Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1259/23.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/11/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:IPDLG; RECOLHA DE DADOS BIOMÉTRICOS
FACTOS CONCRETOS
FALTA DE PRESSUPOSTOS/109.º, N.º 1, DO CPTA
INDISPENSABILIDADE; SUBSIDIARIEDADE
REJEIÇÃO LIMINAR
Sumário:I - O concreto pedido de agendamento para a recolha de dados biométricos, porque se trata de um meio ou diligência instrutória com vista a fazer prosseguir o respectivo procedimento administrativo e, desse modo, possibilitar ao interessado a emissão do título de residência, não está, à partida, arredado das possibilidades que são conferidas pelo processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
II - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
III - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
IV - “In casu”, faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - Relatório.

J..., cidadão de St. Kitts and Nevis, residente nos Estados Unidos da América, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa deduziu intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o Ministério da Administração Interna, doravante Recorrido, com vista à intimação do Recorrido para, no âmbito do procedimento de autorização de residência com fundamento em actividade de investimento, adoptar todos os actos materiais necessários à concretização de tal pretensão, nomeadamente, o agendamento de uma data para a recolha dos seus dados biométricos, e que, em consequência, seja emitida a peticionada autorização de residência, inconformado que se mostra com a sentença do TAC de Lisboa, de 29/04/2023, que julgou verificada uma situação de “inadequação absoluta da forma de processo utilizada”, “que conduz à nulidade de todo o processo (sem possibilidade de aproveitamento ou convolação)”, e que decidiu o “indeferimento liminar da petição inicial”, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:

A. A Sentença proferida no dia 29 de abril de 2023, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, no âmbito do processo n. 1259/23.0BELSB, contém, salvo o devido respeito pela Mma. Juiz a quo, inequívocos erros de julgamento;

B. Com efeito, ao decidir pela rejeição liminar da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias requerida, o Tribunal a quo errou na apreciação dos factos submetidos à sua consideração e, consequentemente, na correspetiva interpretação e subsunção jurídica;

C. Em concreto, errou este Tribunal ao considerar que a Entidade Requerida não está sujeita a um prazo vinculativamente fixado na lei para realização da diligência requerida, nomeadamente o agendamento da recolha de dados biométricos;

D. Da conjugação do preceituado nos artigos 13.º, n.º 1 e 5.º do CPA resulta que a Administração tem o dever de decidir os assuntos submetidos à sua consideração, devendo fazê-lo de forma célere, eficaz e desburocratizada;

E. De resto, contrariamente ao entendimento plasmado na decisão recorrida segundo o qual “[t]ais agendamentos [de recolha de dados biométricos] dependerão sempre dos critérios de oportunidade/disponibilidade do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”, a verdade é que do n.º 1 do artigo 82.º da Lei n.º 23/2007, resulta, com meridiana clareza, que a Lei impõe ao Recorrido que decida os pedidos de concessão de autorização de residência no prazo máximo de 90 dias;

F. Naturalmente, neste período – que deve ter início após o pagamento da “taxa de análise” do pedido – encontram-se englobados os trâmites procedimentais necessários e conducentes à tomada de decisão, entre os quais a prévia aprovação da candidatura (que teve já lugar a 07 de setembro de 2021) e subsequente recolha dos dados biométricos, que constitui a “próxima etapa” do procedimento;

G. Ainda que se considere que este prazo não vincula a Entidade Requerida na fase em apreço – o que não se concede – sempre terá de se entender que não se “cai num vazio” regulamentar ou legal relativamente ao cumprimento do dever de decisão, porquanto o que se verifica é a que a atuação desta entidade se encontrará sujeita ao prazo supletivo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 86.º do CPA – neste sentido veja-se a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa proferida a 15.05.2023, relativa ao Proc.932/23.8BELSB e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17.11.2022 proferido no âmbito do Proc. 872/22.8 BELSB;

H. Atento o exposto, e descendo ao caso concreto, é inevitável constatar que, contrariamente ao que resulta da decisão recorrida, não só não existem dúvidas da vinculação do Recorrido a prazos legais de decisão, como também é inquestionável que estes prazos, sob qualquer perspetiva, encontram-se largamente ultrapassados;

I. Ao decidir de forma divergente, incorreu a sentença recorrida num erro de apreciação dos pressupostos de Direito, donde resulta que deve a mesma ser integralmente revogada, pois a inexistência de prazos vinculativos para a Entidade Recorrida neste contexto foi, precisamente, o obstáculo determinante para a rejeição liminar da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias do Recorrente;

J. Sem prejuízo – e a acrescer – ao considerar que a pretensão do Recorrente não tem cabimento em qualquer forma processual (urgente ou não urgente), nega o Tribunal a quo o acesso a uma tutela jurisdicional efetiva ao aqui Recorrente;

K. Como é sabido, a Lei Fundamental pátria consagra no seu texto o direito efetivo de todos os cidadãos de “Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efetiva”, nos artigos 20.º e 268.º, sendo ambos os preceitos mencionados “Direitos Fundamentais”, preceitos que garantem a possibilidade de o cidadão apelar para uma decisão jurisdicional acerca de uma questão que o oponha à Administração;

L. Não é, no entanto, suficiente que a lei assegure essa possibilidade; há que garantir os meios necessários para que a garantia em causa seja efetiva;

M. De facto, de nada vale ao particular que a lei preveja a possibilidade de utilização de meios processuais de caráter urgente – como é o caso da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias – se os pressupostos para o seu deferimento se revelarem de impossível verificação;

N. Ou, mais grave ainda, se, como sucede no caso concreto, os tribunais se recusarem, sequer, a apreciar os fundamentos da intimação que se peticiona, pelo facto de, aparentemente, a ordem jurídica não oferecer resposta adequada;

O. Ora, na situação aqui em apreço – e ao contrário do que resulta da decisão recorrida – o Recorrente está convicto de que o legislador proporcionou ao particular e, em última análise, ao julgador, as ferramentas e mecanismos que possibilitam a concretização material do princípio em referência, através do recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias (artigos 109.º a 111.º do CPTA);

P. Em causa está uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias com vista, concretamente, à realização de uma operação material, integrada no procedimento para obtenção de uma ARI, que, para além de revistar manifesta urgência – pois o Recorrente está com a vida “em suspenso” desde o final de 2021, conforme se concretizou na petição inicial – não se coaduna com qualquer com qualquer tutela meramente provisória;

Q. Ou seja, a presente intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é, tal como resulta da exigência de subsidiariedade que preside a esta forma processual urgente, absolutamente indispensável, por não ser suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, de acordo com o disposto no artigo 131.º, n.º 1 do CPTA;

R. Em situações em tudo idênticas, este Tribunal a quem legitimou já o recurso à figura da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, tal como é exemplo o caso refletido no já citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17-11-2022 (Proc. 872/22.8 BELSB), no qual, embora o thema decidendum fosse para além desta questão, se assume que a decisão recorrida proferida pelo TAC Lisboa “andou bem” ao intimar o SEF para “confirmar e aprovar o registo do 1º requerente e possibilitar o agendamento necessário para que aquele pudesse efectuar a entrega do pedido de ARI” (i.e. a diligência de recolha de dados biométricos): «32. Por outro lado, pressupondo a autorização de residência para actividade de investimento, nos termos do disposto nos artigos 90º-A da Lei nº 23/2007, e 65º-A e 65º-D do Decreto Regulamentar nº 84/2007, a verificação e a prova de um conjunto de requisitos, que só ao SEF caberia avaliar, entendeu a decisão recorrida – e bem, adiantamos nós – que bastaria a intimação daquele serviço para, no prazo de 10 dias, confirmar e aprovar o registo do 1º requerente e possibilitar o agendamento necessário para que aquele pudesse efectuar a entrega do pedido de ARI e do pedido de reagrupamento familiar num dos locais de atendimento do SEF, seguindo-se após isso a tramitação subsequente, com a entrega da documentação legalmente exigida, recolha de dados, pagamento das taxas devidas, etc.»

S. Ao mesmo passo, embora em relação a uma tipologia de autorização de residência distinta da ARI, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29-11-2022 (Processo: 661/22.0BELSB), defende também a desadequação dos meios cautelares antecipatórios para acautelar devidamente a posição jurídica do lesado: «No caso, o uso de meios cautelares, nomeadamente antecipatórios, mostrar-se-iam os mesmos inidóneos, pois a atribuição de uma providência desse tipo implicaria a atribuição efetiva, durante o tempo em que decorresse o processo principal, da indicada autorização de permanência ou de residência. Isto é, o uso da tutela cautelar antecipatória equivaleria à atribuição de facto, efetiva, do direito que só por via do processo definitivo havia de ser concedido, sobrepondo-se tal tutela àquela que pudesse corresponder à do processo principal. A tutela cautelar aniquilaria os efeitos que resultariam de uma hipotética procedência do pedido feito no processo principal, isto pelo menos no iter processual desse processo principal. Por seu turno, como decorre do acima assinalado, o uso de um meio principal, não urgente, não acautelaria, em tempo útil, a situação do Recorrente».

T. Em boa verdade, assim como se descreveu na petição inicial, a intimação requerida é o único meio de reação possível de ser utilizado pelo Recorrente, sabendo que a mesma nem seria necessária se a Entidade Requerida tivesse atuado no estrito cumprimento da lei e no respeito pelos mais elementares princípios constitucionais respeitantes à atividade administrativa;

U. Por fim, a acrescer ao vem dito, o Despacho de rejeição de que ora se recorre, vai também frontalmente contra aquela que é a jurisprudência assente em matéria de apreciação preliminar de um requerimento inicial, segundo a qual, no essencial, o recurso ao despacho de rejeição deve ser a última ratio, ou seja, a única solução legalmente admissível face aos elementos, de facto e de direito, que foram levados ao conhecimento do tribunal.– vd. Acórdão do TCA Norte, de 02.10.2020, tirado no processo n.º 01049/20.2BEBRG

O Recorrido, citado para os termos da causa e do recurso, não apresentou resposta nem contra-alegou.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.

O parecer do MP foi notificado às partes.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.


***
II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir no recurso “sub judice”, resumidamente, os seguintes temas:
i) Saber se o julgamento do Tribunal a quo sobre o pedido de agendamento para a recolha de dados biométricos se mostra acertado;
ii) Saber se, face ao caso concreto, estão verificados, ou não, os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA para o accionamento da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
***
III - Matéria de facto.
Tendo presente que a decisão recorrida não fixou matéria de facto e que o ora Recorrente nada impugna sobre tal temática no recurso que interpôs, concluímos que, face à delimitação supra do objecto do recurso, não se mostra necessário nesta instância recursiva proceder à fixação de qualquer probatório.
***
IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito e o dispositivo da sentença recorrida, transcrevendo-se os seguintes excertos:
Da (in)adequação do meio processual utilizado (intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias)
A forma de processo é estabelecida pela lei, por referência aos diferentes tipos de pretensões que podem ser deduzidas em juízo (Cf. artigo 20.º da Lei Fundamental; e artigo 2.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), sendo que a propriedade ou adequação da forma de processo afere-se pela pretensão que se intenta ou deseja valer, ou seja, pelo pedido formulado.
Ora:
O processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 109.º do CPTA, configura um meio processual urgente, de natureza principal e não cautelar, que pode ser requerido quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º.
(…)
Assim, a idoneidade desta intimação depende, pois, (i) da urgência da tutela requerida, (ii) da imprescindibilidade de uma tutela urgente definitiva (subsidiariedade), e (iii) da existência de direitos fundamentais passíveis de tutela jurisdicional ao abrigo dos artigos 109.º e ss. do CPTA.
Subjacente à necessidade da intimação urgente e definitiva existe uma situação de urgência, mas para a qual não servem as vias processuais comuns, porque são lentas demais, nem serve a medida cautelar urgentíssima. E esta não serve por uma razão: porque é uma medida cautelar e, por isso, porque é caracterizada pela provisoriedade. E, não satisfazendo no caso concreto o regulamento provisório, ela deve ser preterida perante o processo urgente que julgue definitivamente o mérito da causa.
Nestes termos, ao requerente da intimação cabe o ónus de alegação e a prova da factualidade necessária à caracterização de uma situação de ameaça iminente ou do início da lesão do direito invocado, provocada pelo agir administrativo, que não possa ser evitada pelo recurso aos restantes meios processuais, observando-se a regra geral de repartição do ónus da prova estabelecida no artigo 342.º do Código Civil. É momento de reverter ao caso concreto.
Alega o requerente que se encontra à espera do agendamento/designação da data para a recolha dos seus dados biométricos e que, com tal circunstância, se encontra impossibilitado de ver satisfeito o seu direito a obter uma autorização de residência a seu favor.
Consequentemente:
Pede que a entidade requerida seja intimada a designar a data para a recolha dos dados biométricos do requerente e, consequentemente, mediante o pagamento das taxas que se mostrem devidas e verificada a conformidade da documentação e demais pressupostos para o efeito, seja emitida a autorização de residência em causa. Subsidiariamente, caso o circunstancialismo alegado não se mostre de molde a decretar a presente intimação, requer a notificação do requerente nos termos do disposto no artigo 110.ºA do CPTA.
Ora:
O pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação, traduzindo-se na providência que solicita ao Tribunal (Cf. artigo 581.º n.º 3 do CPC).
Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado.
Vimos, nas linhas que antecedem, que o meio processual previsto no artigo 109.º n.º 1 do CPTA justifica-se quando seja necessária a célere emissão de uma decisão de mérito.
Ante o exposto, emerge a pergunta:
É possível a este Tribunal proferir uma decisão de mérito quanto a um pedido de intimação da entidade requerida para designar a data para a recolha dos dados biométricos do requerente, e isto para lá dos (3) três pressupostos específicos acima enunciados (urgência, subsidiariedade e existência de direitos fundamentais passíveis de tutela)?
Vejamos.
Depois de prever no artigo 2.º o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos particulares perante a Administração, o CPTA estabelece, no artigo 3.º n.º 1, que «[n]o respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação».
Trata-se, esta última, de disposição essencial para a abordagem liminar do presente litígio, na medida em que o mesmo exige, precisamente, uma correta definição dos limites funcionais dos poderes deste Tribunal Administrativo.
Assim, importa desde logo reter a ideia, resultante do citado artigo 3.º n.º 1, de que o princípio da plena jurisdição dos Tribunais Administrativos não pode ser entendido de modo ilimitado. Na verdade, existem zonas de atuação da Administração em que os Tribunais Administrativos não se podem introduzir. Não se quer dizer, com isso, que existem matérias no âmbito das quais os Tribunais Administrativos não podem exercer qualquer controlo. O que está em causa, sim, e apenas, é a natureza do poder exercido em cada caso pela Administração, o que implica apurar se determinada atuação se mostra vinculada, isto é, moldada por regras jurídicas que determinam esse concreto modo de agir, ou discricionária, caso em que essa determinação legal não existe. Tal não significa, obviamente, que não existam aspetos que, no exercício da atividade discricionária, se mostrem submetidos ao total controlo judicial. Eles existem. No entanto, são apenas os aspetos vinculados dessa atividade discricionária (como, por exemplo, a competência) ou os limites externos a qualquer atividade administrativa, tais como os princípios a que a mesma deve obedecer, cuja inobservância (no caso da atividade discricionária) é sempre judicialmente sindicável (v.g. o princípio da proporcionalidade).
De qualquer modo, e isso é que importa evidenciar, existe uma reserva de discricionariedade da Administração. Portanto, existem «[v]ínculos jurídicos a condicionar, de qualquer modo, a atuação da Administração no caso em apreço, e pede-se ao tribunal que averigue da sua existência e (em caso afirmativo) que os torne efetivos, ou não há vínculos desses e o Tribunal só pode abster-se de julgar a conduta administrativa. Naqueles aspetos em que as decisões concretas da Administração relevam de uma qualquer opção discricionária ou de uma margem de apreciação ou valoração autónoma, os tribunais administrativos – não conseguindo formular sobre essa opção um juízo de desconformidade com o bloco legal que lhe é aplicável – ficam, por lei, proibidos de exercer um controlo sobre elas» - Cf. Mário ESTEVES DE OLIVEIRA e Rodrigo ESTEVES DE OLIVEIRA, ‘Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos – anotados’, Volume I, Editora: Almedina, 2004, p. 123.
E porquê aquela reserva de discricionariedade?
Precisamente pela razão que o mesmo artigo 3.º n.º 1 do CPTA evidencia: a necessidade de salvaguardar o princípio da separação de poderes (cf. o artigo 111.º n.º 1 1 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «[o]s órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição»). É daí que decorre a fixação de limites funcionais aos poderes de controlo dos Tribunais Administrativos, independentemente dos meios de que se possam socorrer (não será, por exemplo, pelo facto de se poder ancorar em juízos periciais altamente qualificados que o tribunal se poderá sobrepor a uma opção discricionária feita por um presidente de uma junta de freguesia com parcos recursos para a recolha dos melhores fundamentos técnicos subjacentes a essa opção). Tais limites «[c]oncretizam-se através da restrição da fiscalização jurisdicional à esfera da juridicidade, implicando que aos tribunais se atribua apenas competências para aferir da compatibilidade das decisões administrativas com a lei, os princípios gerais de direito e as normas constitucionais que integram o bloco de juridicidade. Ao fazê-lo, não estão a privar a Administração da essência da sua função material, porque esta atua num campo em que é hetero-determinada, aplicando ao caso concreto soluções pré-definidas em normas e princípios jurídicos. Já são, no entanto, de excluir do campo da jurisdição todos os poderes de decisão que englobem questões de mérito, isto é, que impliquem a avaliação da oportunidade e conveniência da atividade administrativa (…)» - Cf. António CADILHA, ‘Os poderes de pronúncia jurisdicionais na ação de condenação à prática de ato devido e os limites funcionais da justiça administrativa’, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume II, Editora: Coimbra Editora, 2010, pp. 167/168.
Ora:
No caso concreto dos presentes autos vimos que vem pedida a intimação da entidade requerida para designar a data para a recolha dos dados biométricos do requerente.
Importa, então, recordar o pressuposto já anteriormente indicado, nos termos do qual o que está sempre em causa é a natureza do poder exercido em cada caso pela Administração, o que implica apurar se determinada atuação se mostra vinculada, isto é, moldada por regras jurídicas que determinam esse concreto modo de agir, ou discricionária, caso em que essa determinação legal não existe.
Ora, existe alguma norma que estabeleça, com natureza vinculada, a marcação do referido agendamento num determinado prazo – ou, e no limite, que um serviço da Administração Pública deva/tenha que conceder, no prazo máximo de (10) dias, a possibilidade de efetuar o agendamento de uma data para a recolha dos dados biométricos do requerente, e que deva/tenha de ser permitido ao requerente fixar este agendamento/data nos (60) dias imediatamente seguintes à notificação para o efeito?
A resposta é negativa.
O que bem se compreende. Tais agendamentos dependerão sempre dos critérios de oportunidade/disponibilidade do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Ora, sendo negativa essa resposta, não poderá sequer equacionar-se, no caso concreto, (i) a emissão de uma decisão de mérito quanto a um pedido de intimação da entidade requerida para designar a data para a recolha dos dados biométricos do requerente, a coberto do meio processual previsto no artigo 109.º n.º 1 do CPTA; também não se nos afigura que se possa equacionar (ii) que o requerente possa apresentar uma ação administrativa, mais especificamente, mediante um pedido de condenação à prática do ato devido (Cf. artigos 37.º n.º 1 alínea b), 66.º, e 67.º n.º 1 alínea a), todos do CPTA), como meio de reação à inércia da Administração, (iii) combinada com a apresentação de uma providência cautelar (a instaurar, por exemplo, ao abrigo das alíneas e) e i) do n.º 2 do artigo 112.º do CPTA), já que não se pode condenar a Administração a praticar um ato cujos pressupostos não estão fixados na lei.
Nem se diga que, na falta de um prazo vinculativamente fixado na lei, o Tribunal poderia condenar a entidade requerida a proceder ao agendamento (em sede de ação administrativa), embora no prazo que ela própria viesse a fixar segundo as disponibilidades existentes. Na verdade, de que valeria uma condenação judicial sem qualquer prazo para o seu cumprimento?
Depois, não se olvide que a pretensão do requerente – de obter uma data para a realização da recolha de dados biométricos – afigura-se impossível e carecida de provisoriedade ou de urgência (Cf. artigo 130.º do CPC, combinado com os fundamentos de rejeição liminar de requerimento cautelar, previstos nas alíneas d) e e) do n.º 3 do artigo 116.º do CPTA).
De modo que a pretensão do requerente, nesta parte, não é credora da intimação prevista no artigo 109.º do CPA, nem de tutela cautelar, nem da ação principal que, como pusemos em manifesto, não se revelará idónea a resolver o assunto.
Termos em que, e sem necessidade de mais amplas considerações, no caso concreto dos presentes autos não se verificam os pressupostos legais para aplicar o disposto no artigo 109.º do CPTA, tão-pouco do artigo 110.º-A n.º 1 do CPTA.
*
Nesta conformidade, por não se encontrarem verificados os pressupostos de recurso ao presente processo de intimação, nem para aplicar o disposto no n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, é de julgar verificada uma situação de inadequação absoluta da forma de processo utilizada, que constitui uma exceção dilatória inominada, que conduz à nulidade de todo o processado (sem possibilidade de aproveitamento ou convolação), determinante do indeferimento liminar da petição inicial, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 109.º n.º 1 e 110.º n.º 1, ambos do CPTA, e 590.º n.º 1 do CPC, ao que se provirá na parte dispositiva da presente decisão.
Cumpre apreciar e decidir o recurso “sub judice”, tendo em atenção o âmago das conclusões recursivas, que se apresentam, no essencial, subdivididas em duas temáticas fundamentais, que aqui dilucidaremos.
A primeira temática, prende-se com a seguinte questão:
A decisão recorrida, em síntese, entendeu que, a par dos pressupostos vertidos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA (a indispensabilidade/urgência e subsidiariedade do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias), não é possível ao Tribunal emitir uma decisão de mérito “quanto a um pedido de intimação da entidade requerida para designar a data para a recolha dos dados biométricos do requerente”.
O Tribunal a quo, para firmar a sua conclusão, argumentou na sentença recorrida, em resumo, que existe na situação concreta do agendamento para recolha de dados biométricos uma “reserva de discricionariedade da Administração”, insusceptível de invasão pelo poder judicial, sob pena de violação do princípio da “separação e interdependência de poderes”, mais sustentando que não há norma com natureza vinculada que estabeleça à Administração o referido agendamento num determinado prazo, que igualmente não se encontra prescrito legalmente, concluindo que tal diligência (o agendamento da recolha de dados biométricos) depende de critérios de oportunidade/discricionariedade do SEF e que, neste domínio, de nada valeria uma condenação judicial sem qualquer prazo previsto na lei para o seu cumprimento.
O Recorrente insurge-se globalmente contra tal entendimento, sobretudo, no aspecto em que o Tribunal a quo considerou que o Recorrido não está “sujeito a um prazo vinculativamente fixado na lei para a realização da diligência requerida, nomeadamente o agendamento da recolha de dados biométricos”.
Desde já se adianta que, a final, embora se vá concluir na mesma direcção do sentido decisório incluso na sentença recorrida, isto é, pela inadequação ou impropriedade do presente processo de intimação face à pretensão material e fundamental do Recorrente (a emissão da autorização/título de residência), não podemos, todavia, acompanhar a fundamentação vertida na sentença recorrida que levou a tal conclusão.
Vejamos as quatro razões basilares que, na presente temática, apontam no sentido do erro de apreciação cometido pela sentença recorrida.
Em primeiro lugar, em ordem à resolução da matéria de excepção que se propôs resolver (a inadequação ou impropriedade do meio processual), entendemos que a decisão recorrida desvia o foco de atenção para a temática que desenvolveu a propósito do exercício de poderes discricionários v. poderes vinculados e da separação de poderes, que, contudo, não encontra qualquer tradução no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA. Isto é, pretendendo a sentença recorrida sindicar a adequabilidade do meio processual, impunha-se-lhe, antes de mais, que dilucidasse tão-só sobre os pressupostos directamente exigidos pelo citado comando legal (a indispensabilidade/urgência e subsidiariedade do processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias eventualmente ameaçadas).
Em segundo lugar, sobre o concreto pedido de agendamento da recolha de dados biométricos, secundamos aqui o entendimento propugnado no acórdão deste mesmo TCAS, de 19/12/2023, proferido no processo sob o n.º 505/23.5BESNT, consultável no processo electrónico do SITAF, destacando-se a seguinte passagem:
A Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, foi regulamentada pelo Decreto-Regulamentar nº 84/2007, de 5 de Novembro, actualizado, que, no que concerne à tramitação dos processos de autorização de residência para actividade de investimento, prevê no artigo 65º-J a elaboração de um Manual de procedimentos do SEF.
Nesse Manual consta:
«1. Organização do Processo
O procedimento de ARI inicia-se por requerimento do Interessado (Requerente de ARI).
Antes do processamento formal e instrução do processo, deve ser verificada a seguinte tramitação prévia:
- Registo “online” obrigatório para início do procedimento, que consiste no seguinte;
(…)
- Confirmação do registo pela Direção/Delegação Regional onde o pedido foi entregue. Para o efeito deve ser solicitado à gest.acessos@sef.pt o acesso ao portal ARI para os funcionários designados para o efeito, e atribuídos os seguintes perfis:
(…)
- Entrega da documentação legalmente exigida e pagamento da taxa de análise no local de atendimento SEF.
Mediante pedido e autorização do Requerente de ARI procede-se, com a entrega do RI, à recolha de dados biométricos que servirão para a (eventual) emissão do título ARI. (…).
Após a tramitação prévia é aberto o processo ARI. // (…)» consultado em chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.sef.pt/pt/Documents/Manual_ARI_2017.pdf.
A saber, o registo efectuado pela Recorrente, em 18.2.2022, através do Portal ARI, “ARI – Candidatura de autorização de residência para actividade de investimento”, corresponde ao primeiro ponto da tramitação, ainda que prévia à formalização e instrução, do processo a que foi atribuído o nº 00200/ARI/010/22.
Ou seja, o procedimento administrativo para concessão de ARI à Recorrente foi iniciado ainda que só depois de marcada data para o efeito pelo SEF possa ser apresentado formalmente o pedido de ARI e respectiva documentação de suporte.
Tal resulta de um sistema específico de recepção dos pedidos de ARI, certamente pensado para melhorar a organização e funcionamento do SEF para o efeito, que, no caso da Recorrente, não resultou, pois ainda não foi notificada da data e serviço onde deve apresentar o seu.
O agendamento de data para entrega do pedido de ARI é o segundo ponto previsto no referido Manual da tramitação prévia do processo que culmina com a emissão do título de autorização de residência.
E é por o procedimento de concessão de ARI à Recorrente se encontrar iniciado que a mesma pode vir invocar a inobservância pelo SEF do prazo de 10 dias, previsto no artigo 86º do CPA [que, diga-se, fixa o prazo geral para os actos a praticar pelos órgãos da Administração, excepto no do caso de decisão do procedimento e no que resultar de disposição especial] para dar seguimento ao mesmo.
Atendendo aos requisitos previstos no artigo 109º do CPTA, o referido agendamento configura a actuação que a Recorrente pretende que o Recorrido seja intimado judicialmente a adoptar para assegurar o exercício em tempo útil de um direito fundamental cujo exercício considera gravemente ameaçado.
É um meio para chegar a um fim e não um fim em si mesmo.
Dito de outro modo, a Recorrente pretende o peticionado agendamento para que o procedimento possa prosseguir e, no fim, lhe seja concedido o título de residência para investimento. E não pelo direito ao agendamento por si mesmo, como parece que resulta do que alega no recurso.
A saber, como entendeu o juiz a quo, o direito, liberdade e garantia ou de natureza análoga, alegadamente ameaçado, é o relativo à autorização de residência a concretizar pela prática de acto administrativo para o efeito no termo do correspondente procedimento, bem como os direitos dele decorrentes, como o de reagrupamento familiar e os que poderá exercer quando for residente em território nacional [como os indicados no artigo 83º da Lei nº 23/2007](negritos e sublinhados nossos).
Portanto, a recolha de dados biométricos, enquanto diligência ou meio enxertado no procedimento administrativo tendente à posterior emissão do título de residência, consubstancia uma actuação material a cargo da Administração, cuja omissão prolongada no tempo, nomeadamente, se ultrapassar o prazo geral enunciado no artigo 86.º, n.º 1, do CPA, tem aptidão para, concomitantemente, retardar o andamento do procedimento e obstaculizar a que no mesmo seja proferida a decisão final pretendida pelo interessado.
Verificando-se uma situação de retardamento na adopção da conduta de recolha de dados biométricos e, por consequência, de atraso na tomada da decisão final de atribuição da autorização de residência, pode tal cenário de inércia da Administração, perante os contornos do caso concreto, ser susceptível de ameaçar um direito, liberdade ou garantia, cujo exercício em tempo útil se imporia assegurar.
Admite-se, por isso, que tal demora pode ser obstada através do processo de intimação previsto no artigo 109.º do CPTA, no pressuposto óbvio, claro está, do caso concreto ter que cumprir os requisitos já aludidos: a indispensabilidade/urgência e a subsidiariedade do processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
Em rigor, a acção de recolha de dados biométricos não pode ser olhada de forma desgarrada ante o fim último a que se destina, que é a emissão da autorização de residência para investimento, ou seja, tal como foi defendido no acórdão atrás citado, a recolha de dados biométricos é “um meio para chegar a um fim e não um fim em si mesmo”. O interessado peticiona a recolha de dados biométricos “não pelo direito ao agendamento por si mesmo”, mas para que o procedimento prossiga os seus trâmites e que, no fim, o título de residência possa ser emitido para a finalidade de investimento.
E não poderia ser de outro modo, pois o n.º 1 do artigo 109.º do CPTA é suficientemente amplo para dar cobertura a um processo de intimação sob tais vestes, pois que se dirige “à emissão de uma sentença de condenação, mediante a qual o tribunal impõe a adoção de uma conduta, que tanto pode consistir num facere, como num non facere, numa conduta positiva (uma ação), como numa conduta negativa (uma abstenção)”, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Em terceiro lugar, conforme atrás já aflorámos, o acto instrutório de agendamento da recolha de dados biométricos encontra-se inserido no âmbito e na dinâmica do procedimento administrativo que visa a emissão de uma autorização de residência, que, como qualquer outro procedimento, está sujeito, na falta de outra disposição especial, ao prazo geral de 10 (dez) dias para a prática dos actos que se mostrarem necessários, de acordo com o estabelecido no n.º 1 do artigo 86.º do CPA.
E ainda que a problemática fosse a de descortinar qual o prazo a impor pelo Tribunal para o cumprimento da eventual sentença de intimação contra a Administração, sempre se adianta que nenhum vazio existe nessa matéria, pois dimana claramente da conjugação entre os artigos 3.º, n.º 2, e 111.º, n.º 2, do CPTA, que o Juiz, oficiosamente, determina “o comportamento concreto a adotar e, sendo caso disso, o prazo para o cumprimento e o responsável pelo mesmo”.
Em quarto lugar, atente-se que a sentença recorrida, ao fim e ao cabo, considera que não se pode sequer equacionar o pedido de intimação para designar uma data para a recolha dos dados biométricos do ora Recorrente e, desse modo, conclui pela “inadequação absoluta da forma de processo utilizada, que constitui exceção dilatória inominada, que conduz à nulidade de todo o processado (…) determinante do indeferimento liminar da petição inicial”.
Do acabado de expor resulta que o Tribunal a quo, laborando apenas em torno do pedido que, isolada e parcialmente, elegeu para sindicância, ou seja, aquele em que somente era visada a intimação do Recorrido para o agendamento da recolha de dados biométricos, acaba, depois, por extrapolar o seu julgamento de inadequação à totalidade do meio processual, fulminando de nulidade todo o processado.
Isto é, apegando-se tão-somente ao tratamento que parcialmente deu a um dos pedidos finais formulados na petição inicial (o de agendamento para a recolha de dados biométricos), a decisão recorrida olvida que o ora Recorrente também requereu na alínea c) do petitório final que seja “emitida a devida autorização de residência”, pedido esse que, ante as circunstâncias do caso concreto, até poderia ter, nessa parte, justificação para ser deduzido ao abrigo de um processo de intimação e à luz dos pressupostos derramados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Deste modo, entendemos que a partição dos pedidos elaborada na sentença recorrida, em que apenas analisou o primeiro deles, mas que o tem como fundamento suficiente para a total inadequação processual que depois veio a decidir, não foi a abordagem mais acertada à presente causa, pois, como já deixámos expresso, mais valia não se ter perdido de vista que o fim último do Recorrente não passava tanto pelo direito ao agendamento em si mesmo, mas sim pela emissão do título de residência para a finalidade de investimento.
E uma vez aqui chegados, explanadas que foram as quatro razões fundamentais que supra elegemos para sindicar a primeira temática recursiva, isto permite-nos concluir que, pese embora se mostre acertada a sentença recorrida apenas no tocante à decisão final, mormente, no aspecto em que enveredou pela verificação da inadequação ou impropriedade do processo de intimação, não podemos, contudo, secundar a fundamentação de direito aventada pelo Tribunal a quo para alicerçar o seu dispositivo, porque, como vimos, se mostra eivada de erro.
Prosseguindo, indaguemos agora a segunda temática recursiva:
Também aqui há que ter presente as conclusões recursivas e ainda os poderes de cognição do Tribunal no que concerne à liberdade de “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, que resulta do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º do CPTA.
Deste modo, cremos bem que o julgamento de inadequação ou impropriedade lançado ao presente processo de intimação resulta, na mesma, do estipulado no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, não pela fundamentação esgrimida na sentença recorrida, mas por outros motivos/fundamentos que, ante o caso concreto e sem perder de vista as alegações de recurso, se prendem já com a interpretação e aplicação que aqui faremos do mencionado comando legal.
Neste conspecto, o Recorrente defende nas suas alegações recursivas, em síntese, que se mostra adequado no seu caso concreto o uso do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, alegando que tem a sua vida “em suspenso” desde o final de 2021, e, como tal, que se verificam os pressupostos da indispensabilidade/urgência e subsidiariedade do meio processual, tal como prescritos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, sem que se mostre suficiente no caso em apreço o decretamento provisório de uma providência cautelar.
O n.º 1 do artigo 109.º do CPTA dita o seguinte: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar” (destaques nossos).
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é de utilização excepcional, cujos requisitos encontram-se formulados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA “em termos intencionalmente restritivos”, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Entre os pressupostos do processo de intimação, prescritos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, impõe-se destacar o da sua indispensabilidade, pois é esse que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se vislumbra no caso em apreço.
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados, que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (…)”, “associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação” (cf. páginas 933 e 934 da obra citada).
Portanto, é sempre a partir do caso concreto que se perscruta a existência de fundamentos factuais que justifiquem a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação.
No caso vertente, o ora Recorrente não alegou qualquer facto concreto que evidencie ser indispensável o recurso ao processo de intimação, ou seja, em termos factuais, do alegado não transparece qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos invocados que, a não ser travada pelo processo de intimação, já não será possível ou suficiente para impedir a ocorrência dessa lesão o decretamento de uma providência cautelar, ainda que provisoriamente, nos termos conjugados dos artigos 110.º-A, n.º 2, e 131.º do CPTA.
Não basta ao Recorrente alegar que, por falta de decisão da Administração sobre o seu requerimento administrativo, tem a sua vida “em suspenso” desde o final de 2021, porquanto, mais não se trata de uma afirmação de carácter genérico e vago, desprovida de qualquer densificação ou desenvolvimento factual que demonstre tal arrazoado.
Assim sendo, no caso concreto, impõe-se concluir pela falta do pressuposto da indispensabilidade do processo de intimação, exigido pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, e, como tal, não procedem as alegações e conclusões recursivas que defendem a idoneidade do meio.
Segue-se aqui a orientação de vasta e recente jurisprudência deste TCAS proclamada a propósito da concreta pretensão material de emissão da autorização de residência, com plena aplicação no caso vertente (no que especificamente diz respeito ao aludido requisito da indispensabilidade), da qual destacamos, entre outros, o recente acórdão de 11/01/2024, tirado no processo sob o n.º 1777/23.0BELSB, consultável no SITAF, enfatizando-se a seguinte passagem: É também vasta a jurisprudência que sustenta, em casos em tudo idênticos ao aqui em apreço, que invocando-se o direito à concessão da autorização de residência, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual inidóneo (cfr., neste sentido, a título de exemplo, os recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de junho de 2023, Processo n.º 166/23.1BEALM, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 489/23.0BELSB, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 1151/23.9BELSB, de 26 de julho de 2023, Processo n.º 458/23.0BELSB, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). – (destaque nosso).
No mesmo sentido, convoca-se o acórdão deste TCAS, de 13/07/2023, tirado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, “in” www.dgsi.pt, em cujo sumário consta o seguinte entendimento:
I Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia [indispensabilidade de uma decisão de mérito];
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal [impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, isto é, o requisito da subsidiariedade (…)
Confirmando-se a falta do pressuposto da indispensabilidade, de igual modo, é de corroborar, no caso sob recurso, a concomitante ausência de uma situação urgente ou premente que importe acautelar, porque o Recorrente não acoplou nas suas alegações de recurso quaisquer factos suficientemente densificados que demonstrem tal urgência. Neste particular aspecto, explicitam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na obra citada, na página 932, que “A utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (…)”, “mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência” (destaque nosso).
Por fim, não podemos deixar de considerar nesta instância, a propósito da relação de subsidiariedade que igualmente se impõe entre o processo de intimação e o processo cautelar, que o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias foi instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias” e que “Quando se afirma que o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma proteção adequada, esta afirmação tem, pois, em vista os processos não urgentes, devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, com todas as possibilidades que ele comporta – com natural destaque, quando tal se mostre necessário, para a mais efetiva de todas, que é o decretamento provisório de providências cautelares” (cf. a obra e autores que temos vindo a citar, de páginas 935 a 937);
Aliás, neste conspecto, como revelação da propalada subsidiariedade do processo de intimação face à providência cautelar, veja-se, a título de exemplo, que a Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS admite, inclusive, que “os limites da tutela cautelar, impostos pela provisoriedade que a estruturam, consentem a concessão da autorização de residência a título provisório, por esta não conduzir a uma situação definitiva e irreversível, isto é, por não levar ao esgotamento da respectiva acção principal.”, mais propugnando este TCAS que a emissão da autorização de residência é compatível com uma definição cautelar.” (destaques nossos), conforme o exposto no acórdão de 07/06/2023, proferido no processo sob o n.º 166/23.1BEALM, entendimento que voltou a ser reiterado pelo acórdão deste mesmo TCAS, de 13/07/2023, já precedentemente citado, e prolatado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt;
É inultrapassável, portanto, a relação de subsidiariedade entre os mencionados meios processuais, cujo melhor exemplo reside na possibilidade de substituição da petição de intimação pela adopção de providência cautelar, com a possibilidade acrescida do seu decretamento provisório, nos termos conjugados dos artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPTA.
Contudo, não cabe aqui sequer enveredar pelo juízo de viabilidade ou inviabilidade dessa substituição, porquanto, foi temática deixada de fora do âmbito das conclusões recursivas do Recorrente.
E, ainda que assim não fosse, em concreto, o Recorrente não produziu conclusões recursivas no sentido de evidenciar factualidade fortemente demonstrativa de “uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação”, enquanto critério do “periculum in mora” exigido pelo n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, nem, de igual modo, logrou incluir em tais conclusões de recurso qualquer elemento factual justificativo de “uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado”, conforme obriga o n.º 1 do artigo 131.º do CPTA.
Assim sendo, concluímos pela falta do pressuposto da indispensabilidade que se impõe a quem do processo de intimação queira fazer uso, e, de igual modo, do próprio requisito da subsidiariedade, nos termos do exigido pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Por último, perante a argumentação sustentada neste acórdão, não colhe a conclusão recursiva de que está vedado ao Recorrente o acesso à “tutela jurisdicional efetiva”, porquanto, “in casu”, o problema não se prende com a falta de previsão legal de meios processuais de defesa de direitos, liberdades e garantias, nem com uma restrição desmesurada ou desproporcional ao seu acesso, já que, como se constata, ao nível infraconstitucional, tais meios até existem no contencioso administrativo e foram claramente consagrados no CPTA, de que é exemplo máximo o próprio processo de intimação previsto no artigo 109.º do referido Código, bem como, a possibilidade da sua substituição pela adopção de uma providência cautelar, complementada pelo seu decretamento provisório.
Não é, portanto, uma questão de falta de meios processuais, nem de dificuldades excessivas ao seu acesso, que coloquem em crise a clamada “tutela jurisdicional efetiva”, mas sim, ante o caso concreto trazido pelo Recorrente, o simples incumprimento dos pressupostos processuais fixados legalmente para a intimação, sem os quais, como em qualquer outro meio processual previsto no ordenamento jurídico português, não é possível admitir o seu accionamento.
Por conseguinte, ante a fundamentação propugnada neste acórdão, temos que a presente questão não se reconduz à recusa da tutela pretendida, mas apenas à não admissibilidade do uso deste meio processual por inobservância dos respectivos pressupostos.
Improcede, pois, a alegação de que está em causa a “tutela jurisdicional efetiva” do ora Recorrente.
Tudo visto, acordamos em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo o dispositivo da sentença recorrida no que toca ao julgamento de inidoneidade do meio processual, embora com diferente fundamentação.
***
Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
***
Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O concreto pedido de agendamento para a recolha de dados biométricos, porque se trata de um meio ou diligência instrutória com vista a fazer prosseguir o respectivo procedimento administrativo e, desse modo, possibilitar ao interessado a emissão do título de residência, não está, à partida, arredado das possibilidades que são conferidas pelo processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
II - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
III - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
IV - “In casu”, faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
***
V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, com a diferente fundamentação atrás plasmada, manter a decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 11 de Abril de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Carlos Araújo – (1.º Adjunto)
Lina Costa – (2.ª Adjunta)