Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:77/21.5BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/07/2021
Relator:RICARDO FERREIRA LEITE
Descritores:RESPONSABILIDADE PELA INFRAÇÃO DISCIPLINAR;
LIBERDADE DE PENSAMENTO E EXPRESSÃO;
JUSTIÇA DESPORTIVA
Sumário:I. Resulta do disposto no artº 7º, nº e 4 do 2 Regulamento Disciplinar da Liga que os clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portugal e no âmbito dessas competições e que essa responsabilidade disciplinar não se extingue no caso de transformação em sociedade desportiva ou da personalização jurídica da equipa que participa nas competições profissionais, transmitindo-se para a entidade que lhe suceder na sequência da operação de transformação societária.

II. O direito à crítica constitui uma afirmação do valor da liberdade de pensamento e expressão, consagrado no artigo 37.°, n.° 1, da CRP; mas esse direito não é ilimitado, devendo respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção legal e constitucional, nomeadamente o direito ao bom nome e reputação, previsto também ele na Constituição da República Portuguesa, especificamente no seu artigo 26°, n.° 1.

III. Ao publicar afirmações no sentido de que certas equipas de arbitragem não arbitraram certas e determinadas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritas, coloca-se, assim, deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação, incorrendo-se na infração disciplinar prevista e punida no artigo 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).

IV. Fazer referências explícitas a erros de arbitragem, motivados por suposta covardia perante pressões a que são sujeitos, põe em causa o direito ao bom nome e reputação dos intervenientes, abala a confiança nas instituições desportivas e dirigentes, cria um crescente desrespeito pela arbitragem e potencia comportamentos violentos e antidesportivos.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo – Sul:

I. Relatório
S..., Recorrente nos presentes autos, em que é Recorrido o CONSELHO DE DISCIPLINA DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL – SECCÇÃO PROFISSIONAL todos com os demais sinais nos autos, veio interpor recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), datado de 26-05-2021, o qual julgou, improcedente, por não provado, o pedido de revogação do Acórdão recorrido que condenou a Recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 112º, nºs 1, 3 e 4 do RD.

Para tanto, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
1. “Andou mal o Aresto Recorrido ao decidir como decidiu.

2. Atenta a prova produzida nos Autos e melhor elencada em sede de Alegações, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

A - A NewsB... é uma newsletter diária, elaborada pelo S..., dedicada ao dia a dia e temas relevantes para o Clube.

B - Entre outras temáticas, a referida publicação abarca as modalidades amadoras e outras entidades do grupo B..., como seja, por exemplo a Fundação B....

C- No dia 1 de Dezembro de 2020, citando o dirigente da S..., M..., o site especializado em notícias sobre futebol, “bancada.pt", escreveu o seguinte:

«M... aproveitou a presença no programa Raio-X S..., da S... TV, para responder ao director de comunicação portista, afirmando que o F...“está a voltar a trazer ao de cima” uma cultura dos anos 80 de “pressão sobre os árbitros" e “jornalistas",
“É uma linguagem bélica que a comunicação do F...gosta muito de fazer. Quem parece que não admite qualquer erro e parece que nunca fez nada de mais e, quando erra, até o faz de propósito é o F…”, começou por dizer M....
“É uma cultura dos anos 80 que o F...está a voltar a trazer ao de cima: uma cultura de pressão sobre os árbitros, sobre os jornalistas, enfim. Fazem uma cartilha de mentiras e põem outras pessoas a dizer mentiras para nós acreditarmos”, continuou.”

D - As declarações transcritas em C foram alvo de divulgação noutros órgãos de comunicação social, como sejam, por exemplo, o Record e o Expresso
E - No dia 1 de Dezembro de 2020, no rescaldo do jogo F...SAD vs M…, a contar para a UEFA Champions League, "F…”, jogador da equipa inglesa, comentando a partida, afirmou: ““Foi um jogo complicado contra uma equipa com um estilo único de jogar: pressionam os árbitros, caem em todas as faltas e parece que precisam de chamar a ambulância. Foi um jogo difícil como são todos na Champions"
F - No dia 11 de Dezembro de 2020, a Rádio Renascença, noticiando declarações do treinador P…, treinador do CD T… SAD, escreveu o seguinte:
«P… pede mais contenção a S… e aos elementos do banco do F...no jogo de domingo para a Taca de Portugal. 0 treinador basco regressa ao D... , uma semana depois de ter sido derrotado para o campeonato e espera ver comportamento diferente do árbitro.
P... critica a forma como se comportaram os elementos do banco do F...no último jogo com o T... (4-3), para o campeonato, e espera que no reencontro entre as duas equipas, de novo no D... , agora para a Taça, o cenário seja diferente. Se não for, "espero que o árbitro faça a função".
O treinador basco considera que tal forma de estar, "protestando a cada jogada", acaba por condicionar a equipa de arbitragem.
"Nós não fomos derrotados pelas decisões do árbitro. Perdemos porque o P... esteve por cima em grande parte do jogo, mas creio que houve momentos em que a influência sobre o árbitro é excessiva. E todos sabemos que apitar no D... não é a mesma coisa que apitar no J... . Tal como é diferente apitar no Bernabéu ou no estádio do Levante", observa.
P... entende que todos têm direito a discordar das decisões do árbitro. O que não compreende é a contestação permanente. "Quando é a cada jogada a intenção é outra", ressalva.
"Equipas como o P... já têm vantagem suficiente"
"Os árbitros têm de ter isso em conta. Equipas como o P... já têm vantagem suficiente, com o plantel que têm. Creio que dar-lhes mais vantagem não é bom para a competição", acrescenta o treinador basco que se queixa do "barulho" que ouviu do banco adversário.
"O árbitro deve apitar, os jogadores devem jogar e o banco deve dirigir o jogo e animar a sua equipa. O estádio estava vazio, mas, por vezes, dava-me a entender que estava cheio tal era o barulho que vinha do banco do P... . Não é verdade que o que mais barulho faz, o que mais grita está certo. É que por vezes parece", critica.
No final do jogo para o campeonato, P...criticou algumas decisões da equipa de arbitragem, que considerou terem tido influência no resultado, que terminou com a derrota do T... , por 4-3.»”
G - As declarações descritas em F foram, ainda, noticiadas pelo jornal Record
H - A propósito do desafio entre F...SAD e M… SAD, comentando a prestação da equipa de arbitragem e do VAR, D... , antigo árbitro, e comentador especialista em arbitragem escreveu, em artigo publicado no jornal a «A Bola», sob o título “Noite terrível”, que “R… teve noite muito difícil no D... e não contou com a ajuda do videoárbitro’’, e, bem assim, que aos “42' — D… colocou a mão direita no ombro/costas de Z… e empurrou-o, no momento em que ambos se movimentavam para a frente, no sentido de chegar à bola. Ao contrário do lance anterior — entre A… e R… —, este contacto afastou o defesa de forma irregular. O golo devia ter sido anulado, em lance de interpretação (logo fora da zona de intervenção do VAR)."
I - O referido artigo destaca, em caixa, que o árbitro R... teve noite muito difícil no D... e não contou com a ajuda do videoárbitro L...
J - Em 2017, foi público e noticiado o seguinte:

- “Alguns elementos dos Super Dragões, principal claque portista. estiveram esta quinta-feira ao início da tarde no centro de treinos dos árbitros na Maia, tendo falado com alguns dos juízes, em especial A... , o nomeado para o P…-F... do próximo fim-de-semana.
O internacional portuense foi mesmo ameaçado pelos referidos indivíduos, que prometeram voltar caso o encontro marcado para sábado não agrade aos Portistas. S... ouviu o que tinham para lhe dizer mas acabou por treinar normalmente, tal como os restantes árbitros presentes no local.
Quem estava iqualmente no centro de treinos era J... , presidente do Conselho de Arbitragem (CA). Assistiu a tudo e manteve-se no local até ao final do treino
L - No dia 8 de Fevereiro de 2020, no Estádio do D... , no P... , realizou-se o jogo F...SAD vs SL B... SAD a contar para a 20.a jornada da Liga NOS.
M - No dia do jogo, antes do início da partida, no viaduto da Alameda das Antas, foram exibidos dois bonecos insufláveis, pendurados com uma corda ao pescoço, um deles vestido com o equipamento do SL B..., e o outro com o equipamento de árbitro de futebol.
N - Os dois bonecos referidos, simbolizando o enforcamento do árbitro e de um jogador da aqui Recorrente, S...., foram colocados em via pública de acesso ao Estádio do D... , situada a menos de 100 metros deste, e dentro do anel ou perímetro de segurança, tal como definidos nas alíneas j) e k) do número 1 do artigo 4.° do RD LPFP
O • Não obstante estarem a escassos metros do recinto desportivo utilizado pela F...SAD, os aludidos bonecos não foram por aquela removidos, tendo sido necessária a intervenção das forças públicas de segurança para o efeito.
Q - Esses factos não foram disciplinarmente sancionados.''
3. Em consequência do predito, deverão os pontos 1, 4 e 6 da matéria de facto provada ser considerados como não provados e, doravante, indicados nessa sede.

4. As afirmações proferidas são imputáveis ao S... e não à Recorrente.

5. Não são considerados provados quaisquer factos que permitam a imputação das declarações à Recorrente, pelo que a mesma é feita em termos de responsabilidade objectiva.

6. Os n.os 1 e 4 do artigo 112.° do RD LPFP são inconstitucionais, quando interpretados no sentido em que o foram em sede de Decisão Recorrida, por violação do artigo 1.° e n.os 2,3 e 10 do artigo 30.° da Constituição da República Portuguesa, conforme melhor detalhado em sede de Alegações.

7. As declarações proferidas foram-no, pelo S..., ao abrigo da liberdade de expressão, prevista no artigo 37.° da Constituição da República Portuguesa.

8. Caso se considere que as declarações proferidas o foram pela Recorrente, sempre deverão os Autos baixar ao Tribunal Arbitral do Desporto , conforme melhor detalhado em sede de Alegações, com vista à fixação da medida da multa a aplicar à Recorrente, em virtude daquele Tribunal ter considerado ofensivas apenas dois segmentos da Newsletter publicada pelo S..., ao invés dos 14 (catorze) considerados pela Recorrida.

Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente Recurso ser considerado procedente, por provado, e consequentemente, ser o Acórdão recorrido revogado e a Recorrente absolvida da imputação que lhe é efectuada, ou, caso assim não se entenda,

Sempre deverão os Autos baixar ao Tribunal Arbitral do DesPorto, de forma a ser fixada a medida da multa a aplicar à Recorrente em conformidade com a fundamentação da Decisão proferida por aquele Tribunal,
Em todo o caso, sempre deverão os n.os 1 e 4 do artigo 112.° do RD LPFP ser declarados inconstitucionais, quando interpretados no sentido em que o foram em sede de Decisão Recorrida, por violação do artigo 1.°, dos n.os 2, 3 e 10 do artigo 30.° e do artigo 37.° da Constituição da República Portuguesa, como que farão V. Exas,

Justiça!”


*
O Recorrido, por sua vez, apresentou as seguintes contra-alegações:
1. “A ora Recorrente foi sancionada, pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, na sanção de multa no valor de € 20.910,00 (vinte mil, novecentos e dez euros) pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 112.-, n.ºs 1, 3 e 4 do RD da LPFP de 2020.
2. A Recorrente foi sancionada, em concreto, por textos publicados na newsletter oficial News B..., melhor identificadas nos autos.
3. Dúvidas não podem subsistir quanto à imputação da responsabilidade pelos escritos daquela newsletter à ora Recorrente, tal como afirmado no Acórdão Arbitral, aliás, na senda do que vem sendo defendido e julgado pelo Supremo Tribunal Administrativo.
4. Por outro lado, o conteúdo das publicações em causa tem inegável relevância disciplinar pois configura uma lesão da honra e reputação dos órgãos da FPF ou da arbitragem.
5. O valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.9 e 181.º do Código Penal, é o direito "ao bom nome e reputação", cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.- n.9 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa ao mesmo tempo a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
6. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.9 do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
7. Em concreto, a norma em causa visa prevenir e sancionar a prática de condutas desrespeitosas entre agentes desportivos.
8. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desP... , enquanto facto de realização do valor da ética desportiva.
9. No enquadramento regulamentar dado pelos artigos em apreço, reprova-se e sanciona-se especialmente quaisquer atos verbais, gestuais ou escritos - praticados por agentes desportivos - que, assumindo natureza desrespeitadora, difamatória, injuriosa ou grosseira, ofendam o direito à honra, ao bom nome e reputação de outros agentes desportivos.
10. O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objeto do juízo, sendo certo que tal juízo não é ofensivo quando resulta do exercício da liberdade de expressão.
11. Evidentemente, se é verdade que o direito à crítica constitui uma afirmação concreta do valor da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo (artigo 37.º, n.º 1, da CRP), esse direito não é ilimitado. Ao invés, deve respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção.
12. A Recorrente sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
13. É que as declarações proferidas não têm qualquer base factual, sendo, pelo contrário, a imputação de um juízo pejorativo não só ao desempenho do(s) árbitro(s) mas à sua própria pessoa. E isso mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo, aliás, na senda da jurisprudência do STA.
14. Tais declarações merecem reparo por serem aptas a condicionar a atuação dos elementos de uma concreta equipa de arbitragem e, dessa mareira, colocar em causa a própria imagem e bom nome da competição, não se encontrando cobertas pela liberdade de expressão consagrada no artigo 37.s, n.2 1 da CRP.
15. Entendeu o TAD, e bem, que o que se retira do texto publicado na newsletter, além da normal crítica ao desempenho profissional dos árbitros é, manifestamente, uma imputação aos visados de falta de isenção, e de não atuação por motivo de cobardia no exercício das suas funções, adulterando por isso a verdade desportiva em prol de um determinado clube. Mais se indica que o escopo das normas regulamentares invocadas (mormente o art. 112º do RD) visa, além da defesa do bom nome e da reputação dos visados (tal como nos arts. 180.º e 181.º do CP), a salvaguarda da ética e valores desportivos, bem como a credibilidade da modalidade, dos competidores e cargos desportivos, pelo que as concretas declarações são disciplinarmente inadmissíveis, intoleráveis e censuráveis, constituindo ilícito disciplinar.
16. Diz ainda que "A admitir-se como normal, por parte de qualquer agente desportivo ou Clube, a imputação, sem qualquer suporte factual a árbitro ou ao Conselho de Arbitragem da FPF de parcialidade sistemática e de inacção por cobardia, estar-se- ia a dar cobertura ao intolerável achincalhamento, rebaixamento e ataque gratuito ao bom nome a que qualquer cidadão tem direito, numa perversa subversão dos valores inerentes a um Estado de Direito."
17. Assim, a norma do artigo 112.º do RD da LPFP não padece de qualquer inconstitucionalidade.
18. Face ao exposto, nenhuma censura merece o Acórdão recorrido, devendo o mesmo ser mantido.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao Recurso Jurisdicional e, consequentemente, ser mantido o Acórdão Arbitrai recorrido, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.”
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Notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, o D.º Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, não emitiu pronúncia.

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Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

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II. Delimitação do objeto do recurso (artigos 144.º, n.º 2, e 146.º, n.º 1, do CPTA, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 140.º do CPTA):
A questão suscitada pela Recorrente prende-se com saber se o TAD incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e se:
-A matéria de facto deve ser alterada nos termos propugnados pela Recorrente no ponto 2 das suas alegações;
- Existe uma impossibilidade legal de imputação na esfera jurídica da Recorrente de qualquer ato descrito na factualidade em causa e existe inconstitucionalidade dos n.os 1 e 4 do artigo 112.° do RD LPFP, quando interpretados no sentido em que o foram em sede de Decisão Recorrida, por violação do artigo 1.° e n.os 2,3 e 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (a recorrente refere-se ao artº30º, tendo este tribunal assumido que quererá referir-se ao artº 32º, referente às “garantias de processo criminal” e o único artigo que dispõe de 10 números)
- Ao contrário do decidido, a Recorrente agiu dentro dos limites da liberdade de expressão e se a interpretação efetuada dos n.ºs 1 e 4 do artigo 112.° do RDLPFP se afigura desconforme à CRP e à CEDH;
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III. Factos (dados como provados na decisão recorrida):
1. A arguida, S... - Futebol SAD, a propósito do jogo oficialmente identificado sob o n.º 10307, relativo à 3ª jornada da Liga NOS, entre Futebol Clube do P... -Futebol SAD e a M… - Futebol SAD, realizado no dia 03 de Outubro de 2020, proferiu, no dia 05 de Outubro de 2020, declarações na sua newsletter oficial, News B..., relatadas pela imprensa desportiva nacional, nomeadamente nos sítios da Internet O Jogo, Notícias ao Minuto, Observador, EntretenimentoBit e desPorto sapo - sportinforma.
2. As declarações constantes na imprensa acima mencionada são a reprodução das publicadas na edição da News B..., nº 413, de 05 de Outubro de 2020 ("segunda-feira" após o jogo).
3. A equipa de arbitragem do sobredito jogo foi constituída por R... (Árbitro principal), N… (Árbitro Assistente n.º 1), N… (Árbitro Assistente, n.º 2), C… (4.º Árbitro), L... (VAR), N… (AVAR) e C… (Observador).
4. Nessa comunicação, a Arguida proferiu as seguintes declarações:
«Contrastando com os dois jogos anteriores no Campeonato Nacional, em que a nossa equipa demonstrou enorme superioridade em relação aos adversários, desta feita o Farense teve a capacidade de dar uma excelente réplica à nossa equipa.
Não está em causa o mérito do triunfo benfiquista, por 3-2, ante um opositor que procurou, e conseguiu em vários momentos do jogo, jogar de igual para igual na Luz. J… reconheceu a competência dos algarvios: "Estamos habituados a comandar, a jogar por cima do adversário, hoje não o fizemos, mas isso deve-se ao F…, teve mérito, acreditou sempre que podia disputar o jogo connosco, mesmo a perder 3-1."
O objetivo de vencer e somar três pontos foi atingido. Saliente-se que se tratou do terceiro triunfo nos três primeiros jogos do Campeonato, algo que só aconteceu pela quarta vez neste século. Os dez golos marcados perfazem um registo interessante, sendo preciso recuar a 1989/90 para se encontrar uma época mais concretizadora nestas três jornadas.
P… e S… foram os marcadores. O nosso avançado bisou e chegou aos 35 golos na Liga NOS, passando a ser o 40.9 melhor marcador de sempre do B... na principal competição nacional. Destaque ainda para D…, autor de mais uma assistência, a quarta em apenas três jornadas (R… e G… fizeram as restantes). Uma palavra ainda para O…, que com um punhado de excelentes defesas, incluindo uma grande penalidade, foi dos melhores em campo. Pela negativa, Felizmente, esse erro não hipotecou a vitória da nossa equipa, mas não deixa de ser grosseiro.
Este começo de época já está a ser marcado pela pressão exercida pelo F...antes, durante e após os jogos.
O que se passou no jogo entre F...e M… é demasiado grave para que os responsáveis pelo futebol português finjam que nada viram. Antes da partida, o treinador reclamou pelo antijogo e, na segunda parte, estando em desvantagem e sem qualquer correspondência com os tempos de paragem, foram dados mais dez minutos. O primeiro golo do F...foi precedido de falta nítida de D…. E o penálti assinalado devido a uma pretensa falta sobre M… não deveria ter existido. Quem vê o lance percebe que o jogador do M… chega antes à bola e o portista chuta no pé do adversário. Inexplicavelmente, o VAR nada disse.
E aqui colocam-se questões muito concretas ao Conselho de Arbitragem. Não viram? Não avaliam o que se passou? Qual a explicação para tão evidentes erros, principalmente do VAR?
E qual a razão para as sucessivas nomeações do VAR L… para os jogos do F… ... , quando são de todos conhecidas as suas sucessivas falhas de avaliação sempre em benefício daquele clube?
Durante o jogo, é todo um espetáculo de pressões e intimidação, por parte do banco portista, sobre adversários e equipa de arbitragem. Aliás, parece que existem duas regras nesta Liga. Uma para todos os outros clubes, impondo-se respeito e à mínima situação admoestando e bem. Outra para o F… P... , onde tudo é permitido, desde constantes insultos e pressão, além das sucessivas entradas a matar como as de P…, que beneficia de uma impunidade subserviente dos árbitros que os deveria envergonhar. Só falta mesmo voltar aos tempos das fugas em corrida dos árbitros e perseguições dos jogadores do F... perante a complacência de todos.
E no pós-jogo ainda se fazem de vítimas com a distinta lata de virem a público queixarem-se de eventuais erros de arbitragem, a qual lhes foi favorável conforme reconhecido unanimemente. Para o sistema ser perfeito, vêm depois os órgãos disciplinares aplicar castigos a quem denuncia e prova, com factos, os erros que ninguém entende por que razão existem (ainda mais com o VAR sentado calmamente com múltiplas televisões e ângulos a não ver o que todos vemos) e que nunca se interrogam sobre a repetição de algumas nomeações de quem está sempre por trás desses erros e finge não ver as constantes pressões antes, durante e após os jogos por parte dos diferentes responsáveis daquele clube. Os mesmos, afinal, que nunca viram os bonecos insufláveis, representando árbitros, enforcados em viadutos, e até hoje promoveram um apagão sobre a célebre invasão ao centro de treinos de árbitros. Estamos apenas na terceira jornada e veja-se quem, nos jogos com B… e M…, já beneficiou de erros que ninguém entende como foram possíveis. Será que no Conselho de Arbitragem ninguém viu nada? De que têm medo?»

5. As declarações em apreço tiveram repercussão na imprensa desportiva nacional.
6. A arguida S..., SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos da equipa de arbitragem do jogo em apreço, do conselho de arbitragem e dos órgãos disciplinares, afectando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que, consubstanciando comportamento previsto e punível pelo ordenamento jus- disciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar.
7. À data da prática dos factos, a Arguida S...-Futebol, SAD apresentava os antecedentes disciplinares constantes do extracto disciplinar de fls. 27 a 48 dos autos, cujo teor, por brevidade e desnecessidade de repetição, aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais e regulamentares, tendo sido condenada nas três épocas anteriores, mediante decisões transitadas em julgado, pela prática da mesma infração disciplinar em onze processos disciplinares (DIS0064-1718, DIS0028-1718, DIS0021-1718, DIS0072-1819, DIS0063-1819, IS0045-1819, DIS0038-1819, DIS0018-1819, DIS0069-1920, DIS0056-1920 e DIS0023-1920).
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IV. Direito
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas alegações, importa conhecer da pretensão recursiva formulada e que se prende com saber se:
-A matéria de facto deve ser alterada nos termos propugnados pela Recorrente no ponto 2 das suas alegações;
- Existe uma impossibilidade legal de imputação na esfera jurídica da Recorrente de qualquer ato descrito na factualidade em causa e existe inconstitucionalidade dos n.os 1 e 4 do artigo 112.° do RD LPFP, quando interpretados no sentido em que o foram em sede de Decisão Recorrida, por violação do artigo 1.° e n.os 2,3 e 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (a recorrente refere-se ao artº30º, tendo este tribunal assumido que quererá referir-se ao artº 32º, referente às “garantias de processo criminal” e o único artigo que dispõe de 10 números)
- Ao contrário do decidido pelo TAD, a Recorrente agiu dentro dos limites da liberdade de expressão e se a interpretação efetuada dos n.ºs 1 e 4 do artigo 112.° do RDLPFP se afigura desconforme à CRP e à CEDH;
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Desde já, em jeito de nota prévia, dir-se-á que a questão da baixa dos autos ao TAD para fixação de pena de multa “em virtude daquele Tribunal ter considerado ofensivas apenas dois segmentos da Newsletter publicada pelo S..., ao invés dos 14 (catorze) considerados pela Recorrida.” é uma inconsequente. A Recorrida não pôs em causa a decisão do TAD. Apenas a Recorrente o fez. Inexiste a possibilidade da reformatio in pejus, pois. Caso o presente recurso seja improcedente, transitada a decisão, será, inelutavelmente, objeto de execução o acórdão do TAD.
Isto assente, vejamos, pois, se merecem acolhimento as demais questões colocadas à apreciação deste tribunal.
Em relação à propugnada alteração da matéria de facto, muito sumariamente, tal pretensão carece de acolhimento.
Diz-se no ponto 1 dos factos provados na decisão em crise que a arguida, a propósito do jogo entre Futebol Clube do P... -Futebol SAD e a M… - Futebol SAD, realizado no dia 03 de Outubro de 2020, proferiu, no dia 05 de Outubro de 2020, declarações na sua newsletter oficial, News B..., relatadas pela imprensa desportiva nacional, nomeadamente nos sítios da Internet O Jogo, Notícias ao Minuto, Observador, EntretenimentoBit e desP... sapo - sportinforma.
No ponto 4 transcreve-se o teor dessas declarações e no ponto 6 diz-se que a arguida “agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos da equipa de arbitragem do jogo em apreço, do conselho de arbitragem e dos órgãos disciplinares, afectando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que, consubstanciando comportamento previsto e punível pelo ordenamento jus- disciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar”
Tais factos são, em si, objetivos e irrefutáveis. Questão diferente é a de saber quem poderá ser considerado autor das declarações aqui em causa e, consequentemente, responsabilizado pelas mesmas, considerando que a S..., SAD é pessoa jurídica distinta do clube de futebol S.... Mas isso é algo que escrutinaremos em sede própria, infra.
Quanto aos pontos A a Q do artigo 2 das conclusões da Recorrente, os mesmos não são relevantes para a economia da decisão. Não o foram para o TAD nem o serão nesta sede. O facto de as notícias em questão serem veiculadas em outras manchetes e por outras entidades não releva nem na escolha nem na medida da sanção que lhe foi aplicada. Se o comportamento de terceiros é punível, não é por não o ser, em concreto, ou por o ser em medida diferente, que isso desonera, total ou parcialmente, quem atua de forma ilícita.
Como tal, pela sua irrelevância, indefere-se o aditamento à matéria de facto requerido.
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No que toca à alegada impossibilidade legal de imputação na esfera jurídica da Recorrente dos atos descritos na factualidade em causa e suposta inconstitucionalidade dos n.os 1 e 4 do artigo 112.° do RD LPFP, quando interpretados no sentido em que o foram em sede de Decisão Recorrida, por violação do artigo 1.° e n.os 2,3 e 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (a recorrente refere-se ao artº30º, tendo este tribunal assumido que quererá referir-se ao artº 32º, referente às “garantias de processo criminal” e o único artigo que dispõe de 10 números), dir-se-á que também lhe não assiste razão, bastando, para tal, atentar no teor do artº 7º do Regulamento Disciplinar da Liga, segundo o qual:
Artigo 7.º
Âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares
1. As pessoas singulares serão punidas pelas faltas cometidas durante o tempo em que desempenhem as respetivas funções ou exerçam os respetivos cargos, ainda que as deixem de desempenhar ou passem a exercer outros.
2. Os clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portugal e no âmbito dessas competições.
3. Nos casos especialmente previstos no presente Regulamento os clubes serão ainda responsáveis pelas infrações disciplinares que praticarem fora do âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal.
4. A responsabilidade disciplinar dos clubes não se extingue no caso de transformação em sociedade desportiva ou da personalização jurídica da equipa que participa nas competições profissionais, transmitindo-se para a entidade que lhe suceder na sequência da operação de transformação societária.

(negrito, itálico e sublinhados são sempre de nossa autoria)

É patente que as publicações divulgadas na internet são responsabilidade desta, até porque, o referido website, divulga conteúdos do seu interesse, como se pode depreender da sua mera consulta (cfr., neste sentido, o sumariado no acórdão do STA, datado de 26.02.2019, proferido no proc. nº 66/18.7BCLSB e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A Recorrente é responsável pelo divulgado pelos sites na Internet que sejam explorados pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade, in casu, pelo S.... Portanto, independentemente de o site em alusão ser explorado por si ou pelo S..., a responsabilidade é daquela.
Porque escrutina esta questão ao pormenor, escusando-nos de maiores desenvolvimentos, veja-se, sobre a questão da interpretação desconforme à Constituição e de saber se a SAD é subjectivamente responsável pelas publicações efetuadas pelo Clube, por serem pessoas jurídicas distintas e o princípio da culpa a isso obstar, o acórdão deste TCA – Sul, datado de 24.09.2020, proferido no processo nº 62/20.4BCLSB, publicado em www.dgsi.pt e onde, a fls. 45 e ss, se diz o seguinte:
“(…) dir-se-á que, atendendo ao critério da autoria vem provado que “o sítio eletrónico https://www.s....pt integra um separador especificamente dedicado à SAD :..https://www.s....pt/pt pt/slb/sad/informacao. Ou seja, o site oficial do S…integra o site da Recorrente e divulga conteúdos da autoria da mesma.
Em segundo lugar, não consta dos autos, nem tal vem sequer alegado pela Recorrida, que esta tivesse tentado obstar à publicação dos conteúdos em causa ou que tivesse procurado que os mesmos fossem retirados daquele site.
Em terceiro lugar, a questão da imputação subjectiva nos termos em que vem colocada, reconduz-se à temática da responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do RDLPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência. Temática já sobejamente tratada na Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativa e que, nos acórdãos por nós relatados, sempre se acolheu e que aqui também se acolhe: v., por todos (por ser o mais recente), o ac. de 18.06.2020, proc. nº 42/19.2BCLSB.
Escreveu-se nesse acórdão:
Estando em causa a questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa pelo comportamento dos seus sócios e simpatizantes, entendemos que, como é jurisprudência uniforme deste STA, a resposta deve ser afirmativa, pelas razões que constam do Ac. de 21/2/2019 – Proc. n.º 033/18.0BCLSB (cf., no mesmo sentido, entre muitos, os Acs. de 4/4/2019 – Proc. n.º 040/18.3BCLSB, de 2/5/2019 – Proc. n.º 073/18.0BCLSB, de 21/3/2019 – Proc. n.º 075/18.6BCLSB, de 5/9/2019 – Proc. n.º 065/18.9BCLSB, de 12/12/2019 – Proc. n.º 048/19.1BCLSB e de 7/5/2020 – Procs. nºs. 074/19.0BCLSB e 0144/17.0BCLSB), onde se referiu:
(…)
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência (cf. art.º 36.º daquele RC) a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP – adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art.º 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art.º 04.º que «[c]ompete à Liga e as seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desP... e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art.º 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» (cfr. art.º 06.º do mesmo Regulamento).
(…) a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afetos ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desP... e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: www.tribunalconstitucional.pt/tcacordaos e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos artºs. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18/8 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desPorto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) – condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e in formando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desPorto , tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que [n]ão é, pois (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associadas ao desPorto , que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos artºs. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os artºs. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar (cfr. artºs. 212.º e segs., 225.º e sgs., do RD/LPFP-2017) que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não seja imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o mesmo princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.
(…)”
Improcede, pois, também este suposto vício.
*
A mesma sorte auguramos à exegese da questão da alegada violação do artº 112º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (aprovado na Assembleia Geral Extraordinária de 27 de junho de 2011, com as alterações aprovadas nas Assembleias Gerais Extraordinárias de 14 de dezembro de 2011, 21 de maio de 2012, 06 e 28 de junho de 2012, 27 de junho de 2013, 19 e 29 de junho de 2015, 08 de junho de 2016, 15 de junho de 2016 e 29 de maio, 13 de junho de 2017, 29 de dezembro de 2017, 13 de junho de 2018 e 29 de junho de 2018 e de 22 de maio de 2019, ratificado na reunião da Assembleia Geral da FPF de 22 de junho de 2019) e da pretensa medida em que a interpretação feita desse mesmo artigo, pelo TAD, seria atentatória da liberdade de expressão da Recorrente e, como tal, inconstitucional.
O artigo 112°, aqui em causa, sob a epígrafe “Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros” diz o seguinte:
«1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.
2. [...]
3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, directamente ou por interposta pessoa».

Na decisão ora aposta em crise, no que releva, disse-se, designadamente, o seguinte:
“(…) O texto publicado no jornal electrónico da Recorrida, como vimos, não se limitou a apontar erros de apreciação, ou de arbitragem, na medida em que acusou os árbitros de terem atuado com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
(…) a Demandante, ao criticar as decisões dos árbitros nos termos supra referidos, imputando aos árbitros actos ilegais, está-se a atingir os árbitros em termos pessoais, dirigindo-lhes imputações desonrosas na forma como arbitraram as partidas em questão, significativas de que as respectivas atuações não se realizaram de acordo com critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, colocando-se deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação.
Tais imputações "atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desP... , já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa."
Em suma, os escritos publicados ultrapassaram uma mera crítica às decisões da justiça desportiva e não podem deixar de ser interpretadas com o alcance de ter havido uma intenção dos árbitros, mediante erros, beneficiarem outros competidores desportivos (…)”
Ora:
No caso em apreço deparámos com o já habitual conflito entre a liberdade de expressão e os direitos pessoais ao bom nome e à reputação.
A liberdade de expressão e de informação encontra-se consagrada na Constituição da República Portuguesa que prevê, no seu artigo 37°, n.° 1 que "[t]odos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações”.
O exercício deste direito está, no entanto, limitado pela proteção de outros relevantes direitos pessoais, nomeadamente o direito ao bom nome e reputação, previsto também ele na Constituição da República Portuguesa, especificamente no seu artigo 26°, n.° 1 onde se diz que “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.".
Também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (“CEDH”) estatui nesta matéria, em moldes semelhantes, determinando, no seu artigo 10°, n.°1 que “[q]ualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”.
A existência de limites aplicáveis ao exercício deste direito é também aqui reconhecida, estatuindo-se no n.° 2 do citado artigo: “[o] exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.”.

Sobre este conflito já se tem pronunciado o STA. Por exemplo, veja-se o acórdão de 26.02.2019, proferido no proc. nº 66/18.7BCLSB, onde se sumariou o seguinte.

I – Os escritos em questão criticam a “jornada” no que se refere aos jogos neles aludidos, dirigindo expressões injuriosas e difamatórias aos árbitros que neles tiveram intervenção, expressões estas que excedem os limites do que deve ser a liberdade de expressão, conforme previsto no art. 37º, nºs 1 e 2 da CRP, pondo em causa o direito ao bom nome dos árbitros envolvidos.

II - Atingindo tais imputações não só os árbitros envolvidos, como assumindo potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, é o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desP... , já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa (nº 1 do art. 112º, 17º e 19º do RDLPFP).

III – De acordo com o nº 3 do art. 112º do RDLPFP, o clube é responsável pelos tweets publicados na sua conta Twitter oficial, na qual os mesmos foram divulgados, sendo certo que este sítio na Internet é explorado pela Recorrida, directamente ou pela empresa gestora de conteúdos. Isto é, ao publicar os tweets na referida página da Internet, procedeu a Recorrida à sua divulgação, já que a eles podiam ter (e tiveram) acesso um determinado grupo de pessoas, no caso jornalistas a quem o site era destinado”.

Da mesma forma, no acórdão datado de 4.06.2020, proferido no proc. 154/19.2BCLSB, concluiu-se:

I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.

II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desP... (artigo 79.º/2 da CRP)”.

Mais recentemente, no acórdão datado de 2.07.2020, proferido no proc. n.º 139/19.9BCLSB, sumariou-se o seguinte:

I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha.

II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

Aliás, já o acórdão datado de 21.05.2020, proferido no proc. nº 156/19.9BCLSB, tirado em sede de apreciação preliminar no recurso de revista, referia que “[é] de admitir a revista do acórdão do TCA – confirmativo da pronúncia do TAD, que anulara a pena aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF a uma entidade desportiva por causa da emissão de um texto capaz de descredibilizar as competições futebolísticas e de ferir a honra e a consideração do visado – se o TCA recusou a aplicação do ilícito-típico disciplinar com base na ideia de «liberdade de expressão» e assim aparentemente se apartou da jurisprudência que o Supremo já emitiu na matéria.

Neste caso, considerando a factualidade apurada, a legislação acima e a interpretação que da mesma vem sendo feita pelos nossos tribunais superiores, temos que o exercício do direito da Recorrente à crítica e à indignação colidiu com os direitos da Recorrida e dos Conselhos de Disciplina e Arbitragem, visados com as expressões escritas e publicamente divulgadas, ao bom nome e reputação. Os escritos publicados ultrapassaram uma mera crítica às decisões da justiça desportiva e não podem deixar de ser interpretadas com o alcance de ter havido uma intenção dos árbitros e dos Conselhos de Disciplina e Arbitragem, mediante erros, beneficiarem outros competidores desportivos.

É certo que o direito à crítica constitui uma afirmação concreta do valor da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo, consagrado no artigo 37.°, n.° 1, da CRP; mas esse direito não é ilimitado. Esse direito deve respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção legal e constitucional.

Como o acórdão do STA de 4.06.2020 citado, em situação factual em tudo semelhante à presente, afirmou:

Este Tribunal não tem dúvidas de que o texto publicado na edição n.º ….. do jornal eletrónico "……" é lesivo da reputação dos árbitros que arbitraram as partidas da primeira volta da Liga Portugal que nele são objeto de análise, nomeadamente quando nele se lança a suspeição de que os apontados erros de arbitragem prejudiciais à Recorrida foram cometidos com a intenção de beneficiar o seu clube rival.

Ao insinuar que esses erros ocorreram sempre «em momentos decisivos de jogos», ou que «houve quem não visse o que toda a gente viu», mas sobretudo, ao afirmar que os erros apontados não foram alheios ao «clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos», e que os mesmos consubstanciaram uma «dualidade de critérios e proteção absurda a um clube», o texto publicado naquela newsletter não se limitou a enunciar factos objetivos, ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo, atentando diretamente contra o bom nome e reputação dos árbitros envolvidos.

O texto não se limitou, pois, a apontar «erros de apreciação» aos árbitros, na medida em que afirma que os mesmos atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. Na verdade, ao afirmar que os árbitros não arbitraram aquelas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritos, o texto insinua que os mesmos foram corrompidos pelo clube rival, colocando assim deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação.

Este Tribunal já se pronunciou no mesmo sentido que aqui é defendido, no seu Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 066/18.7BCLSB, onde, numa situação análoga à dos autos, se afirmou, além do mais, que tais imputações «atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desP... , já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa”.

E mais adiante:

“(…) O acórdão recorrido, na linha do que decidiu o Tribunal Arbitral do DesPorto , assentou a sua conclusão na liberdade de expressão e de informação garantida pelo artigo 37.º da Constituição, afirmando que «considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação, seja em que domínio for, no caso dos autos, erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se autocensurarem».

O texto publicado no jornal eletrónico da Recorrida, como vimos, não se limitou a apontar erros de apreciação, ou de arbitragem, na medida em que acusou os árbitros de terem atuado com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. E como se afirmou a propósito do abuso de liberdade de imprensa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de dezembro de 2002, proferido na Revista n.º 3553/02, da 7.ª Secção, «o simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral».

Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo n.º 1 do artigo 26º da Constituição.

O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e à reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. artigo 112.º/4 do RDLPFP.

Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desP... , que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do artigo 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido neste autos, sobre «(...) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

No caso vertente, a situação é semelhante à que foi objeto de escrutínio no acórdão supra.
Aqui, tal como ali, o texto publicado não se limitou a enunciar factos objetivos, ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo, atentando diretamente contra o bom nome e reputação das equipas de arbitragem envolvidas, identificando claramente os elementos dessas equipas de arbitragem, conotando-os com conclusões depreciativas dos mesmos, porquanto teriam agido motivados por suposta covardia perante pressões a que são sujeitos.
O texto não se limitou, pois, a apontar «erros de apreciação» aos árbitros, na medida em que afirma que os mesmos atuaram com a intenção deliberada de, por medo, induzido por covardia prante pressões de terceiros, errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. Efetivamente, ao afirmar que os árbitros não arbitraram aquelas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritos, colocando assim deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação, bem como a autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal.
Conforme se entendeu no acórdão do STA, datado de 26 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 066/18.7BCLSB, numa situação análoga à dos autos, tais imputações “atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desPorto , já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa”.
Conclui-se, pois, não merecer censura o acórdão recorrido, nesta parte e, como tal, pelo acima exposto, cumpre negar provimento ao recurso interposto e confirmar a decisão proferida.

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Concluindo (sumário elaborado nos termos e para os efeitos previstos no artº 663º, nº 7 do CPC):
I. Resulta do disposto no artº 7º, nº e 4 do 2 Regulamento Disciplinar da Liga que os clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portugal e no âmbito dessas competições e que essa responsabilidade disciplinar não se extingue no caso de transformação em sociedade desportiva ou da personalização jurídica da equipa que participa nas competições profissionais, transmitindo-se para a entidade que lhe suceder na sequência da operação de transformação societária.
II. O direito à crítica constitui uma afirmação do valor da liberdade de pensamento e expressão, consagrado no artigo 37.°, n.° 1, da CRP; mas esse direito não é ilimitado, devendo respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção legal e constitucional, nomeadamente o direito ao bom nome e reputação, previsto também ele na Constituição da República Portuguesa, especificamente no seu artigo 26°, n.° 1.
III. Ao publicar afirmações no sentido de que certas equipas de arbitragem não arbitraram certas e determinadas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritas, coloca-se, assim, deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação, incorrendo-se na infração disciplinar prevista e punida no artigo 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
IV. Fazer referências explícitas a erros de arbitragem, motivados por suposta covardia perante pressões a que são sujeitos, põe em causa o direito ao bom nome e reputação dos intervenientes, abala a confiança nas instituições desportivas e dirigentes, cria um crescente desrespeito pela arbitragem e potencia comportamentos violentos e antidesportivos.
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V – Decisão:
Assim, face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso interposto e confirmar a decisão proferida.
Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 07 de Outubro de 2021


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Ricardo Ferreira Leite


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Pedro Marchão Marques



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Alda Nunes