Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1356/10.2BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:ANA PINHOL
Descritores:IVA
ARTIGOS 19º Nº 2 E 36º DO CIVA
Sumário:I. O artigo 36º do CIVA estabelece determinados requisitos na emissão de facturas ou documentos equivalentes que são condição para a dedução do imposto por parte do sujeito passivo adquirente nos termos do artigo 19º nº 2 do mesmo Código.
II. Se os vícios formais contidos na factura ou documento equivalente não permitirem a exacta cobrança e respectiva fiscalização do imposto, o direito à dedução do IVA não pode ser exercido.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I.RELATÓRIO
M..., LDA, dizendo-se inconformada com a sentença do TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ..., datada de 31 de Maio de 2016 que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra os actos de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios, do ano de 2006, veio dela interpor o presente recurso.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«A- O Recorrente entende que se encontra indevidamente julgada a matéria fáctica constante das respostas de não provado dadas aos seguintes factos descritos nos Art° 27° a 31° da p.i.:

- as operações constantes nas facturas em causa mostram-se descriminadas do modo usual na grande maioria, senão mesmo totalidade, das operações idênticas efectuadas em território nacional;

- as quais vêm sempre sendo aceites pela Administração Fiscal sem qualquer reparo ou advertência - à excepção de quando, como na situação "sub judice", as mesmas são analisadas no âmbito de investigação por suspeita de fraude fiscal, ou calendarização;

- razão porque os contribuintes na sua boa-fé processam do modo usual aquelas facturas nos moldes das ora postas em causa pela A.F.

- Ou seja, não fora o facto de tais facturas terem sido analisadas no âmbito da investigação de suspeita de fraude fiscal efectuada pela A.F. à identificada sociedade M..., Lda;

- as mesmas teriam sido consideradas pela A.F. como cumprindo com os requisitos estabelecidos no CIVA.

B- dado duma análise atenta das declarações prestadas pelas acimas identificadas testemunhas da Recorrente e Recorrida, conjugados com os documentos juntos aos autos, impunham que fosse dada a decisão de provados.

C- Do depoimento daquelas testemunhas impõe-se ainda que fosse dado como provado que as facturas em causa se encontram preenchidas de forma usual e de acordo com os "ensinamentos" e instruções dos próprios técnicos tributários.

D- Para tanto basta analisar atentamente o conteúdo da prova testemunhal transcrita em IV – nº1, 2, 3 e 4 que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos.

E- Ou seja, o Mmo Senhor Juiz "a quo" só não deu como provados tais factos, não porque duma análise criteriosa dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento, conjugados com o conteúdo dos documentos juntos aos autos, tal não devesse resultar como provado, mas antes e apenas porque nenhuma relevância deu àqueles depoimentos na parte em que neles se referem à matéria fáctica alegada nos Art°25° a 33° da p.i., por erroneamente entender que tal matéria fáctica nenhuma relevância tinha para a situação em apreço, conforme tudo melhor se alcança duma simples leitura atenta da D. Sentença ora recorrida.

F- Deveria ainda em consequência o Mmo Senhor Juiz "a quo" considerar que as facturas em causa preenchem todos os requisitos legais, quer porque atento a natureza e multiplicidade das operações a que respeitam não se poderá considerar exigível a descrição de todos eles nas facturas, mesmo que possível na prática,

G- quer porque se encontram preenchidos de forma usual, e de acordo com os "ensinamentos" dos próprios Técnicos Tributários, razão porque a Administração Fiscal ao longo de vários anos vem aceitando nos pedidos de dedução de IVA, em situações perfeitamente idênticas às dos presentes autos, sob pena de se violar frontalmente o disposto na alínea b) do n°5 do Art°35° do CIVA e os princípios da justiça material, legalidade e proporcionalidade consagrados nos Art°5°, 8° e 55° da LGT, no próprio Preâmbulo da alteração ao Cód.Proc.Civil dado pelo Dec.Lei 329-A/95 de 12 Dez., Art°5° e 6° do CPA e Art°46° do CPPT e Art°266° e 268° ambos da CRP.

H- Acaso assim se não entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, sempre deveria o Mmo Senhor Juiz "a quo", julgar procedente por provado o invocado abuso de direito na actuação da Administração Fiscal - Art°334° do Cód.Civil.

Deverá assim revogar-se a D. sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue a presente impugnação procedente por provada, anulando-se em consequência as liquidações ora impugnadas, sob pena de se violar o disposto na alínea b) do n°5 do Art°5° do CIVA, os princípios da justiça material, legalidade e proporcionalidade consagrados nos Art°5°, 8° e 55° da LGT, no Preâmbulo do C.P.C, constante do Dec.Lei 329-A/95 de 12 Dez., Art°5° e 6° do C.P.A., Art°46° do CPPT, Art°266° e 268° da CRP e Art°662° do CPC.

Termos em que não certamente pelo alegado, mas principalmente pelo alto critério de V.Exas, dando-se provimento ao recurso, será feita como sempre a tão costumada JUSTIÇA»

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foi dada vista ao MINISTÉRIO PÚBLICO e a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 178/180 dos autos, no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Foram colhidos os vistos aos Exmos Juízes Adjuntos, pelo que vem o processo submetido à Secção do Contencioso Tributário para julgamento do recurso já que nada a tal obsta.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações extraídas pela recorrente as questões a decidir são as seguintes:
- se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto quando não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas
ouvidas, no sentido de poder concluir, que «as facturas em causa se encontram preenchidas de forma usual e de acordo com os "ensinamentos" e instruções dos próprios técnicos tributários»;
- se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto e erro de julgamento de direito ao considerar que os documentos
identificados como as facturas n.ºs 103, 104, 105, 106, 129, 130 e 131, emitidas pela sociedade «M..., ..., Lda» não reuniam os requisitos do artigo 36° n° 5 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA);
- se a sentença recorrida padece de erro de julgamento ao julgar
improcedente o invocado abuso de direito.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DOS FACTOS
Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto e indicou-se a respectiva fundamentação nos seguintes termos:

«A)
Em 18-02-2010 os Serviços de Inspeção tributária da Direção de Finanças de ... emitiram a ordem de serviço de inspeção interna nº01201000437 relativa ao sujeito passivo M..., Lda., de âmbito parcial ao IVA do ano de 2006. - [cfr.fls. 1 do processo administrativo apenso].

B)
Em 18-01-2010 os Serviços de Inspeção tributária da Direção de Finanças de ... iniciaram o procedimento de inspeção ao abrigo da ordem de serviço referida na alínea anterior, concluído em 16-03-2010, onde consta como fundamentos das correções à matéria coletável, designadamente, o seguinte: "(...) as faturas nºs. 103, 104, 105, 106 129, 130 e 131 emitidas pela M..., Lda. ao cliente M..., Lda., NIPC 504 626 981, foram obtidas através da circularização feita a este cliente.
Analisadas as faturas constatou-se que a emissão das mesmas não cumpre com os requisitos estabelecidos no nº5 do artº36º do Código do Imposto sobre o Valor acrescentado (CIVA) nomeadamente porque não distinguem a venda de material da cedência de pessoal, não indicam a quantidade de material fornecido, o nº de horas de mão de obra utilizada e os respetivos preços unitários e a data em que os bens foram colocados à disposição e os serviços foram prestados. As faturas em causa contêm os seguintes elementos:

Factura0 Data Descrição Base IVA Total
103 02-11-2006 Substituição de telhado por cobertura dupla
20.790,00
4.385,90
25.155,90
104 06-11-2006 reforçar gradeamentos e monta-tos
2. 277.00
478,17
2.765,17
105 09-11-2006 Desmontar casa máquinas e aplicá-la noutro local
3. 564,00
748,44
4.312,44
106 10-11-2006 Fornecimento e montagem de estantes
24. 750.00
5.197,50
29.947.50
129 28-11-2006 reforçar tampas de fosso
2.574,00
540,54
3.114,54
130 30-11-2006 reparação de telhado e aplicação de material
4.861,00
1.018,71
5,889,71
131 30-11-2006 abertura de sapatas e alteração de tubagens
4.554,00
956,34
5.510,34
63.360,00
13.305,60
76.665,60

NOTA: facturas- contabilizastes em Dezembro 2008
As faturas 103 e 106 foram contabilizadas em imobilizado tendo o IVA das mesmas sido contabilizado na conta 2432221 no valor total de € 9.563,40. As restantes faturas foram contabilizadas em custos do exercício, conta 622321 e o IVA foi contabilizado na conta 2432321 no valor global de € 3.742,20 (Anexo 2). Assim, o sujeito passivo deduziu indevidamente o IVA constante destas faturas por força do disposto no nº2 do artº19º do CIVA, o qual ascende a € 13.305,60, (...). – [cfr. fls. 5 e 6 do processo administrativo apenso].

C)
Com data de 13-06-2006 a sociedade M... ..., Lda. apresentou à ora impugnante Orçamento com o seguinte teor:


[cfr. fls. 10 dos autos].


D)
Com data de 18-04-2006 o M... ..., Lda. apresentou à ora impugnante Orçamento com o seguinte teor:

[cfr. fls. 8 dos autos].
E)
As faturas identificadas no relatório de inspeção referido em B) têm o seguinte teor:
“Imagens no original”

-[cfr. fls. 11 a 17 dos autos].

F)
Em 18-05-2007 a ora impugnante emitiu à ordem de M..., Lda, o cheque nº9138043044 sob o B..., no montante de €46.718,10. –[cfr. fls. 19 dos autos].

G)
Em 03-07-2007 a ora impugnante emitiu à ordem de M..., Lda, o cheque nº5538043145 sob o B..., no montante de €29.947,50. –[cfr. fls. 21 dos autos].

H)
As obras de remodelação nos dois Pavilhões da impugnante a que reportam as faturas em causa nestes autos só foram pagas após o empreiteiro ter efetuado algumas rectificações pretendidas. – [cfr. depoimento de D...].»

Consta ainda da decisão, a título de factos não provados, que «Não se vislumbram outros factos alegados cuja não prova seja relevante para a decisão dos presentes autos.».

E, em sede fundamentação da decisão de facto, que: «A convicção do Tribunal que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou na análise dos documentos constantes dos autos e no processo administrativo apenso, bem como no depoimento das testemunhas arroladas, conforme se refere em cada uma das alíneas do probatório.
Foi ponderado e valorado o depoimento das testemunhas J…, D..., P…, J… e A…, que depuseram de forma clara, coerente e sem contradições, convencendo o tribunal da sua veracidade. Porém, limitaram-se a confirmar, no essencial, a matéria de facto alegada, sem que dos mesmos se pudesse retirar qualquer outro facto relevante para a decisão a proferir, para além do facto dado como provado.
Foi ponderado e valorado o depoimento de M…, inspetora tributária, autora do relatório de inspeção em causa que, no essencial, confirmou o conteúdo do relatório mas sem que do seu depoimento resultasse qualquer facto relevante para a decisão a proferir.».
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DO ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
Segundo a perspectiva da recorrente a sentença sob recurso errou no julgamento efectuado quanto à matéria de facto constante nos artigos 25° a 33° da p.i., quando não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas ouvidas (J, D..., P, J e A), no sentido de poder concluir, que «as facturas em causa se encontram preenchidas de forma usual e de acordo com os "ensinamentos" e instruções dos próprios técnicos tributários».
Reportando-nos aos “factos” enunciados pela recorrente, pode afirmar-se que estão em causa, expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos valorativos e conclusivos [artigos 23º, 24º, 25º, 26º, 27º (matéria conclusiva); artigo 28º, 29º, 30º e 31º (juízo valorativo); artigo 32º e 33º (significado eminentemente jurídico)] que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam, razão pela qual se mostra vedada a pretendida inclusão na matéria de facto.
Sempre se dirá, no entanto, que pretendendo a recorrente impugnar a matéria de facto, haveria que cumprir o ónus que sobre si recaia, ao abrigo do disposto no artigo 685.º-B, n.ºs 1 e 2 do CPC, o que manifestamente não ocorreu. Pois que, se atentarmos á motivação e conclusões de recurso verificamos que a recorrente se limita a fazer referência aos às “testemunhas” o que não satisfaz minimamente a exigência legal, pois não indica quais as testemunhas cujos depoimentos levariam a decidir de forma diferente, nem tão pouco se vislumbra a mínima alusão a qualquer passagem dos depoimentos em que se fundamente o erro na apreciação das provas a determinar julgamento da matéria de facto em sentido diverso.
Eis por que o recurso improcede, quanto a esta 1ª questão.

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B.DE DIREITO

Os acto de liquidação impugnados (IVA e juros compensatórios referente ao ano de 2006) foram emitidos na sequência das correcções levadas a cabo pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) consubstanciadas no não reconhecimento do direito da impugnante, ora recorrente, à dedução do IVA que lhe foi liquidado nas facturas emitidas pela sociedade «M... ..., Lda» no pressuposto de que tais facturas não cumpriam os requisitos previstos no artigo 36º do Código do IVA, porquanto «[n]ão distinguem a venda de material da cedência de pessoal , não indicam a quantidade de material fornecido, o n.º de horas de mão de obra utilizada e os respectivos preços unitários e a data em que os bens foram colocados à disposição e os serviços foram prestados.».

O Tribunal Administrativo e Fiscal de ... julgou a impugnação judicial improcedente, com a seguinte argumentação: «Quanto á fatura 103, de 02-11-2006, com a descrição "Substituição do telhado do armazém por cobertura dupla (isolada)", apenas indica, de forma genérica, o tipo de serviço prestado, não identificando (denominando) os bens usados, nem a respetiva quantidade e correspondentes preços unitários. Ou seja, não distingue o valor relativo aos bens consumidos na cobertura do valor correspondente à sua montagem ou colocação, gastos com pessoal.
Da mesma forma a fatura 104, de 06-11-2006 com a descrição "Reforçar os gradeamentos e montá-los novamente", somente indica genericamente o serviço prestado sem identificação dos bens consumidos correspondente ao reforço e o valor referente à montagem, relativo a pessoal.
Também a fatura 105, de 09-11-2006, com a descrição "Desmontar casa das máquinas e aplicar todo o material noutro local", faz uma referência genérica ao serviço prestado sem qualquer indicação da quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados.
No que respeita à fatura 106, de 10-11-2006, relativa a "Fornecimento de estantes para o armazém de produtos acabados, incluindo montagens", também não efetua a destrinça entre o valor correspondente aos bens fornecidos do valor aplicado à montagem.
A fatura 129, 28-11-2006, com a descrição "Reforçar as tampas do fosso para passagem da rede de águas", não menciona o material utilizado e o pessoal afeto à tarefa.
A fatura 130, 30-11-2006, respeitante a "Reparação do telhado incluindo todos os materiais necessários para o mesmo", também não identifica os materiais usados na sua execução e a mão de obra utilizada.
A fatura 131, 30-11-2006, relativa à "Abertura de sapatas e alteração de tubagens para mudança da máquina de 300 toneladas", à semelhança das anteriores, faz uma referência genérica aos serviço prestado e omite a quantidade e a denominação dos bens usados na alteração das tubagens, e os respetivos gastos com pessoal.
Portanto, as faturas mencionadas limitam-se a uma breve e genérica descrição do serviço prestado, sem qualquer indicação quanto aos bens transmitidos e mão-de-obra utilizada, não cumprindo com o requisito da alínea b) do n° 5 do artigo 35º do Código do IVA.».

A recorrente discorda do decidido, advogando em síntese que as facturas em causa se encontram preenchidas de forma usual e de acordo com os "ensinamentos" e instruções dos próprios técnicos tributários.

Vejamos, então.

A título preliminar, deve recordar-se que, o IVA é um imposto geral sobre o consumo que incide sobre as transmissões de bens, as prestações de serviços, as importações e as operações intracomunitárias efectuadas no território nacional - artigo 1º do CIVA.

É jurisprudência assente do Tribunal de Justiça (TJ) que o IVA é cobrado sobre cada prestação de serviços e sobre cada entrega de bens, efectuadas a título oneroso por um sujeito passivo (v., neste sentido, acórdão de 29 de Outubro de 2009, SKF, C-29/08).

Como já afirmámos (no acórdão deste TCA de 10.07.2015, proferido no processo n.º 3655/09) o exercício do direito à dedução do IVA consubstancia uma das principais características deste tributo, tudo em conformidade com o regime consagrado na Sexta Directiva de 1977 (directiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17/5/1977), mais exactamente no seu artigo 17º, preceito que consagra as regras de exercício do direito à dedução do imposto, contemplando diversos requisitos objectivos e subjectivos do exercício do mesmo direito.

O artigo 28º, n.º 1, alínea b), do CIVA, estabelece como obrigação dos sujeitos passivos de IVA «Emitir uma factura ou documento equivalente por cada transmissão de bens ou prestação de serviços».

Embora a lei não nos dê uma definição legal de factura, «O vendedor não pode recusar ao comprador a facturas das coisas vendidas e entregues, com o recibo do preço ou da parte de preço que houver embolsado» - e, bem assim, a sua inclusão no título XIV - «DA COMPRA E VENDA» -, permite-nos concluir que factura é o «documento emitido pelo vendedor, destinado ao adquirente e que deve, ao menos, identificar os intervenientes e as mercadorias objecto de transacção.» (Acórdão do STA de 17.02.1999, proferido no processo n.º 20.593, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Maio de 2002, págs. 646 a 651).

Assim, chama-se factura ao documento em que o vendedor faz a discriminação completa das mercadorias que venda ao comprador e em que indica as despesas que efectuou, bem como as vantagens que concede nos preços e as condições de entrega e de pagamento (Herculano Curvelo e Campos Laires, “O imposto de transacções sobre as mercadorias”, pág. 502).

O artigo 36º do CIVA estabelece determinados requisitos na emissão de facturas ou documentos equivalentes que são condição para a dedução do imposto por parte do sujeito passivo adquirente nos termos do artigo 19º nº 2 do mesmo Código.

O certo é que a norma do artigo 19° do CIVA não nos esclarece sobre qual é a "forma legal" que exige. Mas o diploma diz-nos, adiante, nas várias alíneas do n° 5 do artigo 36°, que as facturas ou documentos equivalentes devem ser datados, numerados sequencialmente e conter os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente, bem como os correspondentes números de identificação fiscal dos sujeitos passivos de imposto; conter a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; conter o preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável; e conter as taxas aplicáveis e o montante de imposto devido.

Daqui resulta, pois, que, para o CIVA, uma factura passada em forma legal é a que respeite o estatuído no seu artigo 36°, ou seja, que para tal efeito, a factura que não respeite todas estas exigências não é uma factura passada em forma legal.

Neste conspecto, nem pode dizer-se que este artigo 36º permite distinguir entre falta de forma legal e falta de elementos meramente acessórios, não essenciais, que só podem levar ao suprimento da falta.

É que, o legislador estabeleceu, no artigo 19° n° 2 do CIVA, duas condições para a dedução do imposto: que ele esteja mencionado em factura ou documento equivalente e que essa factura ou documento equivalente esteja "em forma legal".

De resto, tem sido entendido pelo Tribunal de Justiça (TJ) que: «[o] princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, requisitos adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.» (acórdão de 1 de Março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski, C-280/10, disponível em texto integral em http://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d5a51810b1b4044da5a5e6e553e1346ba6.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuObNr0?doclang=PT&text=&pageIndex=0&part=1&mode=DOC&docid=119903&occ=first&dir=&cid=738798).

Volvendo ao caso dos autos, cabe aferir se as facturas em causa se encontram ou não preenchidas em conformidade com a alínea b) do n.º5 do artigo 36º do CIVA, segundo a qual « As facturas ou documentos equivalentes devem ser datados, numerados sequencialmente e conter os seguintes elementos: (…) b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi colocada a sua devolução;».

Vejamos, então.

A expressão «quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos bens necessários à determinação da taxa aplicável» tem como finalidade permitir quer ao cliente quer à AT controlarem se a taxa incidente sobre o valor tributável é a correcta. (neste sentido, entre muitos outros, vide acórdão deste TCA de 19.05.2009, proferido no processo n.º 26/09, disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Pois bem, as facturas n.ºs 103, 104, 105, 106, 129, 130 e 131, emitidas pela sociedade «M..., ..., Lda» não preenchem os requisitos legais a que se refere a alínea b) do n.º 5 do artigo 36º do CIVA, porquanto, não descriminam, nem identificam, a parte correspondente à aplicação de materiais da parte relativa à mão de obra, bem como, não descriminam os bens/materiais usados e correspondentes preços unitários.

Desde modo, os apontados vícios formais das facturas em causa para além de inviabilizarem a cobrança exacta do imposto (por se desconhecer a realidade sobre o qual o IVA incide) não permitem a respectiva fiscalização da aplicação do imposto pela AT.

E, como todos sabemos o combate à fraude, à evasão fiscal e aos eventuais abusos é um objectivo reconhecido e incentivado pelas directivas da União em matéria de IVA. (v. acórdão Surgicare ¯ Unidades de Saúde, SA/Fazenda Pública, C-662/13, de 12 de Fevereiro de 2015, disponível em texto integral em http://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d53924406f85f14593ad93a9fde2f54638.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuSbxj0?doclang=PT&text=&pageIndex=0&part=1&mode=DOC&docid=162245&occ=first&dir=&cid=396208)

Ora, sendo assim, não pode afirmar-se que na situação das facturas em juízo tenha sido, pelas razões já ditadas, plenamente atingida a ratio legis inerente ao citado artigo 36° do CIVA, ou seja, possibilitar à AT uma forma segura de verificar da adequação da base tributável e respectiva taxa de imposto aplicável a cada situação em concreto.

E, por, isso, no caso que nos ocupa, atendendo à factualidade que vem provada, as facturas em questão não dão direito à dedução do IVA pago (nº 2 do artigo 19° do CIVA).

Improcede, pelo exposto o recurso nesta parte.

Na Conclusão restante do seu recurso (H), a recorrente enquadra a actuação da AT na figura do instituto do “abuso de direito”, mas sem razão, adiantamos nós.

Vejamos porquê.

Estatui o artigo 334º do Código Civil que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».

Como muito bem observou o acórdão do STA de 19.05.2005, proferido no processo n.º 209/05: « (…) a figura do abuso do direito constitui, como a jurisprudência e a doutrina vêm assinalando, uma válvula de segurança destinada a ultrapassar situações de chocante e reprovável injustiça decorrentes do exercício de um direito conferido por lei, as quais, a não serem removidas da ordem jurídica, iriam ferir o sentimento de justiça prevalente na comunidade social (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa, Direitos das Obrigações, 5 edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4 edição, notas ao artigo 334.º).» (disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Trata-se aqui, portanto, da utilização de um poder contido na estrutura do direito, para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio desse direito, ou do contexto em que ele pode ser exercido.

Tal não sucedeu no nosso caso, como já afirmamos.

Com efeito, a actuação da AT não é susceptível de ser enquadrada no abuso de direito, pela simples razão que se limitou a actuar no cumprimento do seu dever de defender a legalidade, não excedendo os limites impostos pela boa fé.

Assim sendo, improcede também a conclusão H e, em consequência, o recurso.

IV.CONCLUSÕES

I. O artigo 36º do CIVA estabelece determinados requisitos na emissão de facturas ou documentos equivalentes que são condição para a dedução do imposto por parte do sujeito passivo adquirente nos termos do artigo 19º nº 2 do mesmo Código.

II. Se os vícios formais contidos na factura ou documento equivalente não permitirem a exacta cobrança e respectiva fiscalização do imposto, o direito à dedução do IVA não pode ser exercido.

V. DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2016.




[Ana Pinhol]


[Jorge Cortês]


[Cristina Flora]