, da marca ……….., modelo E 220, com o n.º de matrícula …………..
C) A viatura referida em B) encontra-se inscrita no registo automóvel com direito de propriedade a favor do autor desde 12.01.2011.
D) A viatura referida em B), quando do acidente referido em A), era tripulada pelo autor e seguia no sentido Castelo Branco – Lisboa, dentro da sua mão de trânsito, na hemifaixa do lado direito da via, atento o seu sentido de marcha.
E) A viatura referida em B) seguia a velocidade não superior a 100 km/h.
F) Depois da localidade de Torres Novas, atento o sentido Este/Oeste, ao PK 5,1 da A23, surgiram súbita e repentinamente dois javalis em plena faixa de rodagem por onde circulava a viatura tripulada pelo autor, sem que este de tal se pudesse aperceber atempadamente.
G) Os javalis surgiram da berma do lado direito da A23, atento o sentido Este/Oeste, atravessando a faixa de rodagem.
H) Logo que se apercebeu da presença dos javalis na faixa de rodagem, o autor conseguiu, ainda, fazer uma manobra de emergência e contornar um dos javalis, mas não conseguiu evitar o embate do outro animal na sua viatura.
I) Deu-se, pois, o embate do Mercedes ………, na sua frente do lado direito, com um dos animais (javalis) que atravessavam a A23.
J) Na altura do acidente o tempo apresentava-se bom, o piso estava seco e o acidente ocorreu numa recta.
K) O local do acidente é uma recta, de boa visibilidade, mas não iluminado artificialmente com postes de iluminação implantados nas bermas.
L) A viatura do autor circulava sem trânsito à sua frente e de noite, com luzes de cruzamento, ou seja, faróis médios ligados.
M) Mercê do embate, um dos javalis ficou morto na valeta do lado direito da A23, atento o sentido Este/Oeste, a alguns metros de distância do veículo tripulado pelo autor.
N) O autor é utilizador assíduo da A23, utilizando-a frequentemente para as suas deslocações, sendo que até à data do acidente referido em A) não tinha tido qualquer problema na circulação da A23.
O) A A23, no troço entre Torres Novas e o Nó de Abrantes, onde se insere o local do acidente referido em A), é uma estrada aberta, tendo Nós de acesso livre, não dispondo de portagens, barreiras, cabines ou pórticos ou guardas e vigilantes fixos, e estava concessionada à aqui ré.
P) O troço em causa percorre longitudinalmente localidades urbanas, desde Torres Novas, Montalvo, Entroncamento, Constância, Abrantes, bem como zonas rurais e florestais, com ligações a cidades, e é de trânsito livre.
Q) Nas entradas dos Nós da A23, foi afixada sinalização vertical de trânsito, por segurança, informando do perigo para animais na via – nomeadamente os sinais A19-b e as proibições do sinal C4e.
R) A vedação do acesso ao troço da A23 é lateral, deixando os Nós de acesso livres para as entradas e saídas desta via rodoviária na direção das localidades que atravessa.
S) Apenas a partir do Nó do Entroncamento /Abrantes para Norte/Este, ou até tal zona, para Sul/Oeste, passa a A23 a estar totalmente vedada e com acesso vigiado e portajado, a cargo de Concessionária privada, ScutVias, SA.
T) À data do acidente, do PK 4+000 ao PK 6+000, do lado do acidente dos autos e do sentido contrário, a via rodoviária encontrava-se delimitada lateralmente por uma rede de vedação, do tipo coalheira, com uma malha quadrada normalizada, de modelo aprovado, de 6 centímetros, e era encimada por duas fiadas de arame farpado com mais um palmo de altura, perfazendo um total de cerca de 170 cm de altura.
U) A rede referida em T) estava fixada ao solo por postes de madeira, cravados em profundidade, distanciados de 3 em 3 metros, possibilitando que a malha/rede ficasse esticada e constituísse uma verdadeira vedação longitudinal à estrada.
V) Para que a rede referida em T) não fosse levantada, por pessoas ou animais, na sua fixação, na base, estava colocada em assentamento no próprio solo, de modo a eliminar qualquer buraco ou espaço entre a mesma e o nível do solo.
W) Em consequência directa do acidente acima descrito, sofreu o veículo do autor danos na parte frontal e na lateral direita, que determinaram a necessidade de reparação ao nível das portas laterais, guarda-lamas frontal direito, pára- choques da frente, farol frontal direito, e componentes internos da frente.
X) O autor participou logo no próprio dia e local do sinistro o acidente à GNR, que se deslocou ao local e lavrou auto de ocorrência, registado sob o n.º 072/2012, subscrito pelo Cabo da GNR n.º ………………, João ………, no qual se deixou consignado o seguinte:
« (Texto no original)»
Y) Avisados do acidente dos autos, os técnicos da EP foram confirmar o estado da via, as condições da infra-estrutura, as vedações entre os pontos quilométricos 4+000 e 6+000 e a vedação não estava tombada, nem destruída ou danificada à data do acidente.
Z) A 08.06.2012 o autor entregou a viatura referida em B) na oficina «Caetano Auto», em Castelo Branco, para reparação dos danos sofridos no acidente.
AA) A reparação foi feita pelo preço de € 6634,56, correspondente ao valor das peças, materiais, mão-de-obra e IVA.
BB) A «Caetano Auto» emitiu a correspondente venda a dinheiro, que foi paga pelo autor a 03.07.2012.
CC) Nesse mesmo dia 03.07.2012 a «Caetano Auto» entregou ao autor o veículo Mercedes ………...
DD) O autor ficou privado do uso do veículo, desde a data do acidente (01.06.2012) até 03.07.2012, já que só neste dia o mesmo lhe foi entregue pela oficina onde foi efetuada a reparação.
EE) O autor é empresário e comerciante e utiliza diariamente a viatura no do exercício da sua actividade profissional.
FF) O autor sentiu-se inseguro e receoso ao conduzir, em virtude do abalo que o acidente lhe causou.
GG) Durante o período de imobilização, o autor sentiu a necessidade de recorrer a viaturas emprestadas.

III - Fundamentação jurídica

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas respectivas alegações importa conhecer da pretensão recursiva formulada e que se prende com a discordância da recorrente face à decisão recorrida, que julgou verificados os pressupostos legalmente consagrados na Lei 67/2007, de 31 de Dezembro diploma que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

Apreciando:

No que respeita à responsabilidade civil por actos ilícitos e culposos preceitua o artigo 7º nº1 do referido diploma legal que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.”

De acordo com o nº 1 do artigo 8º do diploma em apreço “os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas, com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que estavam obrigados em razão do cargo.”, referindo o nº 2 do preceito em apreço que “o Estado e demais pessoas colectivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”

Por sua vez, nos termos do art. 9º do referido corpo legislativo “consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.”

De acordo com o artigo 10º, ainda da Lei supra referida, “a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.”, sendo que, de acordo com o nº 2 do preceito em apreço, “sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos.”, prevendo o nº 3 do mesmo preceito que “para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sem que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância.

A responsabilidade civil da Administração por facto ilícito assenta, assim, em pressupostos idênticos aos enunciados no artigo 483.º do Código Civil, e que são:
O facto
A ilicitude
A culpa
O dano
O nexo de causalidade entre o facto e dano

Assim sendo, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos e culposos, pressupõe a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência directa e necessária daquele.

Sustentou a recorrente ter feito prova de que agiu sem culpa, assim ilidindo a presunção – cfr. artº 350º nº 2 do Código Civil - invocando para tal, nos termos dados como assentes na decisão recorrida, que a A23, no troço entre Torres Novas e Nó de Abrantes – onde se insere o local do acidente – é uma estrada aberta, tendo Nós de acesso livre, não dispondo de portagens, barreiras, cabines ou pórticos ou guardas e vigilantes fixos; que nas entradas dos Nós da A23 estava afixada sinalização vertical de trânsito, informando do perigo de animais na via; que a vedação do acesso ao troço da A23 é lateral, deixando os Nós de acesso livre para as entradas e saídas; que à data do acidente do PK 4+000 ao PK 6+000 do lado do acidente dos autos e do sentido contrário a via rodoviária encontrava-se delimitada lateralmente por uma rede de vedação tipo coalheira, com uma malha quadrada normalizada, de modelo aprovado, de 6 centímetros, que era encimada por duas fiadas de arame farpado com mais de um palmo de altura, perfazendo um total de cerca de 170 cm de altura, rede essa fixa ao solo por postes de madeira, cravados em profundidade, distanciados de 3 em 3 metros, possibilitando que a malha/rede ficasse esticada e constituísse uma vedação longitudinal à estrada, rede essa que, para que fosse levantada, tinha sua fixação colocada em assentamento no próprio solo e que avisados dos acidente dos autos, os técnicos da EP foram confirmar o estado da vedação entre os referidos pontos quilométricos e a que a mesma não se encontrava tombada, nem destruída ou danificada à data do acidente, tendo referido que o javali é uma um porco selvagem, agressivo e errante que deambula sem possibilidade de controlo ou de monitorização referindo ter provado que diligenciou pela segurança e conservação constante da A23, no troço que lhe cabe gerir, entre Zibreira, após a saída da A1 e Abrantes.

Questão muito similar à dos presentes autos foi tratada já em dois recentes Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, o primeiro proferido em 29 de Abril de 2014 – Proc. 1230/11.5TBVIS.C1, o segundo em 14 de Abril de 2015 – Proc. 9/13 – transcrevendo-se em seguida trecho do segundo:
(…)
“A jurisprudência e a doutrina têm vindo a divergir quanto ao grau de exigência da prova a efetuar pela concessionária com vista à elisão da presunção de incumprimento dos seus deveres.

A jurisprudência maioritária dos tribunais superiores[12], nomeadamente ao nível desta relação tem vindo a considerar não bastar à concessionária a demonstração de que foi diligente, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto que levou à intromissão do animal na via e que tal processo lhe foi inteiramente alheio.

Pela nossa parte, e embora reconhecendo serem as concessionárias quem em melhores condições se encontram para averiguar das circunstancias que rodeiam os acidentes com obstáculos na via, tarefa facilitada pela obrigatoriedade de confirmação das causas do acidente pelas autoridades policiais prevista no nº2 do art. 12º, da Lei nº 24/2007, não iremos tão longe, sob pena de estarmos agora a transferir agora a concessionária a tal prova diabólica ou impossível que anteriormente se atribuía ao lesado, deturpando a natureza culposa da responsabilidade que impende sobre aquela[13].

É entendimento comum na jurisprudência que não basta a prova genérica do cumprimento dos deveres de segurança para afastar a presunção de incumprimento contida no nº1 do artigo 12º[14].

E sobretudo, não satisfará esse ónus quando, como se afirmou já por este tribunal da relação[15], a concessionária se limita a alegar e a provar medidas gerais de segurança, isto é, medidas que não tiveram como fim específico prevenir a entrada de animais na via ou detetar a sua presença nela depois da entrada deles.

Como refere Rui Mascarenhas Ataíde, “compete, pois à concessionária comprovar que cumpriu os deveres no tráfego ajustados aos riscos que lhe cabe gerir: inspeções periódicas da rede de vedação seguidas das imediatas reparações que se apresentem necessárias, patrulhamentos permanentes de vigilância e rápida remoção de quaisquer obstáculos à circulação, controlo dos nós de acesso e entrada na autoestrada, etc.. Feita a prova de se terem cumprido em concreto os deveres impostos pela diligência normativa, o risco dos acidentes de causa ignorada corre, forçosamente, por conta dos utentes[16]”.

É óbvio que a obrigação de “assegurar permanentemente a circulação da AE em boas condições de segurança e comodidade”, não pode ter o sentido de lhe ser exigível uma omnipresença na autoestrada, bastando-nos a prova de comportamentos preventivos ou reparadores situados na faixa delimitada por aquilo que, de acordo com as circunstancias, seja razoavelmente exigível, “pode mostrar-se relevante a demonstração de um esforço que exteriorizem designadamente, os meios humanos e técnicos postos ao serviço das referidas obrigações de segurança, o modo como foram concretamente aplicados, a previsibilidade dos fenómenos causadores de risco para a circulação, as cautelas adotadas tendo em conta a maior ou menor previsibilidade ou os alertas que tenham sido dados[17]”.

Quanto ao modo como cumpriu os deveres impostos pela concessão, a concessionária alegou e provou que nas imediações do local do acidente, a vedação se encontrava sem falhas, ruturas ou aberturas e que nessa data efetuaram mais do que um patrulhamento a toda a extensão da A25, um dos quais entre as 17h e 26 e as 18h 25, bem como a periodicidade com que, em regra, procedem a tais patrulhamentos.

Ora, o certo é que, apesar da ausência de falhas na vedação e do patrulhamento efetuado, o animal se introduziu na Autoestrada, desconhecendo-se por onde o mesmo terá entrado e há quanto tempo já por lá andava, sendo que, nem sequer se encontra demonstrado que os referidos procedimentos genéricos adotados pela ré fossem adequados e suficientes para evitar a introdução de animais na via e à sua rápida remoção.

Os procedimentos exigíveis e o grau de cuidado necessário – tipo de vedação a adotar, periodicidade das inspeções às vedações, bem como a periodicidade dos patrulhamentos, etc. –, terão de ser aferidos em função das características da zona e do tipo de animais aí existentes.

É a concessionária quem em melhores condições se encontra para avaliar o risco de introdução de animais naquele troço da A25 – nomeadamente de animais de grande porte, como os javalis, com maior facilidade e capacidade para destruir ou contornar, ainda que por baixo, as redes de vedação –, e em consequência, tomar as providências necessárias a diminuir ao mínimo as hipóteses da sua introdução na autoestrada, alegando quais as providências por si tomadas, a fim de o tribunal apreciar se as mesmas são abstratamente adequadas a remover eficazmente o perigo de introdução e circulação de tais animais.

Tendo o acidente ocorrido numa zona onde é frequente o aparecimento de javalis (o que ressalta dos inúmeros recursos instaurados nesta relação conexionados com a responsabilidade da A (....) pela introdução de javalis na A25[18]), impunha-se à concessionária o ónus da prova de que os seus procedimentos são adequados ao risco acrescido para a circulação daí decorrente (através do eventual reforço ou adaptação da vedação às características destes animais, de um encurtamento dos períodos de inspeção e reparação das mesmas, da aposição de câmaras de vigilância nalguns dos locais de maior perigo como o são os de inexistência de redes nas zonas envolventes aos nós de entrada e de saídas).

Por outro lado, a circunstância de se tratar de uma via sem portagens (ou com portagens virtuais), não comportando, nesses locais quaisquer barreiras físicas que possam impedir a entrada de animais nos nós de entrada e de saída, não isenta a ré de providenciar, nesses locais, por recursos aptos à deteção de animais ou ao afugentamento dos mesmos, de modo a prevenir a sua entrada[19].

Como se afirma no Acórdão deste tribunal de 09-03-2010[20], se é situação recorrente a entrada de animais na autoestrada, a concessionária não pode deixar de estudar as razões que determinaram a sua entrada e tomar as medidas necessárias para evitar que tal suceda, nomeadamente projetando e implantando uma rede que impeça a entrada de animais na autoestrada.

Ou como se escreve, igualmente a tal respeito, num outro acórdão deste tribunal[21], esta exigência probatória não se satisfaz com a demonstração de que a vedação no sublanço onde ocorreu não apresentava ruturas à data do sinistro, ou que os patrulheiros procederam a passagens no local sem terem detetado a presença de qualquer animal, sendo necessário mais, sobretudo atendendo à circunstância de os nós de acesso não terem qualquer barreira física.

Encontrando-se em causa a introdução de um javali na via, impunha-se-lhe a alegação e prova de quais as medidas de segurança específicas por si tomadas para evitar a entrada deste tipo de animais que, como foi salientado no decurso da audiência de julgamento, percorrem com facilidade vários quilómetros, vindo muitas vezes a aparecer longe do local por onde entraram, sendo insuficiente, quanto a tal aspeto, a aprova de que a rede nas imediações não apresentava estragos e qual o tipo de rede por si usada.

Não se mostrando ilidida a presunção de incumprimento, sobre a Ré/A (....) impende o dever de indemnizar, tal como foi decidido pelo tribunal recorrido.

A apelação será de improceder, confirmando-se a sentença recorrida.”

No caso em apreço e na esteira do supra parcialmente transcrito Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não basta para que se mostre ilidida a presunção consagrada na alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, os argumentos – sustentados em factos dados como assentes na decisão recorrida – aduzidos pela recorrente.

Prescreve o nº 1 do referido preceito:
“Artigo 12.º
Responsabilidade
1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.”
(…)

Na verdade, estando em causa a introdução de um javali na via, impunha-se-lhe a alegação e prova de quais as medidas de segurança específicas por si tomadas para evitar a entrada deste tipo de animais sendo insuficiente, quanto a tal aspecto, a prova de que a rede nas imediações do local do acidente não apresentava estragos e qual o tipo de rede por si usada, mesmo que esta tenha características, como as descritas na matéria de facto assente, que as tornem mais eficazes contra a intromissão de animais, ainda que erráticos e selvagens como é caso do javali.

Tendo em conta as especiais características do troço da auto estrada em apreço – cfr. item O) dos factos apurados – “A A23, no troço entre Torres Novas e o Nó de Abrantes, onde se insere o local do acidente (…), é uma estrada aberta, tendo Nós de acesso livre, não dispondo de portagens, barreiras, cabines ou pórticos ou guardas e vigilantes fixos” – e que a mesma “…percorre longitudinalmente localidades urbanas, desde Torres Novas, Montalvo, Entroncamento, Constância, Abrantes, bem como zonas rurais e florestais, com ligações a cidades, e é de trânsito livre” – cfr. item P) do probatório – e que “apenas a partir do Nó do Entroncamento/Abrantes para Norte/Este, ou até tal zona, para Sul/Oeste, passa a A23 a estar totalmente vedada e com acesso vigiado e portajado…” – item S) dos factos apurados – é legítimo concluir estarmos perante troço da A23 especialmente vulnerável à intrusão de animais, nomeadamente errantes como é o caso do javali, pelo que não basta a existência de sinalização informando para o perigo da existência de animais na via, as características da vedação existente e o facto de a mesma se encontrar em bom estado para afastar a presunção de culpa consagrada na norma supra transcrita.

Para que tal presunção fosse afastada seria necessário que fossem alegadas e provadas as medidas tomadas pela recorrente para, numa via com as características supra enunciadas, evitar a entrada de animais ou, constatada a entrada dos mesmos, a existência de mecanismos de segurança que, de forma rápida, neutralizassem o potencial perigo que representa a entrada na via dos animais, mormente durante a noite, tendo presente que o acidente ocorreu pelas 00.30 h – cfr. item A) dos factos apurados – nomeadamente através da existência de “piquetes” de intervenção, constituídas por trabalhadores da recorrente ou por esta contratados nos termos do regime da contratação pública, com o fito de assegurar tal rápida intervenção, o que não foi feito, limitando-se, aliás, a recorrente a alegar na contestação apresentada que “por lei, os funcionários da EP – Estradas de Portugal, S.A. são trabalhadores em funções públicas e o seu horário de trabalho diário normal, é das 9 às 18 hs…” – cfr. item 48º - e que “a altas horas da noite os responsáveis pela Conservação da A23 estão ligados, via rádio, às forças policiais, militares da GNR, Protecção Civil, apenas em termos de prevenção” – artº 53º - alegação manifestamente insuficiente para ilidir a presunção de culpa consagrada na alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, pelo que deve improceder o recurso, não violando a sentença recorrida as normas aplicáveis.



IV - Decisão

Assim, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 16 de Junho de 2016

Nuno Coutinho
Carlos Araújo
Rui Belfo Pereira