Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12086/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/11/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE, ÓNUS DA PROVA, PRESUNÇÃO
Sumário:I – A ação de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa é uma ação de simples apreciação negativa conforme descrita no CPC, natureza essa imposta pela disciplina conjunta contida na Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade.

II – Como tal, está sujeita ao imposto no artigo 343º, nº 1, do C. Civil, sob pena de se ter de concluir que o legislador ordinário foi irracional ao impor ao MP uma prova impossível ou manifestamente irrazoável.

III – O nosso regime jurídico de aquisição da nacionalidade portuguesa por estrangeiros não contém qualquer presunção legal de existência da ligação efetiva à comunidade nacional; a existir, seria um paradoxo no contexto das regras previstas na Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· O M.P. intentou

Processo especial de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra

· ALEXANDRE ……… (daqui em diante Réu ou R.), casado, de nacionalidade brasileira, nascido em ….., …………, República Federativa do Brasil (de ora em diante apenas Brasil), residente na Rua ……, ……, ……….. ….., 04557-000 SP, Brasil.

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Por sentença de 24-6-14, o referido tribunal decidiu absolver a ré do pedido, julgando a ação improcedente.

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Inconformado, o a. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Este tribunal tem sempre presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida socioeconómica submetida ao bem comum e à suprema dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa lei fundamental; (iii) os princípios ou máximas estruturantes do Estado de Direito (ex.: a juridicidade, a segurança jurídica e a igualdade); (iv) as normas que exijam algo de modo definitivo e ou as normas que exijam uma otimização das possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através de uma ponderação racional e justificada; e (v) a máxima da unidade e coerência do nosso sistema jurídico, bem como, sempre que possível e necessário, as máximas metódicas da igualdade e da proporcionalidade.

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Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

A)

«O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio» (cf. o artigo 3º/1 da LN: Lei 37/81, com ultima alteração pela Lei Org. 2/2006; e o artigo 14º do RN).

É o caso presente.

Segundo o artigo 9º da atual LN, «constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;

b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro».

«As declarações para fins de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, prestadas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º devem conter obrigatoriamente a declaração sobre os factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa» (artigo 35º/1/b) do RN).

«As declarações e os requerimentos para efeitos de nacionalidade são instruídos com os documentos necessários para a prova das circunstâncias de que dependa a atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa e com os demais documentos necessários para a prática dos correspondentes atos de registo civil obrigatório» (artigo 37º/1 do RN).

«Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional» (artigo 57º/1 do RN).

Ora, neste recurso a questão essencial reporta-se ao ónus da prova em sede do previsto no artigo 9º/a) da atual Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade (DL 237-A/2006).

Face ao teor das normas citadas, não temos a mínima dúvida de que este processo contencioso é uma ação declarativa de simples apreciação negativa (artigo 10º/3/a) do NCPC), por isso sujeita ao imposto no artigo 343º/1 do CC, que dispõe sabiamente que nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (cf., sobre esta importante matéria, P. LIMA/A. VARELA, C.C.Anot., I, notas aos artigos 342º e 343º; MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, V, 2011, capítulo VII; RITA LYNCE DE FARIA, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa, Lex, 2001).

Note-se, aliás, que aqui o autor, MP, não está a invocar nenhum direito (seu, substantivo), na terminologia do artigo 342º/1 do CC.

A aplicação do artigo 343º/1 do CC é ainda mais justificada pelo facto óbvio de que a tese contrária exigiria normalmente do MP uma prova verdadeiramente impossível, sobretudo por causa da impossibilidade jurídica e constitucional de o MP invadir a vida privada e social do interessado. A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do interessado no pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa.

Exigir neste contexto a aplicação do artigo 342º/1 do CC, além de ilegal, seria irracional ou ilógico.

Portanto, interpretando as leis como manda o artigo 9º do CC, conclui-se que decorre do artigo 343º/1 do CC, das 2 normas referidas da LN e das 4 normas referidas do RN que, nas ações de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa com fundamento na al. a) do artigo 9º da LN, é o réu quem tem o ónus de provar a factualidade integrante da pretensão que o interessado quis fazer valer junto das autoridades administrativas portuguesas.

De tal pretensão faz parte, como requisito, a existência de ligação efetiva à comunidade nacional; a disciplina pormenorizada contida no RN é muito clara nesse sentido. E, adjetivamente, os artigos 343º/1 do CC e 9º/a) da LN comprovam-no.

Não há, assim, qualquer ilegalidade nesta interpretação, com referência à atual LN e aos artigos 32º/2 («Salvo tratando-se de atribuição de nacionalidade mediante inscrição de nascimento no registo civil português, as declarações referidas no número anterior podem ainda constar de impresso, de modelo a aprovar por despacho do diretor-geral dos Registos e do Notariado, podendo ser apresentadas nas extensões da Conservatória dos Registos Centrais ou enviadas, por correio, para a mesma Conservatória, ou por via eletrónica, nas condições que vierem a ser fixadas por portaria do Ministro da Justiça») ou 57º (1) do RN de 2006.

B)

Finalmente, sublinhemos ainda que a aquisição da nacionalidade por via do casamento não se inclui entre os casos que, por força do artigo 6.º/1 da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade (que o Estado Português ratificou em 2000), devam corresponder a uma aquisição da nacionalidade automática. De acordo com os artigos 3.º/1 e 6.º/4 da citada Convenção, o ordenamento jurídico português deve prever a aquisição da nacionalidade por parte do cônjuge do nacional, mas tal aquisição deverá respeitar os requisitos estabelecidos para o efeito no direito interno.

C)

Ora, a conclusão pela existência ou não de ligação efetiva ou pertença à comunidade nacional terá de resultar da ponderação de um conjunto de circunstâncias, como é o caso do domicilio, da estabilidade da fixação, da família, relevando a nacionalidade portuguesa do cônjuge e dos filhos, da atividade económica ou profissional, do conhecimento da língua falada ou escrita, dos usos, costumes e tradições, da história, da geografia, do convívio e integração nas comunidades portuguesas, das relações sociais, humanas, de integração cultural, da participação na vida comunitária portuguesa, designadamente, em associações culturais, recreativas, desportivas, humanitárias e de apoio, isto é, de todos os aspetos familiares, sociais, económico- profissionais, culturais e de amizade reveladores de um sentimento de pertença à comunidade portuguesa em Portugal ou no estrangeiro, relevando para tanto todos os elementos ou fatores suscetíveis de revelar a efetiva inserção do interessado na cultura e no meio social nacional que no caso concorram.

Tem, pois, de haver factualidade que aponte para uma integração na sociedade portuguesa, uma vez que só esta permite conhecê-la, partilhar dos seus valores, inteirar-se dos seus problemas, e deste modo, contribuir para a expressão da cultura e melhoria das condições de vida dos portugueses.

É claro que isso não existe no caso presente, com a referida factualidade, aliás muito parca.

D)

Por último, e para efeitos dos arts. 344º/1 e 350º CC, cabe sublinhar que, ao contrário do referido na sentença recorrida, não existe neste tipo de situações qualquer presunção legal (art. 349º CC) ilidível (pelo MP) da ligação efetiva à comunidade nacional prevista na LN e no RN, i.e., de que todo o cidadão estrangeiro que declare/deseje querer ser cidadão português (e com a respetiva documentação, válida para toda a U.E.), que seja casado com um cidadão português (natural ou nacionalizado), tem em princípio a ligação (efetiva) à comunidade nacional prevista na LN e no RN.

Na verdade, haveria um paradoxo: a LN e o RN exigiriam expressamente a invocação e prova administrativa da efetividade da cit. ligação, mas, simultaneamente, presumiriam tal ligação. Não tem sentido.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul, de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a ação procedente, condenado a ré no pedido formulado pelo M.P., com o arquivamento do p.a. iniciado pelo interessado.

Sem custas.

Lisboa,

(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) 1 - Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior.
2 - Excetua-se do disposto no número anterior a aquisição da nacionalidade por parte de quem a tenha perdido, no domínio do direito anterior, por efeito do casamento ou da aquisição voluntária de nacionalidade estrangeira.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o interessado deve:
a) Apresentar certificados do registo criminal, emitidos pelos serviços competentes do país da naturalidade e da nacionalidade, bem como dos países onde tenha tido e tenha residência;
b) Apresentar documentos que comprovem a natureza das funções públicas ou do serviço militar prestados a Estado estrangeiro, sendo caso disso.
4 - A declaração é, ainda, instruída com certificado do registo criminal português sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do n.º 7 do artigo 37.º
5 - O conservador ou o oficial dos registos pode, mediante requerimento do interessado, fundamentado na impossibilidade prática de apresentação dos documentos referidos na alínea a) do n.º 3, dispensar a sua junção, desde que não existam indícios da verificação do fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade, que esses documentos se destinavam a comprovar.
6 - A Conservatória dos Registos Centrais deve solicitar as informações necessárias às entidades referidas no n.º 5 do artigo 27.º, sendo aplicável o disposto nos nºs 6 e 7 do mesmo artigo.
7 - Sempre que o conservador dos Registos Centrais ou qualquer outra entidade tiver conhecimento de factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade, por efeito da vontade ou por adoção, deve participá-los ao Ministério Público, junto do competente tribunal administrativo e fiscal, remetendo-lhe todos os elementos de que dispuser.
8 - O Ministério Público deve deduzir oposição nos tribunais administrativos e fiscais quando receba a participação prevista no número anterior