Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:727/14.0BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2019
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:CONCEITO DE POSSE.
EMBARGOS DE TERCEIRO.
REQUISITOS DE DEDUÇÃO NO PROCESSO TRIBUTÁRIO.
REGIME DO CONTRATO-PROMESSA.
MERO DETENTOR OU POSSUIDOR PRECÁRIO.
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE.
SITUAÇÕES EM QUE O PROMITENTE-COMPRADOR PREENCHE TODOS OS REQUISITOS DE UMA VERDADEIRA POSSE CAUSAL.
Sumário:1. A posse pode ser definida como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr.artº.1251, do C.Civil), tendo como elementos constitutivos uma componente objectiva ou material (“corpus”) e outra subjectiva ou intencional (“animus”), de acordo com a melhor doutrina, assim se consagrando a concepção subjectivista do referido instituto (cfr.artº.1253, al.a), do C.Civil). Só esta, a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo, pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro.
2. No Código de Processo Civil, a partir do dec.lei 329-A/95, de 12/12, os embargos de terceiro deixaram de ter a natureza de processo especial, passando a ser configurados como modalidade do incidente de oposição, ampliando-se os pressupostos da sua admissibilidade, assim deixando de estar ligados, necessariamente, à defesa da posse do embargante. Isto é, face a este novo regime, o embargante, através dos embargos, além da posse, pode defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial (cfr.artºs.351 e seg., do C.P.Civil; relatório constante do dec.lei 329-A/95, de 12/12).
3. Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr.artº.237, do C.P.P.Tributário):
a-A tempestividade da petição de embargos;
b-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
c-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
4. O artº.410, do C.Civil, consagra a noção e regime do contrato-promessa, espécie contratual que cria para o promitente uma obrigação de contratar, cujo objecto consiste numa prestação de facto, gozando apenas, em princípio, de eficácia meramente obrigacional, restrita, por conseguinte, às partes contratantes, ao invés do contrato-prometido, quando tenha por objecto a alienação ou oneração de coisa determinada, o qual goza de eficácia real. No artº.410, nº.3, do C.Civil (redacção resultante do dec.lei 379/86, de 11/11), veio o legislador exigir determinados requisitos de forma do contrato para que o mesmo possua eficácia real (cfr.artº.413, do C.Civil), sempre que estejamos perante promessa que tenha por objecto mediato um imóvel urbano.
5. Exigindo-se, como condição do direito de embargar (no âmbito do exame do terceiro requisito mencionado supra), que a posse do embargante seja afectada pela diligência judicial em causa, dir-se-á que a doutrina e jurisprudência são uniformes em considerar que o exercício de poderes do promitente-comprador se configura como um mero detentor precário (cfr.artº.1253, al.c), do C.Civil), visto que adquire o “corpus” possessório, mas não adquire o “animus possidendi”, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. Somente assim não acontece se ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, sendo que de tal factualidade compete ao promitente-comprador fazer prova (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.; artº.342, nº.1, do C.Civil).
6. A citada inversão do título da posse (transformação da posse precária em posse em nome próprio), nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, tem por consequência que o promitente-comprador actue com o estado de espírito de verdadeiro proprietário, assim praticando diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, "uti dominus", não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.
7. Como exemplos de situações em que o promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse, cita a doutrina o pagamento da totalidade do preço do imóvel em causa, ou aquela em que as partes não tenham o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento de I.M.T. ou precludir o direito de preferência), nestas sendo a coisa entregue ao mesmo promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mmº. Juiz do T.A.F. de Loulé, exarada a fls.124 a 130 do presente processo que julgou totalmente procedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo recorrido, D……….., opondo-se a penhora de imóvel realizada no âmbito dos autos de execução fiscal nº……-2013/106….. e apensos, a qual corre seus termos no Serviço de Finanças de Albufeira.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.140 a 149 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1-Os presentes embargos foram interpostos contra a penhora do prédio urbano, inscrito na matriz predial da freguesia de A……. e O……., sob o artigo 12….., fracção ..., invocando-se a existência de contrato promessa de compra e venda e a tradição do bem;
2-Por douta sentença de 10/07/2015, os referidos embargos foram julgados procedentes e anulada a penhora. Não pode, no entanto, a FP concordar com a douta decisão, pelas seguintes razões;
3-De acordo com os artigos 1251º e 1253º do CC, a figura da posse caracteriza-se por dois elementos: a actuação de facto correspondente ao exercício de um direito real, o corpus, e a intenção de o exercer como seu titular, o animus possidendi, sendo este segundo factor que a distingue da simples detenção ou posse precária;
4-Tanto a Doutrina como a Jurisprudência sustentam que o contrato promessa com traditio da coisa, por si só, não transmite a posse ao promitente comprador;
5-Isto é, o promitente comprador apenas adquire o corpus (a detenção da coisa), mas não o animus possidendi, é um detentor ou possuidor em nome alheio que prossegue a posse do promitente vendedor;
6-No caso em análise, o contrato promessa foi celebrado sem eficácia real, o que gera apenas efeitos obrigacionais entre as partes (cfr. arts. 410º e 413º do CC);
7-O preço de € 195.000,00 prometido não foi pago na sua totalidade. O recorrido apenas pagou à promitente vendedora o sinal no valor de € 119.000,00 (cfr. ponto 3 do probatório). Ou seja, ficou por pagar cerca de 39% do preço;
8-Consta dos autos um termo de entrega das chaves, o qual não se encontra datado;
9-Assim, no entender da Fazenda Pública, deveria ter sido considerado pelo Tribunal a quo que o recorrido apenas ocupou o imóvel por mera tolerância do seu proprietário e que os actos por si praticados são meros actos materiais (corpus) próprios de um possuidor em nome alheio, se não vejamos;
10-“(…) O promitente comprador investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa.” (Antunes Varela in RLJ, ano 128, pág 146);
11-No mesmo sentido Acórdão do TCA do Sul, de 09/09/2008, proferido no Proc. n.º 02597/08: “(…) como resulta do nº 1 do art. 410 do Ccivil, pelo contrato promessa em causa e invocado só se criou a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido, sendo o promitente comprador apenas titular de um direito de crédito e não de um direito real. O contrato promessa em causa produz meros efeitos obrigacionais como refere Mário Júlio de Almeida Costa in Direito das Obrigações, 4ª edição a pág. 269.”;
12-E também Acórdão do mesmo Tribunal Superior, proferido em 21/03/2006, no Proc. n.º 00613/03: “O promitente comprador tem uma posse precária e não uma posse legítima, pelo que a tradição da coisa ao promitente comprador apenas lhe confere um direito pessoal de gozo sobre a coisa, não o investindo na qualidade de possuidor da coisa, ou seja não lhe conferindo uma posse em sentido rigoroso e próprio. Não sendo o embargante titular do direito de propriedade sobre o bem penhorado, não havia animus, ele não detinha posse defensável por embargos.”;
13-Só em situações excepcionais, nas quais não se enquadra o caso concreto, o promitente comprador adquire a posse do imóvel prometido;
14-Como apontam Pires de Lima e Antunes Varela, doutrina esta referida no Acórdão do TCA do Sul, de 28/05/2013, proferido no Proc. n.º 06516/13, “o promitente comprador pode preencher todos os requisitos de uma verdadeira posse, quando por exemplo, tendo sido paga a totalidade do preço, ou em que as partes não tenham o propósito de realizar o contrato definitivo (…) a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.”;
15-Na presente acção, o recorrido não alegou nem provou quaisquer actos materiais que permitam concluir ter ocorrido a inversão do título, como lhe cabia por força das regras gerais de repartição do ónus da prova (art. 74º n.º 1 da LGT e 342º do CC e Acórdão do TCA do Sul, de 30/04/2013, proferido no Proc. n.º 06544/13);
16-O pagamento das contas da água e luz apenas provam que o recorrido usa o imóvel (corpus);
17-À semelhança do que acontece com a figura do arrendatário, o pagamento ou a celebração de contrato de fornecimento de água ou luz não conduz à conclusão de que os mesmos estão a agir como se de proprietários se tratassem. Para o fornecimento destes serviços basta a prova da mera detenção, ou seja, da legitimidade para o uso do imóvel em causa;
18-Também a prova testemunhal não foi apta a levar o julgador a concluir pela inversão do título da posse: As testemunhas A……… e L……. declararam não saber a razão pela qual ainda não foi celebrado o contrato definitivo de compra e venda entre o recorrido e o executado, esclarecendo, ainda, o Tribunal que várias fracções do mesmo prédio já têm escritura; A testemunha D….., filho do recorrido, declarou que a família mantém interesse na celebração do contrato prometido. Por outro lado, disse, ainda, que a advogada do executado lhes informou que não podiam assistir às reuniões de condomínio uma vez que não eram donos da casa;
19-Do probatório nada consta que permita concluir que o recorrido tenha agido convicto de lhe assistir o direito de propriedade sobre a fracção penhorada ou que o promitente vendedor o veja como tal, mantendo-se, aliás, interesse na celebração do contrato definitivo. Ambos sabem que os actos materiais que tiveram como objecto o prédio penhorado, foram praticados, pelo recorrido, em nome alheio;
20-Sendo o recorrido um mero detentor ou possuidor precário, faltando-lhe o animus possidendi correspondente ao direito real de propriedade, carece de posse digna de tutela jurídica para ser defendida através dos Embargos de Terceiro (art. 237º do CPPT);
21-A douta sentença não valorou devidamente os factos anteriormente descritos, violando as normas legais supra referidas, pelo que incorreu em erro de julgamento de facto e de direito;
22-Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por acórdão que julgue improcedentes os presentes Embargos, mantendo a penhora efectuada no Processo de Execução Fiscal, como é de JUSTIÇA.
X
Contra-alegou o recorrido (cfr.fls.153 a 160 do processo físico), tendo, a final, expendido o sequente quadro Conclusivo:
1-Através de contrato promessa comprometeu-se o ora recorrido a adquirir um imóvel e a promitente vendedora F……… - Construções e Empreendimentos Turísticos, Lda. a vende-lo livre de ónus e encargos devendo a escritura ser celebrada no prazo de 60 dias após a obtenção da licença de utilização;
2-Nos termos desse contrato promessa o aqui recorrido pagou o respetivo sinal, no montante de € 119.000,00 (cento e dezanove mil euros);
3-O imóvel passou para a posse do embargante no dia 28 de Outubro de 2006, tal como demonstrado e provado nos autos;
4-O recorrido tomou conhecimento, no dia 29/08/2014, que o referido imóvel foi penhorado pela Fazenda Nacional à ordem do processo de execução fiscal nº 1007201……… que corre no serviço de finanças de Albufeira;
5-O referido bem imóvel tem sido consecutivamente habitado pelo embargante e pelo seu agregado familiar desde aquela data até ao presente, dispondo de eletricidade, de gás e de água, pagas pelo embargante e contratualizadas em seu nome;
6-O bem penhorado encontra-se onerado pela promessa de alienação pertencente ao aqui recorrido não podendo a execução prosseguir sobre o imóvel em causa uma vez que, no momento da penhora, o imóvel integrava a posse real e efetiva do ora recorrido em virtude da celebração do referido contrato-promessa de compra e venda e da correspondente tradição para a posse do embargante;
7-Nesses termos e face à prova produzida nos autos, verificou-se que embora o recorrido não seja proprietário agiu como tal, sendo por isso possuidor, e tendo a penhora ofendido o seu direito;
8-Ora, considera o recorrido que a douta sentença proferida pelo TAF de Loulé deve ser mantida, foi aplicado o direito de forma justa e correta;
9-A partir do momento em que deixou de se vislumbrar a obtenção da licença de utilização e face à inexistência de tal documento nenhuma das partes resolveu o contrato, presumindo-se claramente que ambas as partes aceitaram que a realização daquele contrato antecipara os efeitos do contrato prometido;
10-É de concluir que as partes quiseram assim antecipar os efeitos do contrato definitivo, por forma a que o comprador passasse a atuar como se fosse o proprietário da coisa;
11-Considera-se assim que foi feita prova de que a posse do ora recorrido continha os seus dois elementos essenciais: o corpus (atuação por forma correspondente ao exercício de um direito real) e o animus (a intenção de agir como titular desse direito);
12-Qualquer outro entendimento que não seja de manter a Douta decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé consubstanciará uma flagrante injustiça;
13-A interpretação da letra da Lei não pode conduzir à injustiça;
14-O fim último da Lei é promover a Justiça e só tendo a Justiça como fim último, a Lei será bem aplicada!
15-Face a tudo o referido a decisão não pode ser outra que não a da douta sentença recorrida pois a atuação do recorrido consubstancia um caso de posse efetiva, pelo que o Tribunal ad quem deve julgar improcedentes todas as alegações da recorrente e manter a decisão recorrida;
16-Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado e, consequentemente, confirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo com todos os efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, tendo efetuado uma aplicação correta do direito.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido do provimento do presente recurso (cfr.fls.170 a 178 do processo físico).
X
Corridos os vistos legais (cfr.fls.179 e verso do processo físico), vêm os autos à conferência para deliberação.
X
FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.125 a 127 do processo físico):
1-Em 28 de Outubro de 2006, entre “F………. - Construções e Empreendimentos Turísticos, Lda.”, e D………. foi celebrado um acordo, que as partes designaram por “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, nos termos do qual aquela sociedade prometeu vender e este prometeu comprar a fracção designada pela letra ..., destinada a habitação, a que corresponde um apartamento tipo T1-duplex, sita em V….. C…., Urbanização S……. T…… Residence, A……., freguesia de O…… de Á……., concelho de Albufeira, descrita na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º 12…., e com o artigo matricial n.º 21….., pelo preço de € 195.000,00 (cfr.documento junto a fls.7 a 10 do processo físico);
2-Ficou acordado que a escritura pública relativa ao contrato prometido deveria ser outorgada no prazo de 60 dias após a comunicação da obtenção da Licença de Utilização por parte da promitente vendedora, altura em que seria pago o remanescente do preço em dívida e que seria possível a execução específica do contrato (cfr.documento junto a fls.7 a 10 do processo físico);
3-D…….. entregou à sociedade “F…….. - Construções e Empreendimentos Turísticos, Lda.”:
a) Em 24 de Outubro de 2006, € 19.000,00 (cfr.documento junto a fls.76 do processo físico);
b) Em 12 de Julho de 2007, € 100.000,00 (cfr.documentos juntos a fls.77 e 78 do processo físico);
4-Desde Setembro de 2007 que D…….. efectua o pagamento da electricidade relativa à fracção identificada no nº.1 - contrato n.º 900…… (cfr. documentos juntos a fls.20 a 33 do processo físico);
5-Em 19 de Abril de 2013, D…….. requereu à Câmara Municipal de Albufeira o fornecimento de água para a moradia …. da Urbanização S……. T…… Residence (contrato n.º 71…..), tendo passado a titular do contrato (cfr.documentos juntos a fls.13 a 19 do processo físico);
6-A sociedade “F…… - Construções e Empreendimentos Turísticos, Lda.” emitiu um documento comprovativo da «entrega das chaves» (do portão de entrada, da porta, do portão do jardim, do correio e do contador de água) ao “proprietário da fracção …. porta 10” do «C….. S….. T…… Residence» (cfr.documento junto a fls.12 do processo físico);
7-Desde 2006 que D……. utiliza a predita fracção …. como residência de férias (cfr.depoimentos de A………. e L……… Gowen);
8-No dia 2 de Abril de 2014, no âmbito do processo de execução fiscal nº……-2013/106…… e apensos instaurado contra F….. - Construções e Empreendimentos Turísticos, Lda., foi efectuada a penhora - acto em crise - e registada, a favor da Fazenda Nacional, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º ……/200106….. -J, composto por apartamento tipo t1-duplex, designado pela letra …, destinado a habitação, o imóvel identificado no nº…. (cfr. certidão junta a fls.55 e 56 do processo físico; informação exarada a fls.37 do processo físico).
X
A fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.
Os depoimentos referidos foram valorados por se mostrarem isentos, credíveis e não contradizerem a prova documental carreada para os autos…”.
X
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
X
Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou totalmente procedentes os presentes embargos de terceiro, em consequência do que anulou a penhora identificada no nº.8 do probatório.
X
Desde logo, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr. artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; artº.282, do C.P.P.Tributário).
O apelante alega, em síntese, que o contrato promessa identificado no probatório foi celebrado sem eficácia real, o que gera apenas efeitos obrigacionais entre as partes. Que o recorrido apenas ocupou o imóvel por mera tolerância do seu proprietário e que os actos por si praticados são meros actos materiais (corpus) próprios de um possuidor em nome alheio. Que o recorrido não alegou nem provou quaisquer actos materiais que permitam concluir ter ocorrido a inversão do título da posse, como lhe cabia por força das regras gerais de repartição do ónus da prova. Que sendo o recorrido um mero detentor ou possuidor precário, faltando-lhe o “animus possidendi”, correspondente ao direito real de propriedade, carece de posse digna de tutela jurídica para ser defendida através dos embargos de terceiro. Que a sentença recorrida não valorou devidamente a factualidade constante do probatório, mais violando o regime legal em causa nos autos, pelo que incorreu em erro de julgamento (cfr.conclusões 1 a 21 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo consubstanciar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Vejamos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
No exame do presente recurso, desde logo, se deve recordar que o apelante não impugna a factualidade provada constante da sentença recorrida no âmbito do salvatério que deduz para este Tribunal (cfr.artº.640, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), nos termos previstos na lei.
Avancemos.
A essência dos direitos relacionados com as coisas - dos direitos reais de gozo e de alguns direitos reais de garantia e direitos pessoais - consiste na faculdade de sobre elas exercer poderes de retenção, de uso, de fruição e de transformação. Todos estes direitos têm por finalidade a utilização económica das coisas, das vantagens que das coisas se podem obter, sendo pelo exercício daqueles poderes que a utilização se realiza (cfr.Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 4ª.edição prefaciada por Fernando Luso Soares, Almedina, 1996, pág.7).
Nos termos da lei civil substantiva o possuidor que veja a sua posse sobre determinada coisa ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a mesma mediante a proposição de embargos de terceiro (cfr.artº.1285, do C.Civil).
A posse pode ser definida como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr.artº.1251, do C.Civil), tendo como elementos constitutivos uma componente objectiva ou material (“corpus”) e outra subjectiva ou intencional (“animus”), de acordo com a melhor doutrina, assim se consagrando a concepção subjectivista do referido instituto (cfr.artº.1253, al.a), do C.Civil; Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 4ª.edição prefaciada por Fernando Luso Soares, Almedina, 1996, pág.88 e seg.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Coimbra Editora, 2ª. edição, 1987, III, pág.5).
Portanto, para que exista posse é necessário alguma coisa mais do que o simples poder de facto exercido sobre a coisa; tem que haver, por parte do detentor, a intenção (“animus”) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. E só esta, a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo, pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro (cfr.ac.S.T.J., 28/11/75, B.M.J.251, pág.135; ac.R.Lisboa, 18/4/91, C.J., 1991, II, pág.180; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/6/2012, proc.5181/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/4/2013, proc.6544/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/10/2015, proc.8822/15; Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, Coimbra Editora, 1982, pág.406; Jorge Duarte Pinheiro, Fase Introdutória dos Embargos de Terceiro, Almedina, 1992, pág.39; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.164).
No Código de Processo Civil, a partir da reforma operada pelo dec.lei 329-A/95, de 12/12, os embargos de terceiro deixaram de ter a natureza de processo especial, passando a ser configurados como modalidade do incidente de oposição, ampliando-se os pressupostos da sua admissibilidade, assim deixando de estar ligados, necessariamente, à defesa da posse do embargante. Isto é, face a este novo regime, o embargante, através dos embargos, além da posse, pode defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial (cfr.artºs.351 e seg., do C.P.Civil; relatório constante do dec.lei 329-A/95, de 12/12; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.165).
Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr.artº.237, do C.P.P.Tributário; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/1/95, rec.18307, ap.D.R., 31/7/97, pág.175 e seg.; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/6/2012, proc.5181/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/4/2013, proc.6544/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/10/2015, proc.8822/15; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.670 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.155 e seg.):
1-A tempestividade da petição de embargos;
2-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
3-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
No processo vertente é o exame do terceiro requisito que está em causa.
Deve o embargante fazer prova de que a diligência judicial em causa ofendeu a sua posse. Remetendo para as considerações acima expendidas, só a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo (“corpus” e “animus”), pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro.
Revertendo ao caso dos autos, o Tribunal "a quo" julgou procedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo ora recorrido, D……….., visto concluir que este havia efectuado prova concreta dos respectivos pressupostos, em consequência do que determinou o levantamento da penhora identificada no nº.8 do probatório.
O recorrente entende que não, que o embargante deve ser considerado um mero detentor ou possuidor precário, por lhe faltar o "animus sibi habendi" correspondente ao direito de propriedade, carecendo, portanto, de posse digna de tutela jurídica para ser defendida através de embargos de terceiro.
Vejamos quem tem razão.
No caso “sub judice”, o embargante/recorrido fundamenta a dedução de embargos de terceiro na existência de contrato-promessa de compra e venda que celebrou tendo por objecto o imóvel penhorado no processo de execução fiscal nº……-2013/106…. e apensos (cfr.nº.1 do probatório), mais alegando que tem a posse real e efectiva incidente sobre o mesmo imóvel, desde data anterior à penhora (cfr.articulado inicial junto a fls.2 a 4 do processo físico).
É o artº.410, do C.Civil, que nos dá a noção e regime do contrato-promessa, espécie contratual que cria para o promitente uma obrigação de contratar, cujo objecto consiste numa prestação de facto, gozando apenas, em princípio, de eficácia meramente obrigacional, restrita, por conseguinte, às partes contratantes, ao invés do contrato-prometido, quando tenha por objecto a alienação ou oneração de coisa determinada, o qual goza de eficácia real. No artº.410, nº.3, do C.Civil (redacção resultante do dec.lei 379/86, de 11/11), veio o legislador exigir determinados requisitos de forma do contrato para que o mesmo possua eficácia real (cfr.artº.413, do C.Civil), sempre que estejamos perante promessa que tenha por objecto mediato um imóvel urbano (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/4/2013, proc.6544/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/10/2015, proc.8822/15; João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.I, 7ª. Edição, Almedina, 1991, pág.310 e seg.).
"In casu", haverá que saber é se a tradição, a favor do embargante/recorrido, do prédio penhorado na execução, resultante da celebração do contrato de promessa de compra e venda constante dos autos, permite consubstanciar uma posse real e efectiva do mesmo embargante, anterior à penhora, e por isso oponível ao exequente.
Mesmo havendo prova da tradição do bem imóvel em causa para o promitente-comprador, ainda assim a doutrina e jurisprudência são uniformes em considerar que o exercício de poderes do promitente-comprador neste caso se configura como um mero detentor precário (cfr.artº.1253, al.c), do C.Civil), visto que adquire o “corpus” possessório, mas não adquire o “animus possidendi”, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. Somente assim não acontece se ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, sendo que de tal factualidade compete ao promitente-comprador fazer prova, no caso dos autos, ao embargante e ora recorrido (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.; artº.342, nº.1, do C.Civil; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/2/2010, rec.1117/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 5/5/2009, proc. 2966/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/6/2010, proc.3882/10; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/6/2012, proc.5181/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/4/2013, proc.6544/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/10/2015, proc.8822/15; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª. edição, Coimbra Editora, 1987, pág.6 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 6ª. edição, III Volume, Áreas Editora, 2011, pág.182).
A citada inversão do título da posse (transformação da posse precária em posse em nome próprio), nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, tem por consequência que o promitente-comprador actue com o estado de espírito de verdadeiro proprietário, assim praticando diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, "uti dominus", não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/10/2015, proc.8822/15; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª. edição, Coimbra Editora, 1987, pág.6 e seg.; Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de direito civil português, Almedina, 1996, pág.229 e seg.).
Como exemplos de situações em que o promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse, cita a doutrina o pagamento da totalidade do preço do imóvel em causa, ou aquela em que as partes não tenham o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento de I.M.T. ou precludir o direito de preferência), nestas sendo a coisa entregue ao mesmo promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Voltando ao caso dos autos, não consta do probatório qualquer vector que convença o Tribunal sobre a relatada inversão do título da posse. O embargante/recorrido não efectuou ainda o pagamento da totalidade do preço acordado com vista à aquisição do imóvel (cfr.nºs.1 e 3 do probatório). Por outro lado, não foi efectuada qualquer prova incidente sobre a desnecessidade de realização do contrato prometido. Por último, e o mais importante, não foi produzida prova sobre a prática de actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade por parte do embargante/recorrido e incidentes sobre a fracção autónoma identificada no nº.1 da matéria de facto (o pagamento das contas da água e luz do imóvel apenas fazem prova do exercício de poderes de mero detentor, idênticos ao do locatário, os quais não são ofendidos pela diligência judicial de penhora - cfr.nºs.4 e 5 do probatório).
Em conclusão, não fez o embargante/recorrido prova da ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial de penhora levada a efeito no espaço da execução fiscal nº…..-2013/106….. e apensos, que se traduza num acto de agressão patrimonial e seja susceptível de defesa através de embargos de terceiro.
Com estes pressupostos, deve este Tribunal revogar a sentença recorrida, a qual padece de erro de direito incidente sobre os requisitos do decretamento dos embargos de terceiro (cfr.artº.237, nº.1, do C.P.P.T.).
Arrematando, sem necessidade de mais amplas ponderações, deve julgar-se procedente o presente recurso e revogar-se a sentença recorrida, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO e, em consequência, revogar a decisão recorrida e julgar improcedentes os presentes embargos de terceiro, mais se mantendo a penhora identificada no nº.8 do probatório.
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Condena-se o embargante/recorrido em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 5 de Junho de 2019



(Joaquim Condesso - Relator)


(Vital Lopes - 1º. Adjunto)



(Patrícia Manuel Pires - 2º. Adjunto)