Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1432/11.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:OPOSIÇÃO;
REVERSÃO;
GERÊNCIA;
RENÚNCIA.
Sumário:I - Na data do facto constitutivo da dívida tributária, bem como na data limite de pagamento voluntário da dívida em causa, as oponentes já não eram gerentes da sociedade devedora originária, uma vez que renunciaram às referidas funções.
II - Relevaria a prova de actos concretos que corporizassem o mencionado exercício efectivo da gerência, o que não se demonstra nos autos. Face à factualidade provada, e que não foi impugnada pela recorrente, impõe-se concluir que o pressuposto da gerência efectiva em relação às oponentes, ora recorridas, não se mostra comprovado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO

A Representante da Fazenda Pública, com os demais sinais nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo tribunal Tributário de Lisboa, a qual julgou procedente a oposição deduzida por M….. e E….. contra a execução fiscal (processo n.º …..411), por reversão contra si por uma dívida da sociedade O….. – ….., Lda, por dívidas de IVA do período de 2009-06, no montante total de € 68.306,00. Mais determinou aquela sentença, em consequência da procedência da oposição, a condenação da Fazenda Pública no pedido de extinção do processo de execução fiscal supra identificado, mais fixando à ação o valor de € 68.306,50.

A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
«
A. Entendeu-se na douta sentença que a AT não logrou provar a gerência de facto das oponentes na sociedade “O….. - ….., Lda.”.

B. Determinando o Tribunal, com este fundamento, serem as oponentes partes ilegítimas na execução.

C. Não concorda, contudo, a Fazenda Pública com o assim decidido pelas razões que de seguida se explanam.
D. As dívidas em causa nos autos de execução dizem respeito a IVA, referente ao período 2009/06.

E. Deu o tribunal como provado que foram praticados pelas oponentes diversos atos de evidenciam o exercício de funções de gerência por parte das oponentes, a saber, certidões de citação assinadas, em 10-09-2009, pela oponente E….. (cfr. fls. 85 a 86vs dos autos) e pedido de pagamento de divida em prestações, de 14-09-2009, subscrito por ambas as oponentes.

F. Perante isto, entende a Fazenda Pública que erra a douta sentença ao considerar que não se encontra comprovado o exercício de facto de funções de gerência da sociedade executada, por parte das oponentes.

G. Isto porque, ao assinarem, na qualidade de gerentes/representantes da sociedade exteriorizaram face a terceiros, a vontade da sociedade e viabilizara, a atividade da sociedade que se obrigava com a assinatura, conjunta, de dois representantes.

H. Assim sendo, resulta provado nos autos o exercício de poderes de gerência de facto pelas Oponentes, cumprindo a Autoridade Tributária, o ónus da prova que sobre si impendia.

I. A lei não define, de forma exata e perentória, os poderes de administração ou gerência. No entanto, da leitura das normas do Código das Sociedades Comerciais (CSC) nomeadamente os artigos 259° e 260° facilmente se afere que esses poderes se traduzem na representação da empresa face a terceiros (ex: credores, trabalhadores, fisco, fornecedores, entidades bancárias, etc.) de acordo com o objeto social e mediante os quais o ente coletivo fique vinculado.

J. Isto é, um administrador/gerente, uma vez nomeado e iniciado o exercício das suas funções passa a ter direitos e obrigações para com a sociedade e para com terceiros.

K. elo que, ao decidir como decidiu, violou a douta sentença o preceituado nos art. 24°, n° 1, al. b) da LGT, art. 153° do CPPT.»
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Notificadas, as Recorrentes apresentaram as suas contra-alegações, nos termos das quais concluíram o seguinte:

A - As mesmas omitem, por certo propositadamente, factos dados como provados na sentença recorrida, em absoluto relevantes para a decisão da causa e que excluem só por si a tese da recorrente de que as oponentes tiveram gerência de facto da sociedade devedora originária.
B - As escassas duas circunstâncias em que a recorrente apoia a aludida tese, têm que ser consideradas e valoradas no contexto mais amplo integrado pelos factos alegados e provados pelas oponentes, claramente enunciados na sentença recorrida.
C - E esse contexto revela sem margem para dúvidas que nunca as oponentes foram gerentes de facto da sociedade O….., Lda, antes sempre tendo obedecido a ordens e agindo como quaisquer outras funcionárias.
D - Bem se decidiu, pois, na sentença recorrida pela procedência da oposição, que de qualquer modo e como se viu, sempre teria que resultar da circunstância de o despacho de reversão ter desrespeitado o princípio da excussão característico da responsabilidade subsidiária, já que existia na altura um crédito penhorável que, curiosamente, até constituía pelo menos em parte a origem da dívida de IVA revertida.”

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O Ministério Público deste Tribunal Central Administrativo emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, com manutenção da sentença recorrida na ordem jurídica “face à prova material produzida, por razões diversas, salvo melhor opinião e a Decisão tendo em conta critérios de legalidade estrita”.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, o objecto do mesmo está circunscrito à questão de saber se existem ou não elementos factuais, nos presentes autos, que permitam aferir da ilegitimidade das oponentes por nunca terem exercido as funções de gerentes de facto da sociedade devedora originária.

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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. De Facto
A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:
«

A) A sociedade "O….., ….., Lda.", foi inscrita no registo comercial em 18.03.2002, tendo como sócios-gerentes as oponentes e F….. (cfr. fls. 19 dos autos).

B) Através da Ap. ….. e da Ap. ….., foi inscrita no Registo Comercial referente à sociedade identificada na alínea antecedente, a renúncia à gerência das oponentes E….. e M….., com efeitos a 11.09.2007 e 10.01.2008 (cfr. fls. 20 dos autos).


C) Através da Ap. ….., foi inscrita no Registo Comercial a retificação dos averbamentos referentes às apresentações referidas na alínea antecedente, passando a constar como datas das renúncias o dia 21.08.2005 (cfr. fls. 20 dos autos).

D) Através da Ap. ….., foi inscrita no Registo Comercial a nomeação como gerente da sociedade referida em A), J….., por deliberação de 09.08.2006, sendo inscrita a sua renúncia à gerência através da Ap. ….. com efeitos a 11.09.2007 (cfr. fls. 21 dos autos).

E) Através da Ap. ….. foi registada a nomeação das oponentes e de J….. como gerentes da sociedade "O….., Lda", por deliberação de 10.01.2008 (cfr. fls. 22 dos autos).

F) Através das Ap. ….. e ….., foi registada a renúncia à gerência das oponentes e de J….., com efeitos a 29.01.2008, e a nomeação como gerentes de A….. e de C….., por deliberação datada de 29.01.2008 (cfr. fls. 23 dos autos).

G) Em 03.09.2009 foi instaurado junto do Serviço de Finanças de Lisboa ….., contra a sociedade "O….. - ….., Lda.", o processo de execução fiscal n° …..411, para cobrança de dívida de IVA de 2009-06 no montante de 97.580,71€ (cfr. fls. 2 e 3 do PEF apenso).

H) Em 10.09.2009 foram lavradas certidões de citação da sociedade "O….., Lda.", no âmbito dos PEF's …..620, …..647 e …..639, as quais foram assinadas pela ora oponente E….. (cfr. fls. 85 a 86-verso dos autos - numeração em suporte de papel).
I) Em 14.09.2009 foi passada procuração por C….. e por A….., a favor de J….. e das oponentes, com o seguinte teor:
"PROCURAÇÃO
C….., casado, natural de Lisboa, freguesia de São Jorge de Arroios, residente na Rua ……, Faro, portador do B.I. n° ….., de 23/11/2006, emitidos pelo S.I.C. de Lisboa e A….., divorciado, natural de Lisboa, freguesia de Santa Justa, residente na Av. ….., Reboleira, Amadora, portador do B.I. n° ….., de 20/11/2003, emitido pelos S.I.C. de Lisboa, gerentes da sociedade comercial por quotas sob a firma "O….. - ….., LDA", com sede na Rua ….., freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, com o capital social inteiramente realizado de dez mil euros, N.I.P.C. ….., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob este número, constituem procuradores da sociedade sua representada, J….., solteiro, maior, natural de Lisboa, freguesia de Santa Justa, residente na Rua ….., Sesimbra, E….., solteira, maior, natural da freguesia e concelho do Barreiro, residente na Rua ….., Barreiro e M….., solteira, maior, natural da freguesia e concelho do Barreiro, residente na Rua ….., Barreiro, a quem, conjuntamente, sendo sempre necessária duas assinaturas, conferem os seguintes poderes:
a) -Abrir e cancelar contas bancárias, constituir depósitos bancários à ordem ou a prazo, realizar aplicações financeiras em bancos, depositar dinheiro e valores nos bancos e ali levantar quantias, emitir e assinar cheques, aceitar, sacar, endossar, descontar e reformar letras, subscrever e reformar livranças, pagar dívidas e negociar os respectivos pagamentos.
b) - Efectuar pagamentos a fornecedores e cobrar valores devidos à sociedade.
c) - Levantar correspondência nas estações de correio.
d) - Negociar e celebrar contratos, desde que compreendidos no objecto da sociedade.
e) - Comprar e vender veículos automóveis.
f) - Celebrar contratos de "leasing" respeitantes a veículos automóveis e a bens móveis e imóveis afectos à sociedade e ceder a terceiros a respectiva posição contratual.
g) - Admitir e despedir empregados, podendo celebrar os respectivos contratos de trabalho.
h) - Receber indemnizações devidas à sociedade, designadamente junto de Seguradoras.
i) - Representar a sociedade junto de Serviços de Finanças, Câmaras Municipais, Conservatórias, Segurança Social e outros Organismos Públicos, aí podendo praticar quaisquer actos.
j) - Apresentar queixas-crime e participações a qualquer autoridade, designadamente solicitando a apreensão de veículos automóveis.
l) - Emitir e anular facturas, notas de crédito e débito.
m) - Celebrar contratos de arrendamento.
__Também conferem poderes forenses aos procuradores, que estes deverão substabelecer em advogado, quando necessário." (cfr. fls. 161 a 168 dos autos - numeração do SITAF).

J) Em 14.09.2009 foi apresentado em nome da sociedade "O….., Lda.", junto do SF de Lisboa ….., requerimento dirigido ao PEF identificado em G), referente a pedido de pagamento em prestações por dificuldades financeiras, encontrando-se tal requerimento assinado pelas oponentes (cfr. fls. 5 do PEF apenso).

K) Em 18.02.2011 foi lavrada certidão de diligências por funcionário do SF de Lisboa ….., com o seguinte teor:
"PROCESSOS EXECUTIVOS: …..120; …..612 e apensos;
…..411; …..990; …..087 e apensos
CERTIDÃO DE DILIGÊNCIAS
Efectuadas que foram todas as diligências possíveis no sentido de dar cumprimento ao mandado de penhora constante dos autos, verifiquei serem desconhecidos nesta data e na área deste Serviço de Finanças de Lisboa-….. quaisquer bens ou direitos (prédios, viaturas, rendas, créditos ou outros valores ou rendimentos) pertencentes à executada O….., Lda. NIPC ….., que permitam arrecadar os valores devidos à Fazenda Nacional." (cfr. fls. 19 do PEF apenso).

L) Em 18.02.2011 foi proferido, pela Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ….., despacho a determinar a preparação do PEF n° …..411 para efeitos de reversão contra as oponentes (cfr. fls. 23 e 24 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

M) Notificadas para o efeito, as ora oponentes exerceram o seu direito de audição prévia em 17.03.2011 (cfr. fls. 33 e 34 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

N) Em 20.04.2011 foram elaboradas duas informações, por técnica do SF de Lisboa ….., com o mesmo teor, mas respeitantes a cada uma das ora oponentes, onde consta designadamente o seguinte:
“(…)
Compete-me informar que a reversão iniciada tem por origem dívidas de IVA do período 200906 e que em 14-09-2009 veio a revertida E…../M….., (...), na qualidade de gerente requerer o pagamento em prestações para o processo executivo, conforme documento constante dos autos.
Mais informo, que apesar de na certidão da Conservatória do Registo Comercial constar que a revertida em causa deixou de exercer funções de gerência em 29-01-2008, a mesma continuou a proceder perante o Serviço de Finanças como gerente de facto da Sociedade O….. Lda., NIPC ….., não tendo até à data comunicado à Administração Fiscal a alteração da gerência.

Assim, e por estar provada nos autos a gerência de facto, propõe-se a continuidade do processo de reversão nos termos da LGT artigo 24° n°1 b)." (cfr. fls. 47 e 49 do PEF apenso).
O) Com base na informação referida na alínea antecedente, foi em 20.04.2011 proferido despacho de reversão contra cada uma das oponentes, com fundamento nos artigos 23° e 24°, n° 1, alínea b) da LGT (cfr. fls. 47 a 52 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

P) As oponentes foram citadas dos despachos de reversão referidos na alínea antecedente em 03.05.2011 (cfr. fls. 53 a 58 do PEF apenso).

Q) A sociedade "O….., Lda." instaurou junto do Balcão Nacional de Injunções, contra a sociedade "S….. - ….., S.A." o processo de injunção n° 124327/10.8YIPRT, para cobrança do montante de 215.128,19€, referente a contrato de fornecimento de bens e serviços, sendo as faturas todas datadas de 2009, com datas de vencimento compreendidas entre 24.04.2009 e 19.09.2009 (cfr. fls. 28 dos autos).

R) Por sentença proferida em 19.02.2013 foi a sociedade "S….., S.A." condenada a efetuar o pagamento de 215.128,19€ à "O….., Lda.", sem embargo das penhoras de créditos determinadas em sede de execuções fiscais (cfr. fls. 212 a 224 dos autos - numeração do SITAF).

S) Por acórdão proferido em 14.05.2015, pelo Tribunal Coletivo da 1° Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa, na sequência de despacho de pronúncia contra a sociedade "O….., Lda.", contra as oponentes e contra A….., imputando-lhes crimes de abuso de confiança fiscal e de fraude fiscal com referência a IVA de 2008 e 2009, foram as oponentes absolvidas, tendo sido dado como provado que as oponentes foram admitidas como funcionárias da O….. no ano de 2002, que detiveram em seu nome duas quotas na sociedade até 25.02.2010, que enquanto exerceram funções na O….. recebiam ordens de F….. e J….. e a partir de determinada altura, de C….. (cfr. doc. de fls. 169 a 208 dos autos - numeração do SITAF -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

T) As Oponentes aceitaram ser sócias da "O….., Lda." a pedido de J….., com quem já trabalhavam noutras empresas, nunca tendo colocado qualquer montante ou recebido qualquer montante pelas quotas detidas.

U) As oponentes, enquanto funcionárias da sociedade "O….., Lda.", atuaram sempre sob as ordens de J….. e seu irmão F….., e a partir de determinada altura, sob as ordens de C…...
V) As oponentes, no desempenho das suas funções na sociedade "O….., Lda.", sempre atuaram ao mesmo nível hierárquico dos seus restantes colegas de trabalho na sociedade.
W) Foi a testemunha S….. quem elaborou o documento descrito na alínea H) dos factos assentes, em cumprimento de ordem dada por C….., tendo as oponentes assinado o mesmo também por ordem deste e salvaguardadas pela procuração referida em I) do probatório.
X) A procuração referida em I) do probatório foi passada com o propósito de permitir às oponentes cumprir as ordens dadas pelos gerentes da empresa quando estes não estavam presentes na mesma, e encontrava-se guardada no cofre da sociedade
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No que respeita a factos não provados, nos dizeres da sentença: “Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
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A convicção do Tribunal Tributário de Lisboa fundou-se, conforme a sentença, “prática documental junta aos autos e no processo executivo, bem como nos depoimentos das testemunhas, que, se assumindo como depoimentos espontâneos, sinceros, sem reservas e por isso credíveis, revelaram conhecimento direito da factualidade relevante.
Ainda sobre motivação refere a sentença o seguinte:
Os factos dados como provados em X) a T) do probatório resultaram, antes de mais, das declarações das próprias oponentes que, de forma clara, coerente e espontânea, explicaram a forma como se tornaram sócias e gerentes de direito da sociedade devedora originária, qual o seu papel na empresa, qual o papel dos restantes intervenientes na estrutura societária e gestionária, e a forma e razões pelas quais aparece a procuração passada a seu favor e o pedido de pagamento em prestações apresentado junto do Serviço de Finanças.
De resto, as declarações das oponentes foram corroboradas em pleno pelos depoimentos das três testemunhas inquiridas, S….., S….. e C….., que, por terem sido funcionárias da empresa em questão no período relevante para os autos, demonstraram ter pleno conhecimento da situação daquela, e que foram perentórias a declarar que as oponentes mais não eram senão suas colegas de trabalho, sem poder superior ou hierárquico perante si, nunca tendo dado ordens na qualidade de gerentes da empresa. Ao invés, todas as testemunhas e as oponentes convergiram quanto à identificação dos verdadeiros responsáveis pela condução dos destinos da sociedade.
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Ao abrigo do art. 662º do CPC, por poder revelar-se útil à decisão da causa, e se encontrar provado documentalmente, adita-se ao probatório o seguinte facto:
Z) A dívida de IVA [de 2009-06] em cobrança coerciva na presente execução fiscal, tinha como prazo limite de pagamento voluntário a data de 10/08/2009, cfr. fls. 3 do PEF apenso.

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II.2. De Direito

Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida, em síntese, julgou procedente a oposição à execução fiscal, e em consequência declarou extinta a execução fiscal, relativamente às oponentes.

A recorrente discorda do julgado, invocando erro de julgamento da sentença recorrida [conclusões de recurso F.a K.] ao considerar que não se encontra comprovado o exercício de facto de funções de gerência da sociedade executada, por parte das oponentes. Isto porque, ao assinarem, na qualidade de gerentes/representantes da sociedade exteriorizaram face a terceiros, a vontade da sociedade e viabilizara, a atividade da sociedade que se obrigava com a assinatura, conjunta, de dois representantes. Assim sendo, resulta provado nos autos o exercício de poderes de gerência de facto pelas Oponentes, cumprindo a Autoridade Tributária, o ónus da prova que sobre si impendia. A lei não define, de forma exata e perentória, os poderes de administração ou gerência. No entanto, da leitura das normas do Código das Sociedades Comerciais (CSC) nomeadamente os artigos 259° e 260° facilmente se afere que esses poderes se traduzem na representação da empresa face a terceiros (ex: credores, trabalhadores, fisco, fornecedores, entidades bancárias, etc.) de acordo com o objeto social e mediante os quais o ente coletivo fique vinculado. Isto é, um administrador/gerente, uma vez nomeado e iniciado o exercício das suas funções passa a ter direitos e obrigações para com a sociedade e para com terceiros. Pelo que, ao decidir como decidiu, violou a douta sentença o preceituado nos art. 24°, n° 1, al. b) da LGT, art. 153° do CPPT.

Vejamos.

- Do alegado erro de julgamento quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade subsidiária, em particular, o requisito da gerência efectiva –

Em execução estão dívidas provenientes de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), do período de 2009-06, cujo prazo limite de pagamento voluntário terminou em 10/08/2009, cfr. alínea Z) do probatório, cuja responsabilidade foi inicialmente imputada pela administração fiscal à executada devedora originária. Tal significa que estão em causa dívidas cujo facto tributário ocorreu na vigência na vigência da LGT que entrou em vigor em 01.01.99, pelo que o diploma legal aplicável à efectivação da responsabilidade subsidiária é o vigente à data do facto tributário correspondente.
Importa, ainda, realçar que na data do facto constitutivo da dívida tributária, bem como na data limite de pagamento voluntário da dívida em causa, as oponentes já não eram gerentes da sociedade devedora originária, uma vez que renunciaram às referidas funções em 11/09/2007 e 10/01/2008, respectivamente, cfr. al.B) do probatório, tendo posteriormente rectificado os averbamentos passando a constar como data das renúncias, o dia 21/08/2005, cfr. alínea C) do probatório.
No âmbito do regime do artigo 24.º da LGT, constitui pressuposto da efectivação da responsabilidade subsidiária o exercício da gerência efectiva por parte do revertido/oponente.
A este propósito de referir que «[c]omo resulta da regra geral de que quem invoca um direito tem que provar os respectivos factos constitutivos – artigo 342.º, n.º 1, do código Civil e artigo 74.º, n.º 1, da LGT, é à AT, enquanto exequente, que compete demonstrar a verificação dos pressupostos que lhe permitam reverter a execução fiscal contra o gerente da sociedade originária devedora e, entre eles, os respeitantes à existência de gestão de facto.
Por outro lado, não há presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício da função. Ora, só quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (artigo 350.º, n.º 1, do CC)». Mais se refere que: «compete à AT invocar como fundamento da reversão que o revertido exerceu efectivas funções como gerente no período a considerar. Se o não fizer, e se limitar a invocar a gerência de direito como fundamento da reversão, não pode o tribunal com competência para o julgamento da matéria de facto inferir a gerência efectiva da gerência de direito. Contrariamente ao que temos visto sustentado inúmeras vezes, não pode a Fazenda Pública pretender, ao abrigo da referida presunção judicial – que não constitui mais do que a possibilidade do uso das regras da experiência concedida ao julgador no julgamento da matéria de facto -, que ao abrigo dessa possibilidade concedida ao julgador, que fica dispensada de alegar essa gerência efectiva, o efectivo exercício de funções de gerência, como requisito para reverter a execução ao abrigo do artigo 24.º da LGT»
Existe gerência de facto «quando alguém – ainda que de modo esporádico e apenas em relação a um único pelouro da empresa – exterioriza de algum modo a representação da vontade social por meio de actos substantivos e materiais, vinculando terceiros» [Ac. do TCA Sul, de 09.02.99, P. 00227/97]. O que importa não é a relação jurídico-civil entre o oponente e a sociedade, mas antes a relação entre ele a vida da sociedade, a ponto de se poder comprovar a imediação entre a vontade por si externada e a vontade a imputável à sociedade e, como consequência, aferir do grau de censurabilidade que a sua actuação implicou para a garantia patrimonial dos credores da mesma. Por outras palavras, o que releva é o exercício de representação da empresa face a terceiros (credores, trabalhadores, fisco, fornecedores, entidades bancárias) de acordo com o objecto social e mediante os quais o ente colectivo fique vinculado. Se é verdade que «[d]a nomeação para gerente ou administrador (gerente de direito) de uma sociedade resulta uma parte da presunção natural ou judicial, baseada na experiência comum, de que o mesmo exercerá as correspondentes funções, por ser co-natural que quem é nomeado para um cargo o exerça na realidade;
Contudo, desde a prolação do acórdão do Pleno da Secção de CT do STA de 28-2-2007, no recurso n.º 1132/06, passou a ser jurisprudência corrente de que para integrar o conceito de tal gerência de facto ou efectiva cabia à AT provar para além dessa gerência de direito assente na nomeação para tal, de que o mesmo gerente tenha praticado em nome e por conta desse ente colectivo, concretos actos dos que normalmente por eles são praticados, vinculando-o com essa sua intervenção, sendo de julgar a oposição procedente quando nenhuns são provados». [Ac. do TCAS, de 20.09.2011, P. 04404/10].

No caso em exame, do probatório resulta que a AF não logrou demonstrar o exercício efectivo da gerência por parte das oponentes.

Até porque no caso que agora apreciamos, tal como se escreveu na sentença recorrida:
«(…) no caso dos autos, nem é a designação de gerentes de direito que motivou a reversão da execução contra as oponentes, uma vez que, corretamente, o Órgão da Execução Fiscal verificou e considerou a efetivação da renúncia à gerência de direito por parte das oponentes com efeitos à data de 29.01.2008.
Assim, o que motivou a reversão da execução contra as oponentes foi exclusivamente a consideração de que a apresentação em 14.09.2009 de pedido de pagamento em prestações assinado pelas oponentes, em representação da sociedade, representa a demonstração de que estas eram gerentes de facto da empresa, mesmo após a renúncia à gerência de direito.
Na realidade, não se encontram provados, ou sequer alegados pelo órgão da execução fiscal quaisquer outros factos concretos que permitam indiciar o exercício efetivo de poderes de administração por parte das oponentes.
Ora, se é certo que a assinatura daquele requerimento de pedido de pagamento em prestações é suscetível de indiciar o exercício da gerência de facto da devedora originária por parte das oponentes, tal indício perante a prova clara e contundente produzida nos presentes autos de que as oponentes nunca detiveram poderes efetivos de gerência na sociedade, mesmo quando se encontravam nomeadas como gerentes de direito, e a explicação cabal da forma e das razões pelas quais aquele requerimento foi apresentado junto do Serviço de Finanças, retiram força àquele indício.»
Concorda-se inteiramente com os fundamentos da sentença recorrida.
Se já não basta a mera invocação da inscrição no registo da oponente, como gerente, no acto de constituição da sociedade para se extrair a ocorrência de actos de gerência praticados pela oponente em nome da sociedade devedora originária; por maioria de razão, neste caso, em que as oponentes já nem eram gerentes de direito, nunca bastaria uma assinatura num pedido de pagamento em prestações junto do Serviço de Finanças, para se poder concluir pela gerência de facto.
Vem, igualmente, a recorrente invocar que a oponente E….. assinou certidões de citação em 10/09/2009.
Ora, conforme alínea H) do probatório, em 10.09.2009 foram lavradas certidões de citação da sociedade "O….., Lda.", no âmbito dos PEF's …..620, …..647 e …..639, as quais foram assinadas pela ora oponente E…...
Invoca a recorrente que se mostram verificados os pressupostos legais de que depende a reversão da execução, encontrando-se demonstrada a gerência de facto por parte das recorridas.

Relevaria a prova de actos concretos que corporizassem o mencionado exercício efectivo, o que não se demonstra nos autos.
Até porque as assinaturas de certidões de citação são assinaturas de recebimento de citação que nada relevam sobre o seu autor enquanto órgão actuante da sociedade, capaz de exteriorizar a vontade societária.

Para além do mais, e conforme alínea S) do probatório, por acórdão proferido em 14.05.2015, pelo Tribunal Coletivo da 1° Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa, na sequência de despacho de pronúncia contra a sociedade "O….., Lda.", contra as oponentes e contra A….., imputando-lhes crimes de abuso de confiança fiscal e de fraude fiscal com referência a IVA de 2008 e 2009, foram as oponentes absolvidas, tendo sido dado como provado que as oponentes foram admitidas como funcionárias da O….. no ano de 2002, que detiveram em seu nome duas quotas na sociedade até 25.02.2010, que enquanto exerceram funções na O….. recebiam ordens de F….. e J….. e a partir de determinada altura, de C….. .
Por outro lado, conforme consta das alíneas T), U) e V) do probatório, as Oponentes aceitaram ser sócias da "O….., Lda." a pedido de J….., com quem já trabalhavam noutras empresas, nunca tendo colocado qualquer montante ou recebido qualquer montante pelas quotas detidas. As oponentes, enquanto funcionárias da sociedade "O….., Lda.", atuaram sempre sob as ordens de J….. e seu irmão F….., e a partir de determinada altura, sob as ordens de C…... As oponentes, no desempenho das suas funções na sociedade "O….., Lda.", sempre atuaram ao mesmo nível hierárquico dos seus restantes colegas de trabalho na sociedade.

Face à factualidade provada, e que não foi impugnada pela recorrente, impõe-se concluir que o pressuposto da gerência efectiva em relação às oponentes, ora recorridas, não se mostra comprovado.

Deste modo, sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se improcedente o presente recurso e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.

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III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 7 de Maio de 2020


[Lurdes Toscano]

[Maria Cardoso]

[Catarina Almeida e Sousa]