Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:7002/02
Secção:Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/12/2002
Relator:Francisco Rothes
Descritores:JUROS COMPENSATÓRIOS
REQUISITOS MÍNIMOS DA FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE COMUNICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS
ART. 22.º DO CPT
Sumário:I - A possibilidade concedida pelo art. 22.º do CPT visa, exclusivamente, obter a sanação da deficiência da notificação, com diferimento do início do prazo para uso dos meios graciosos ou contenciosos de impugnação, não constituindo condição para o acesso a esses meios.
II - Assim, nunca a falta de uso daquela faculdade terá como consequência a impossibilidade de invocar o vício de forma por falta de fundamentação como causa de pedir da impugnação judicial deduzida contra o acto cuja fundamentação não tenha sido comunicada ao contribuinte.
III - A falta de comunicação dos fundamentos de uma liquidação, contrariamente à falta de fundamentação, nunca poderá determinar a anulabilidade desse acto, pois não contende com a validade, mas apenas com a eficácia do acto.
IV - Os actos tributários carecem de fundamentação, que, desde logo, tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou seja, numa manifestação (declaração) exterior consubstanciada num discurso expresso num texto, não bastando que resulte implicitamente da actuação administrativa.
V - Essencial é que o discurso contextual, expresso e externado pelo autor do acto dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as circunstâncias concretas, a motivação funcional do acto, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro, permitindo àquele optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto ou a sua impugnação.
VI - A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, pelo menos, o montante de imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.
VII - Na falta de indicação desses elementos, e se eles não forem evidentes, o acto de liquidação de juros compensatórios enferma do vício de forma por falta de fundamentação, a determinar a sua anulabilidade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública (adiante Recorrente ou, de forma abreviada, RFP) junto do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto recorre para este Tribunal Central Administrativo (TCA) da sentença proferida naquele Tribunal que julgou procedente a impugnação deduzida pela sociedade denominada “T.....” (adiante Impugnante ou Recorrida) contra a liquidação adicional de IRC e derrama respeitante ao ano de 1994, na parte em teve origem nas correcções, do montante de esc. 33.252.368$00, motivadas pela não aceitação das mais-valias contabilísticas declaradas, e contra a liquidação de juros compensatórios, do montante de esc. 11.106.812$00, restringindo o recurso ao «acto de liquidação de juros compensatórios impugnado, na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.) (cfr. conclusão com o n.º 3, in fine).

1.2 Com referência ao pedido de anulação da liquidação dos juros compensatórios, a Impugnante, na petição inicial, invocou como causa de pedir a falta de fundamentação.
Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
- na sequência da correcção do lucro tributável declarado de esc. 308.244.963$00 para 367.601.902$00, a Administração tributária (AT) liquidou-lhe IRC, derrama e respectivos juros compensatórios, dos montantes de, respectivamente, esc. 21.368.498$00, 2.025.734$00 e 11.106.812$00;
- aceita as correcções que lhe foram efectuadas ao lucro tributável, com excepção da respeitante a mais valias-valias contabilísticas, do montante de esc. 33.252.368$00, motivo por que não se conforma com as liquidações de IRC, derrama e juros compensatórios a que a mesma deu lugar;
- a fundamentação de tais liquidações é a que consta da respectiva notificação que a Impugnante recebeu e de que junta cópia;
- a liquidação de juros compensatórios não se encontra «minimamente fundamentada», não dando a conhecer a razão por que foram liquidados juros compensatórios nem a forma como se efectuou essa liquidação;
- atento o disposto no art. 83.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Tributário (CPT), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/96, de 7 de Fevereiro, «resulta que a fundamentação da liquidação de juros compensatórios terá de aludir, pelo menos, ao prazo da respectiva contagem e à taxa ou taxas aplicadas».

1.3 Na sentença recorrida julgou-se a impugnação totalmente procedente, sendo que, no que respeita à liquidação de juros compensatórios, impugnada com fundamento em falta de fundamentação, o Juiz do Tribunal a quo, depois de tecer considerandos em torno na obrigação de fundamentar os actos tributários e do grau de fundamentação exigível, que considerou directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, deixou escrito: «[...] no caso dos autos – liquidação de juros compensatórios -, o grau de litigiosidade é mínimo, contudo, impõe-se que se indiquem os elementos que estiveram na base do cálculo aritmético – taxa e número de dias -, sem os quais nunca se pode apurar da legalidade daquela liquidação».

1.4 O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 A Recorrente alegou e formulou conclusões nos termos seguintes:
«
1. Não tendo a notificação do acto liquidação do juros compensatórios sido acompanhada da respectiva fundamentação, poderia a recorrida solicitar aquela fundamentação ao abrigo do Art.º 22 do CPT.
2. Não o tendo feito, não pode, posteriormente, invocar a falta de fundamentação do acto de liquidação, pois este encontra-se fundamentado.
3. Considerando que os elementos que a impugnante teve ao seu dispor lhe permitiam compreender as razões de facto e de direito da liquidação, o acto de liquidação de juros compensatórios impugnado, na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC, não sofre de qualquer vício de falta de fundamentação.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a douta sentença recorrida».

1.6 Não houve contra-alegações.

1.7 Foi dada vista ao Ministério Público junto deste TCA, que emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso.
Isto, nos seguintes termos:
«O presente recurso dia apenas respeito à liquidação dos juros compensatórios relativos à parte da liquidação não impugnada.
Ora não se encontra nos autos cópia do acto tributário que fixou esses juros. Não é, pois, possível saber se o mesmo se encontra ou não suficientemente fundamentado.
De qualquer modo, uma vez que da notificação da liquidação não consta essa fundamentação (ela já fora enviada), era à impugnante que competia lançar mão do disposto na art 22 depois CPT para que tal fundamentação lhe fosse entregue.
Não o tendo feito, não pode invocar que essa fundamentação não existe».

1.8 Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

1.9 A questão sob recurso, suscitada e delimitada pelas conclusões da Recorrente, é a de saber se a sentença fez ou não correcto julgamento de direito ao considerar que a liquidação de juros compensatórios enferma de falta de fundamentação, questão que passa também por indagar previamente se a Impugnante podia invocar em sede de impugnação e como fundamento do pedido de anulação da liquidação impugnada a falta de fundamentação, sem que previamente se tenha socorrido da faculdade que lhe concedia o art. 22.º do CPT, em vigor à data.

***

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos, que ora se reproduzem:

«a) Pelos Serviços de fiscalização tributária foi elaborado o mapa de apuramento Modelo DC – 22 relativamente à impugnante e ao exercício de 1994, no qual se acresceu ao lucro tributável a quantia de esc. 33.252.386$00, por abatimento às mais valias contabilísticas, tudo conforme documentos de folhas 23 a 29.
b) Em consequência a Administração fiscal procedeu à liquidação de IRC referente a 1994 no valor a pagar de esc. 34. 501.044$00, cuja data limite de pagamento ocorreu em 24/8/98, tudo conforme documento de fls. 21.
c) A impugnante possui viaturas que usa ao serviço quer em deslocações quer para demonstrações aos clientes, as quais estão afectas ao imobilizado – depoimento das testemunhas».

2.1.2 Com interesse para a decisão da causa e ao abrigo do disposto no art. 712.º do Código de Processo Civil, consideramos ainda como provada a seguinte matéria de facto, com interesse para a decisão a proferir e que, por respeitar ao acto impugnado e respectiva fundamentação é de conhecimento oficioso:

d) A liquidação dita em b) também teve origem noutras correcções, para além da referida em a) (cfr. cópia do mapa de apuramento modelo DC-22, de fls. 23 a 26);
e) Para notificar a Impugnante da correcção ao lucro tributável declarado, a AT remeteu-lhe cópia do mapa de apuramento modelo DC-22, bem como a declaração fundamentadora das correcções efectuadas (cfr. cópia dos referidos documentos de fls. 23 a 33);
h) Para notificar a Impugnante da liquidação dita em b), bem como para efectuar o pagamento voluntário do montante liquidado, a AT remeteu-lhe o documento de cobrança com cópia a fls. 21, do qual consta a «nota demonstrativa da liquidação do imposto» (cfr. o documento de fls. 21);
i) Desse documento, mais concretamente, da referida “nota demonstrativa” consta que do montante liquidado, no total de esc. 34.501.044$00, a quantia de esc. 11.106.812$00 provém de juros compensatórios (cfr. o documento de fls. 21);
j) Não existe qualquer declaração fundamentadora da referida liquidação de juros compensatórios (cfr. o mesmo documento de fls. 21 e n.ºs 2.1 e 2.2 da informação elaborada pela Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária, de fls. 49 a 52, a fls. 51).

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência da análise da declaração de rendimentos apresentada pela Contribuinte ora recorrida com referência ao ano de 1994 e da acção de fiscalização desenvolvida junto da Contribuinte, a AT procedeu a diversas correcções do lucro tributável declarado, no montante total de esc. 59.356.939$00, e, consequentemente, a liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios.
A Contribuinte não aceitou uma dessas correcções, a respeitante a mais valias contabilísticas, do montante de esc. 33.252.368$00, e interpôs impugnação judicial contra a liquidação, na parte em que teve origem nessa correcção.
Impugnou também a liquidação de juros compensatórios, com fundamento em falta de fundamentação.
A sentença recorrida julgou a impugnação totalmente procedente e anulou a liquidação adicional de IRC na parte em que teve origem na referida correcção, bem como anulou totalmente a liquidação de juros compensatórios.
A Recorrente não se conformou com a sentença no que respeita à anulação total da liquidação de juros compensatórios, resultando das suas alegações de recurso e respectivas conclusões que, na tese dela, tal anulação só se justifica em relação à parte da liquidação adicional de IRC que foi anulada e já não na parte restante.
Isto, em síntese, porque a liquidação de juros compensatórios não enferma do vício que lhe foi assacado pela Impugnante e que determinou o Juiz da 1.ª instância a anular tal acto: a falta de fundamentação.
Segundo a Recorrente, a liquidação de juros compensatórios está devidamente fundamentada e, ademais, a Impugnante nem sequer podia invocar tal vício uma vez que não usou da faculdade que lhe era concedida pelo art. 22.º do CPT.
Assim, a questão a apreciar e decidir, como ficou já dito, é a de saber se a sentença fez ou não correcto julgamento de direito ao considerar que a liquidação de juros compensatórios enferma de falta de fundamentação.
Previamente, haverá que indagar se a Contribuinte podia invocar em sede de impugnação judicial e como fundamento do pedido de anulação da liquidação impugnada a falta de fundamentação, sem que previamente tenha feito uso da faculdade que lhe concedia o art. 22.º do CPT, em vigor à data.

2.2.2 DA FALTA DE USO DA FACULDADE CONCEDIDA PELO ART. 22.º DO CPT

Sustenta a Recorrente, depois de distinguir falta de fundamentação «do mero facto de a notificação da fundamentação não acompanhar a notificação do acto», que, porque a Recorrida não pediu a notificação da fundamentação nos termos do art. 22.º do CPT, «não pode, posteriormente, invocar a falta de fundamentação do acto de liquidação» (cfr. conclusão com o n.º 2).
Salvo o devido respeito, a Recorrente não faz correcta interpretação do disposto no art. 22.º do CPT.
Vejamos:
A Constituição da República Portuguesa (CRP) impõe, não só a fundamentação dos actos administrativos, como também a notificação da mesma aos interessados (cfr. art. 268.º, n.º 3 (() Tendo-se em conta que à data da prática do acto impugnado a versão da CRP em vigor era a da Lei Constitucional n.º 1/97.)). Que os contribuintes têm direito ao conhecimento da fundamentação do acto tributário, a qual lhes deverá ser notificada com a notificação daquele, resultava à data também do art. 21.º, n.º 2, do CPT.
Nos termos do art. 22.º do CPT, que constituiu uma inovação deste código inspirada no art. 31.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho – Lei de Processo nos Tribunais Administrativos –, se a notificação do acto tributário (() Ou outra decisão em matéria tributária.) não contiver a sua fundamentação legal (() Ou a contiver mas com omissão dos respectivos requisitos.), o contribuinte, nos trinta dias seguintes à notificação ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação, se inferior, pode requerer a notificação da declaração fundamentadora ou a passagem de certidão que a contenha (cfr. n.º 1), sendo que, se usar dessa possibilidade, o início do prazo para reclamar ou impugnar judicialmente o acto se difere para a data da notificação ou da entrega da certidão requerida (cfr. n.º 2).
Como resulta clara e inequivocamente desse preceito, bem como dos arts. 97.º, n.º 1, e 120.º do CPT, a possibilidade concedida pelo art. 22.º do CPT visa, exclusivamente, obter a sanação da deficiência da notificação, com diferimento do início do prazo para uso dos meios graciosos ou contenciosos de impugnação, não constituindo condição para o acesso a esses meios. Na verdade, no CPT, em vigor à data, como actualmente no Código de Procedimento e Processo Tributário, não conhecemos disposição legal que imponha condição alguma para a reclamação ou para a impugnação judicial deduzidas com fundamento em vício de forma por falta de fundamentação.
Assim, o facto de a Recorrida não ter usado da faculdade prevista no art. 22.º do CPT, contrariamente ao que sustenta a Recorrente, não a impede de impugnar a liquidação do acto tributário em causa com fundamento em falta de fundamentação. A Recorrida corre é o risco de que a fundamentação exista, pese embora não lhe tenha sido comunicada, e, consequentemente, de ver fracassar a impugnação deduzida com aquele fundamento, risco que não correria se previamente se tivesse certificado, através da referida faculdade, da existência da fundamentação do acto impugnado.
A própria Recorrente parece ter-se dado conta de que assim é pois, na parte final da conclusão com o n.º 2, apesar de ter dito que a falta de uso pela ora recorrida da faculdade prevista no art. 22.º do CPT não permitia a esta, «posteriormente, invocar a falta de fundamentação do acto de liquidação», logo acrescentou «pois este encontrava-se fundamentado». Ora, mal se compreenderia esta parte final da conclusão com o n.º 2 no caso de se entender que a invocação da falta de fundamentação tinha como requisito prévio o uso da faculdade prevista no art. 22.º do CPT.
Do que vimos de dizer resulta que a única questão que realmente importa é a de saber se a liquidação estava ou não fundamentada e não a de saber se tal fundamentação foi ou não notificada à Contribuinte, pois esta irregularidade da notificação, tal como a própria falta de notificação, como é sabido (() Vide, VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pág. 58, e PAULO FERREIRA DA CUNHA, O Procedimento Administrativo, pág. 194.) e constitui jurisprudência pacífica (() Por todos, e com abundante referência à jurisprudência, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de Janeiro de 2002 e 24 de Abril de 2002, proferidos nos processos com os n.ºs 26.367 e 26.636, respectivamente, publicados integralmente no site da Direcção-Geral dos Serviços Informáticos do Ministério da Justiça (http://www.dgsi.pt).) não releva para efeitos da validade do acto, mas apenas para efeitos da sua eficácia relativamente ao notificado. Na verdade, o acto de notificação de um acto administrativo ou tributário é um acto exterior e posterior a este e os vícios que afectem a notificação, podendo determinar a ineficácia do acto notificado, são insusceptíveis de produzir a sua invalidade por não terem a ver com o próprio acto ou com os seus pressupostos.
No âmbito do direito tributário, o art. 64.º do CPT, em vigor à data, dizia expressamente que «os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam notificados», revelando inequivocamente que a falta de comunicação da fundamentação do acto, que deve constituir uma das dimensões da notificação, apenas contende com a eficácia do acto.
Ora, o que aqui está em causa é a validade do acto de liquidação de juros compensatórios (foi com base na invalidade deste acto que a sentença recorrida o anulou) e não a eficácia dele, sendo que a ineficácia não é sequer susceptível de constituir causa de pedir do pedido de anulação, apenas tendo como efeito o não se iniciar o prazo para a reclamação graciosa ou para a impugnação judicial e podendo constituir fundamento de oposição à execução fiscal através da qual a AT pretenda cobrar coercivamente o montante liquidado (cfr., actualmente, os arts. 77.º da Lei Geral Tributária, e 204.º, n.º 1, alínea i), do CPPT).
Assim, nunca o recurso poderia proceder com o primeiro dos fundamentos invocados pela Recorrente, sendo afinal a única questão a conhecer a de saber se a sentença fez ou não correcto julgamento quando anulou a liquidação de juros compensatórios por considerar que a mesma padece do vício de falta de fundamentação.
É dessa questão que passaremos a conhecer de seguida.

2.2.3 FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO

Considerou o Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto que a liquidação de juros compensatórios enferma do vício de forma por falta de fundamentação.
Isto, porque, apesar de admitir que as exigências de fundamentação no caso da liquidação de juros compensatórios são diminuídas, porque «o grau de litigiosidade é mínimo», sempre se impunha que fossem indicados «os elementos que estiveram na base da cálculo aritmético – taxa e número de dias -, sem os quais nunca se pode apurar da legalidade daquela liquidação».
A Recorrente discorda desse entendimento, argumentando que o acto de liquidação dos juros compensatórios, «na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC, não sofre de qualquer vício de falta de fundamentação» pois «os elementos que a impugnante teve ao seu dispor lhe permitiam compreender as razões de facto e de direito da liquidação» (cfr. conclusão com o n.º 3).
Ficou dito no acórdão deste TCA de 29 de Outubro de 2002, proferido no processo com o n.º 7003/02, em que se suscitou a mesma questão, mas com referência a ano diferente:

Não indicou a AT «quais as razões de facto e de direito que justificam tal liquidação de juros compensatórios - nada dizendo, em suma, sobre a taxa ou as taxas aplicáveis, o montante ou os montantes de imposto sobre os quais incide a taxa ou as taxas, e o período de tempo em que os juros compensatórios são exigíveis, em relação ao objecto que nos ocupa: o «acto de liquidação de juros compensatórios impugnado, na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC» (consoante os dizeres da própria recorrente Fazenda Pública).
E o que é facto é [que] nem ao menos nesta instância de recurso a recorrente Fazenda Pública vem explicar o iter cognitivo fundamentador do «acto de liquidação de juros compensatórios impugnado, na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC».
Como assim, é legítimo deduzir que não é apenas a impugnante, ora recorrida (e o Tribunal) que não dispõem dos elementos necessários à compreensão suficiente das razões de facto e de direito do acto de liquidação de juros compensatórios em causa.
É a própria recorrente Fazenda Pública que parece não conhecer os concretos fundamentos do «acto de liquidação de juros compensatórios impugnado, na parte não impugnada da liquidação adicional de IRC».
Pelo que, e em resposta ao thema decidendum, devemos concluir que a liquidação de juros compensatórios, respeitante à parte não impugnada da liquidação adicional de IRC, sofre do vício de falta de fundamentação.
Deste modo, deve ser negado provimento ao recurso, e confirmada a sentença recorrida, na parte em que a mesma vem posta em causa».

Concordamos integralmente com tal decisão.
Apesar de a Recorrente afirmar que o acto de liquidação dos juros compensatórios está fundamentado, não podemos concordar com ela. Vamos procurar demonstrar porquê:
A fundamentação é um dos elementos constitutivos do acto, acarretando a sua falta, obscuridade, contradição ou insuficiência a anulabilidade do acto. O dever de fundamentação, como ficou dito acima, mereceu consagração constitucional (art. 268.º, n.º 3, da CRP) e era também imposto pelos arts. 19.º, alínea b), 21.º, n.º 1, e 82.º do CPT, em vigor à data.
Como a doutrina e a jurisprudência têm vindo a repetir desde há muito (() Vide o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Março de 1987, proferido no processo com o n.º 24.169 e publicado no Boletim do Ministério Justiça n.º 365, págs. 426 a 437.), a fundamentação tem duas funções: uma de natureza endógena, decorrente dos princípios da legalidade, da justiça e da imparcialidade que se impõem a toda a actuação da Administração, e que exige que as decisões administrativas, nomeadamente os actos administrativos e tributários apareçam na ordem jurídica como conclusões de um processo lógico coerente e sensato e resultado de um exame sério e imparcial dos factos e das disposições legais a considerar em cada caso; outra de natureza exógena, externa ou garantística, que é a de permitir ao cidadão o conhecimento dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a autoridade administrativa a decidir da forma concreta que o fez e, assim, permitir-lhe optar conscientemente entre a aceitação da decisão administrativa, aceitando a sua legalidade, ou reagir contra ela por via administrativa ou contenciosa.
É hoje também pacífico que a fundamentação «tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou dito de outro modo, revelada por uma manifestação (declaração) exterior consubstanciada em um discurso de autoria, expresso em um texto, «não bastando que resulte implicitamente da actuação administrativa», acessível ou clara, congruente e suficiente, como hoje expressamente aponta o texto constitucional e constava já antes do art. 1.º do DL n.º 256-A/77, de 17 de Junho, embora o conteúdo de uma fundamentação suficiente varie de acordo com as circunstâncias concretas, entre as quais avultam as do tipo de acto, as da participação e qual a sua extensão ou a não participação dos interessados no procedimento anterior conducente à decisão» (() Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Dezembro de 1999, proferido no processo com o n.º 24.143, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Setembro de 2002, págs. 4118 a 4127, sendo a citação aí feita de VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pág. 24.).
Essencial é que o discurso contextual, expresso e externado pelo autor do acto dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as aludidas circunstâncias, todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que foram a sua motivação orgânica ou, como impressivamente tem vindo desde há muito a referir a jurisprudência (() Vide o acórdão de 14 de Dezembro de 1989, publicado nos Acórdãos Doutrinais, n.º 341, pág. 680.), os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro.
No caso sub judice a AT não aduziu qualquer fundamento para a liquidação dos juros compensatórios, não externou qualquer declaração, por mínima que fosse, respeitante aos fundamentos de facto e de direito desse acto.
Abrimos aqui parêntesis para, regressando à questão que abordamos em 2.2.2 e sempre salvo o devido respeito, referir que também por isso não faz qualquer sentido a argumentação de que a Impugnante deveria ter usado a possibilidade que lhe concedia o art. 22.º do CPT. Na verdade, na ausência da externação de qualquer discurso fundamentador da liquidação de juros compensatórios, o requerimento para ser notificado dessa fundamentação nunca poderia ser satisfeito. Note-se que a única fundamentação admitida é a que seja contemporânea do acto ou, quando muito a que seja aduzida dentro do prazo da impugnação contenciosa, não sendo admissível a fundamentação sucessiva ou a posteriori. Ou seja, não podia a AT, subvertendo a finalidade para a qual foi criado o art. 22.º do CPT, pretender fundamentar a liquidação na sequência do pedido de comunicação dos fundamentos do acto.
Inexistindo no caso sub judice qualquer declaração fundamentadora, parece não existir dúvida alguma quanto à verificação do vício de forma por falta de fundamentação.
Será que, como decorre das alegações da Recorrente, tal fundamentação seria dispensável ? Na verdade, apesar de na parte final da conclusão com o n.º 2 a Recorrente afirmar que o acto de liquidação dos juros compensatórios está fundamentado e de na conclusão com o n.º 3 dizer que «os elementos que a impugnante teve ao seu dispor lhe permitiam compreender as razões de facto e de direito da liquidação», do teor das suas alegações parece antes resultar que tal fundamentação seria dispensável.
Vejamos detalhadamente a argumentação da Recorrente, transcrevendo os arts. 5.º a 9.º das alegações de recurso:

« 5.º
[...] , são devidos juros compensatórios relativamente ao acréscimo de matéria colectável (26 104 571$00) não impugnada que resultou da acção inspectiva.


6.º
Para o cálculo do montante exacto dos juros será suficiente a aplicação de alguns normativos legais (Art.ºs 69.º n.º 1, 71º n.º 2 e 89º-D do CIRC), visto tratar-se de uma simples operação matemática.

7.º
Mais se diga que a recorrida não pode desconhecer estes mecanismos básicos dado estarmos perante um imposto que funciona por autoliquidação, nos termos do Art.º 96º CIRC.

8.º
Os juros compensatórios serão devidos, nos termos do Art.º 80º CIRC (conjugado com o Aviso 5/94 de 30 de Setembro), pelo retardamento da liquidação de parte do imposto por facto imputável ao contribuinte, ou seja, pela diferença entre o que já foi pago e o remanescente.

9.º
Trata-se portanto de uma prestação certa, líquida e exigível, que tem como fundamento os resultados da acção inspectiva com os quais a recorrida se conformou e a lei, cuja ignorância não poderá favorecer a recorrida».

Ou seja, com excepção da referência feita neste art. 9.º - de que a liquidação «tem como fundamento os resultados da acção inspectiva com os quais a recorrida se conformou e a lei, cuja ignorância não favorece a recorrida» -, toda a argumentação da Recorrente vai no sentido de que é dispensável a fundamentação da liquidação dos juros compensatórios.

Recordemos agora a disposição legal que, à data da liquidação, regulava os juros compensatório, ou seja, o art. 83.º do CPT, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/96, de 7 de Fevereiro:

«1. Em caso de atraso na liquidação por motivo imputável ao contribuinte, são devidos juros compensatórios.
2. Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, da entrega do imposto retido ou do que o devia ter sido ou do cumprimento da obrigação, até ao suprimento ou correcção da falta que motivou o retardamento da liquidação.
3. Os juros compensatórios não serão devidos, em caso de erro do contribuinte evidenciado na declaração, a partir dos 180 dias posteriores à apresentação desta ou, em caso de falta apurada em acção de fiscalização, a partir dos 90 dias posteriores à sua conclusão.
4. A taxa de juros compensatórios corresponde à taxa básica de desconto do Banco de Portugal em vigor no momento do início do retardamento depois da liquidação do imposto, acrescida de cinco pontos percentuais».

Ficou já dito que as exigências de fundamentação variam conforme as circunstâncias concretas, designadamente o tipo de acto, a não participação do interessado no procedimento anterior ao acto ou, no caso da participação, a extensão desta. No que respeita aos juros compensatórios, admitimos, tal como o Juiz da 1.ª instância, que as exigências de fundamentação sejam reduzidas ao mínimo. Eventualmente, ainda que com algumas reservas, admitimos que nem sequer se exija a referência à norma legal ao abrigo do qual os juros foram liquidados, pois é do conhecimento geral que se o atraso na liquidação do imposto devido for imputável ao contribuinte há lugar à liquidação de juros compensatórios. No entanto, há uma declaração mínima que se nos afigura indispensável para que se cumpram as exigências legais de fundamentação que visam, afinal, que o contribuinte possa optar conscientemente entre o conformar-se com o acto, aceitando a sua legalidade, ou contra ele reagir administrativa ou contenciosamente. Nesse conteúdo mínimo da declaração fundamentadora deverá conter-se a referência ao montante de imposto sobre o qual foram liquidados os juros compensatórios, à taxa ou taxas aplicáveis e ao período de tempo em que tais juros são exigíveis.
Só perante esses elementos o contribuinte poderá verificar se a liquidação foi ou não efectuada de acordo com a lei.
Ora, no caso sub judice não há indicação de qualquer desses elementos: apesar de a Contribuinte poder intuir que os juros compensatórios terão sido liquidados sobre o imposto liquidado adicionalmente em virtude das correcções que lhe foram efectuadas ao lucro tributável, não pode saber se assim foi ou não, uma vez que não há qualquer indicação de que os juros compensatórios liquidados tenham sido calculados sobre esse montante de imposto; não há referência alguma à taxa ou taxas aplicadas na liquidação dos juros; não há referência alguma às datas que foram consideradas como sendo as do início e do termo do prazo de contagem desses juros.
Nem se diga, como a Recorrente, que se trata de mera operação aritmética, pois antes da aplicação da taxa ao montante de imposto, essa sim mera operação aritmética, haverá que determinar qual o imposto sobre o qual devem ser liquidados os juros, qual a taxa ou taxas aplicáveis e qual o período sobre o qual devem ser contados.
Assim, concluímos, tal como na sentença recorrida, mas agora apenas em relação à parte sob recurso, que a liquidação dos juros compensatórios não está fundamentada, motivo por que aquela sentença, nessa parte, não é merecedora da nossa censura.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I – A possibilidade concedida pelo art. 22.º do CPT visa, exclusivamente, obter a sanação da deficiência da notificação, com diferimento do início do prazo para uso dos meios graciosos ou contenciosos de impugnação, não constituindo condição para o acesso a esses meios.

II – Assim, nunca a falta de uso daquela faculdade terá como consequência a impossibilidade de invocar o vício de forma por falta de fundamentação como causa de pedir da impugnação judicial deduzida contra o acto cuja fundamentação não tenha sido comunicada ao contribuinte.

III – A falta de comunicação dos fundamentos de uma liquidação, contrariamente à falta de fundamentação, nunca poderá determinar a anulabilidade desse acto, pois não contende com a validade, mas apenas com a eficácia do acto.

IV – Os actos tributários carecem de fundamentação, que, desde logo, tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou seja, numa manifestação (declaração) exterior consubstanciada num discurso expresso num texto, não bastando que resulte implicitamente da actuação administrativa.

V – Essencial é que o discurso contextual, expresso e externado pelo autor do acto dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as circunstâncias concretas, a motivação funcional do acto, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro, permitindo àquele optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto ou a sua impugnação.

VI – A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, pelo menos, o montante de imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.

VII – Na falta de indicação desses elementos, e se eles não forem evidentes, o acto de liquidação de juros compensatórios enferma do vício de forma por falta de fundamentação, a determinar a sua anulabilidade.

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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida, na parte sob recurso.

Sem custas.

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Lisboa, 12 de Novembro de 2002