Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1826/12.8 BELRS
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/11/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INCIDENTE DE ESCUSA DO JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I-Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

II- O princípio do juiz natural só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, como seja o da imparcialidade e isenção de juiz, o ponham em causa.

III-Não constitui fundamento de escusa, o facto de o titular dos autos manter contactos com outra magistrada judicial em contexto sempre relacionado com a profissão.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

1. Do objecto do incidente

O Senhor Juiz de Direito, Dr. ………………….., a exercer funções no Juízo Administrativo Social do TAC de Lisboa, veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1, alínea g), ex vi artigo 1.º, do CPTA, que lhe seja concedida dispensa de intervir na acção administrativa que com o n.º 1826/12.8 BELRS lhe foi atribuída e em que é autor o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, em representação de uma sua, então, associada, V……………………, à data de hoje (bem como no ano judicial transacto) Juíza de Direito, a exercer funções no Juízo comum do Tribunal Tributário de Lisboa.

A pretensão do Senhor Juiz escusante assenta na relação de amizade que desenvolveu e mantém diariamente com a Senhora Juíza V…………... Relacionamento que vem assim caracterizado: (…) do contexto de trabalho, como em algumas actividades (….) almoços e actividades de grupo em contexto de trabalho”, de “considerável proximidade, ainda que, diga-se, sempre num contexto relacionado com a profissão, não se tratando de uma pessoa que frequente a caso do ora signatário, ou vice-versa”. Razão porque entende que os factos que invoca podem levar as partes a pôr em dúvida a sua capacidade de ajuizar com imparcialidade a acção, configurando, por conseguinte, uma situação subsumível à previsão do n.° 1 do artigo 120.° do CPC.

As partes foram notificadas do pedido escusa, mas nada disse.

Não havendo necessidade de proceder a qualquer outra diligência, cumpre decidir.

2. Apreciando:

Nos termos do artigo 119º, nº1 do CPC [aqui aplicável por força do artigo 1º do CPTA] o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de” intervir na causa quando se verifiquem alguma dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

A lei não apresenta expressamente a definição de circunstâncias ponderosas, pelo que será a partir do senso e das regras da experiência comum que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas, tendo sempre presente que o regime dos impedimentos/suspeições não se contenta com um qualquer motivo; ao invés exige que o motivo seja “sério, e grave” e “adequado a geral a sua desconfiança sobre a sua imparcialidade” (vide artigo 120º, nº1 do CPC).

A função jurisdicional e também a imparcialidade, a autonomia e a isenção que se pretendem com a actividade dos juízes e dos tribunais é assegurada pelo princípio da independência que é definida na Constituição pela sua definição objectiva - “independência dos tribunais” (artigo 203.º da CRP e artigos 3.º e 4.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na versão dada pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto).

Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o curso do pensamento com sujeição apenas à lei, à consciência e as decisões dos tribunais superiores e ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida. Citando SALVADOR DA COSTA, “[a] exigência de imparcialidade é mais premente em relação ao juiz, certo que é a sua convicção, em cada caso que tem de resolver e decidir, que não pode deixar de ser formada com isenção e objectividade. Ele tem de estar acima e alheio aos interesses em causa no litígio, sob pena, por inidóneo, de ficar incapacitado de julgar com independência e imparcialidade” (in Os Incidentes da Instância, 2014, 7.ª ed., pp. 7-17).

Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão.

Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz (cfr. ac. Relação de Évora de 5.03.96, CJ, tomo II, p. 281).

A imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa-fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade”, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9º, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita” (Ac. do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5).

Sendo certo que “[o] juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados” (cfr. Ac. do STJ de 11.03.2021, proc. n.º 322/17.1YUSTR.L1.S1). E como, de igual forma, se afirma no recente acórdão de 1.03.2023 do STJ, no processo n.º, 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, “[a]abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)”.

Deste breve excurso, podemos resumir os contornos essenciais da questão - escusa - a um único objectivo ou finalidade qual seja o de garantir a imparcialidade do juiz, que se presume e que só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

Por seu turno o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a entender imparcialidade e objectividade exigidas para se dizer o direito, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» que é tanto a subjectiva como a objectiva.” (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115).

Quando a independência do juiz possa ser legitimamente questionada e/ou quando ocorram situações susceptíveis de gerarem dúvidas sobre a sua imparcialidade, o accionamento do mecanismo de escusa constitui um poder-dever a exercer criteriosamente pelo juiz.

Vejamos então.

Neste incidente de escusa não se discute a imparcialidade subjectiva do Senhor Juiz escusante (que, aliás, se presume até prova em contrário). O que aqui se nos coloca, é outrossim, aferir se os motivos de escusa apresentados pelo Senhor Juiz são de molde a fazer perigar objectivamente, por forma séria e grave a confiança que o cidadão médio deposita na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do Tribunal. E não são.

Os factos invocados dizem respeito aos contactos profissionais, às relações de proximidade que na sequência de um certo período de tempo, e em que por via da respectiva profissão, se geram entre pares; neste caso entre magistrados judiciais. Ora, essas relações decorrem, necessariamente, do exercício da magistratura e do que a mesma envolve. Sendo certo que as nossas leis processuais e de organização judiciária confiam o julgamento dos juízes e dos processos em que estes tenham interesses a outros juízes, sem que tais decisões constituam junto da opinião pública um factor gerador de desconfiança na generalidade dos casos.

Concluímos, pois, que os fundamentos invocados pelo Senhor Juiz requerente não têm a virtualidade de fundamentar a requerida escusa, já que não se verifica qualquer motivo adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade na condução do processo e, muito menos, um motivo sério e grave.

3. Decidindo:

Pelo exposto, indefere-se o pedido de escusa apresentado, devendo, por conseguinte, manter-se o Senhor Juiz de Direito, Dr. …………., para intervir nos autos, como o titular do processo em causa.

Sem tributação.

Notifique.

11 de Abril de 2023


O Juiz Presidente do TCA Sul
PEDRO MARCHÃO MARQUES