Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07393/02
Secção:Contencioso Tributário (1.º Juízo Liquidatário do TCA- Sul)
Data do Acordão:02/03/2004
Relator:Eugénio Martinho Sequeira
Descritores:REFORMA DE ACÓRDÃO
MANIFESTO LAPSO
DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
Sumário:1. A norma do art.º 669.° n.°2 a) do CPC, introduzida na reforma do direito processual civil entrada em vigor em 1.1.1997, veio permitir a reforma da sentença, regime que é aplicável à reforma do acórdão, quando tivesse ocorrido manifesto lapso na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
2. Tal lapso será manifesto, quando for ostensivo, evidente, facilmente apreensível para a generalidade das pessoas do meio a que a questão se coloca;
3. Não ocorre tal lapso manifesto quando o acórdão reformando se pronuncia pela aplicação no caso do regime dos recursos dos despachos interlocutórios (art.º 285.° do CPPT), o qual fundamenta em normas e princípios que entende aplicáveis, regime geral (art.º 282.° mesmo existindo qualquer erro na formação ou na da vontade declarada;
4. Em tal caso inexiste fundamento para a reforma do acórdão, e eventual erro de julgamento que o mesmo contenha, não é tal reforma o meio próprio para o atacar.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.a Secção) do Tribunal Central Administrativo:

A. Construções ..., Lda, veio pelo requerimento de fls 79 e segs, invocando a norma da alínea a) do n.°2 do art.º 669.° do Código de Processo Civil (CPC), requerer a reforma do acórdão deste Tribunal de fls. 71 e segs, que julgou deserto o recurso interposto e não conheceu do seu objecto, por falta de alegações e conclusões apresentadas em tempo, invocando em síntese:

- que a norma do art.º 285.° do CPPT que dispõe quanto ao momento da apresentação da motivação dos recursos de decisões interlocutórias proferidas nos processos de impugnação judicial e de execução fiscal (logo com o requerimento da respectiva interposição), não se aplica aos processos de execução fiscal, em si mesmos, mas apenas aos que constituam incidentes destes, de natureza declaratória, como a oposição à execução fiscal, os embargos de terceiro e a reclamação de créditos;

- que só nestes incidentes de natureza declaratória aqui processados existem as razões determinantes da imediata alegação de tais recursos, em que existe um processado pré-ordenado e funcionalizado em vista da definição do direito que há-de ser feita nessa sentença judicial final, podendo o recurso ficar prejudicado por essa decisão final, havendo oportunidade de repor a legalidade e de obstar a uma eventual anulação da decisão final, seno esta a ratio legis do preceito

- que o acórdão reformando incluindo tal recurso no referido preceito do art.° 285.° do CPPT, caiu num manifesto lapso de interpretação;

- pedindo a final, a reforma do acórdão, conheça do mérito do recurso e lhe dê provimento.

B. Notificada a parte contrária, nada disse.

C. Cabe decidir (art.º 716.° n.°2 do CPC):

Como se sabe, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 666.° n.°1 do CPC), regime que igualmente é aplicável aos acórdãos proferidos na 2.a instância, por força do disposto no art.º 716.° n.°1 do mesmo CPC.

Da regra daquele n.°1 do art.º 666.°, porque se insere em desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder judicial do juiz, excepciona a lei, a rectificação de erros materiais, o suprimento de nulidades, o esclarecimento de dúvidas existentes no acórdão e a sua reforma.

Quanto ao esclarecimento ou à reforma da sentença, dispõe a norma do art.° 669.°, no seu n.°2, especificamente quanto à reforma que pode ter lugar:

a)Tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b)...

Tal meio só será, assim, admissível perante "erros palmares, patentes, evidentes", e com carácter manifesto (3), o que nunca poderia ocorrer no acórdão reformando, em que se analisou o regime dos recursos dos despachos proferidos no processo judicial tributário e no processo de execução fiscal, tendo-se concluído que tal despacho era de qualificar de interlocutório e que o regime do recurso dele interposto era subsumível à norma do art. ° 285.° do CPPT, como se pode ler dos seguintes trechos do mesmo:

Porém, daqui não decorre que o presente recurso jurisdicional se encontre sujeito ao regime geral dos recursos previstos no art.° 282.° (4), em que as alegações, para o recorrente, são apresentadas no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho que o admitir, como no caso aconteceu.

É que existe também um regime especial para os recursos dos despachos interlocutórios do juiz, proferidos no processo judicial tributário e no processo de execução fiscal, similar àquele previsto para os processos urgentes, com aplicação prioritária, cuja norma do art.° 285.° dispõe:

1 - Os despachos do juiz no processo judicial tributário e no processo de execução fiscal podem ser impugnados no prazo de dez dias, mediante requerimento contendo as respectivas alegações e conclusões, o qual subirá nos autos com o recurso interposto da decisão final.

Esta norma tem um conteúdo semelhante à do art.° 172.° do anterior CPT, mas apenas em parte, já que esta não exigia que as alegações fossem desde logo apresentadas com o requerimento de interposição de recurso, nem mesmo nos oito posteriores à notificação do despacho que o admitia, desde que declarasse a intenção de alegar no tribunal "ad quem", que o actual regime dos recursos não contempla.

O despacho recorrido é, manifestamente, um despacho interlocutório, proferido antes de ser atingido o seu objecto normal, já que foi proferido em sede de reclamação do despacho proferido pelo Chefe da Repartição de Finanças em processo de execução fiscal a propósito das propostas de venda de um bem e antes dessa venda, sendo este o momento normal (o da venda), que a lei prevê para apreciar tais reclamações (art.° 278.° n.°1), bem como os recursos de quaisquer outros despachos interlocutórios judiciais, que serão apreciados com o recurso interposto da decisão final (art.° 285.° n.°1).

Os n.°s 2 e 3 do mesmo artigo 285.°, excepcionam deste regime especial, os casos em que a não subida imediata do recurso lhes retire qualquer efeito útil, quando o recurso não respeitar ao objecto do processo ou quando tenham sido indeferidos impedimentos opostos pelas partes (5), não sendo contudo o caso presente subsumível a nenhuma destas hipóteses, ou seja, o recurso devia ter sido interposto por requerimento contendo alegações e conclusões.

A opção do enquadramento feita no acórdão reformando de tal recurso ser de qualificar de despacho interlocutório proferido em processo de execução fiscal a que é aplicável a citada norma do art.° 285.° do CPPT, não resulta assim, manifestamente, e aqui dizemo-lo nós com toda a propriedade, de qualquer lapso, quer da formação da vontade, quer da sua formulação expressa, tal como no mesmo acórdão consta, mas sim de um juízo de adequação entre os factos e a lei, que eventualmente poderá estar errado, mas que não representa qualquer lapso na norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, e muito menos que ele seja manifesto, patente, não sendo por isso a reforma do acórdão, o remédio para o mal que ele, eventualmente, padeça, sabido que tal reforma não pode assentar na mera discordância com o julgado, levando ao indeferimento da pretendida reforma.

Contudo, sempre se tecerão as seguintes considerações:

As razões invocadas pela requerente, para que no processo de execução fiscal em si, os recursos interpostos de despachos aí proferidos, que não devem ser qualificados de despachos interlocutórios, se encontrem sujeitos ao regime-regra dos recursos e não se encontrem contemplados na norma do citado art.º 285.° do CPPT, com as alegações a apresentar no prazo de 15 a contar da data da notificação do despacho de admissão do recurso, será, concerteza, uma solução interessante, mas não vemos nas normas em causa qualquer subsídio para concluirmos que essas razões invocadas estiveram na mente do legislador ao editar tais normas.

Desde logo, a restrição da aplicação da norma do art.º 285.° n.°1 aos processos de índole declaratório que têm a execução fiscal como pressuposto (oposição à execução, embargos de terceiro e reclamação de créditos), mas não a esta própria, não sendo de qualificar de interlocutório tal despacho, porque nesta não existe uma tramitação processual pré-ordenada à prolação de uma decisão jurisdicional, diremos, que também na execução (fiscal) existe uma tramitação pré-ordenada tendo em vista alcançar um fim, que não é uma decisão jurisdicional e nem o poderia ser, porque o direito já se encontrava definido e corporizado num documento (o título executivo), havendo apenas que proceder à reparação efectiva do direito violado (art.º 4.° do CPC), no caso, à cobrança de uma dívida (art.° 148.° e segs. do CPPT).

A norma do art.º 278.° n.°1 do CPPT, elege como momento para serem conhecidas as reclamações dos despachos proferidos elo órgão da execução fiscal que afectem os direitos e interesses legítimos do executado, o da venda dos bens, sendo por isso de qualificar de interlocutório, de intermédio, qualquer despacho surgido antes esta venda e sobre o qual seja interposto recurso, quer por via de reclamação, quer por outra via, o qual apenas só depois desta venda será de apreciar.

Por outro lado, referindo-se o legislador na norma do art.° 285.° do CPPT ao processo de execução fiscal, tout court, não caberá ao intérprete restringir no âmbito deste processo, a apenas os procedimentos de natureza declaratória aqui ocorridos, por força do brocardo latino ubi 1ex non distinguit nec nos distinguere debemus.

Também Jorge Lopes de Sousa, no seu Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado, 2.a Edição revista e actualizada, 2000, VISLIS, em anotação a este artigo 285.°, não estabelece qualquer restrição ao âmbito da aplicação dos despachos proferidos nos processos de execução fiscal, cuja requerimentos de interposição dos recursos devem logo ser motivados (págs. 1181 e segs.).

Também as razões invocadas pela requerente, no seu entender justificativas, para que no processo de impugnação judicial e nos procedimentos declaratórios ocorridos no processo de execução fiscal, as alegações dos recursos dos despachos interlocutórios logo tenham que ser apresentadas com o requerimento de interposição, que na própria execução fiscal se não verificariam, podendo ser apresentadas no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho de admissão do recurso (regime geral), em nosso entender, não se verificam, porque quer as alegações sejam logo apresentadas com o requerimento de interposição do recurso, quer sejam apresentadas no prazo de quinze a contar do despacho de notificação da admissão do recurso, em regra, sempre tal junção das alegações ocorrerá antes da prolação da decisão final, ou do momento final que a lei prevê como o momento da subida do recurso, sempre o seu conteúdo poderá ser tomado em conta, tanto num como em outro dos casos (e em sede de execução fiscal, através do mecanismo da reparação do agravo (art.º 744.° do CPC), também aqui sempre tais alegações poderão ser atendidas).

Em suma, as razões para que nos despachos interlocutórios a lei obriga a que as alegações devam ser juntas com o requerimento de interposição do recurso e não possam ser juntas no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho de admissão do recurso, dentro do regime geral, terão que ser encontradas em outro lado que não aqui. Aliás, basta pensar que no âmbito do CPT, o regime era diferente do actual (art.°172.° deste Código) em que as alegações podiam ser apresentadas, inclusivamente, no tribunal "ad quem".

É assim de indeferir a requerida reforma do acórdão em causa, não porque ao Tribunal lhe falte a humildade democrática, exigível a um órgão de soberania que colhe a sua legitimidade do povo, de o reconhecer, como invoca a requerente, mas porque se entende que a mesma carece de razão.

D. DECISÃO.

Nestes termos, acorda-se, em indeferir a reforma do acórdão.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em três UCs.

Lisboa, 3.2.2004

ass) Eugénio Martinho Sequeira

ass) Francisco António Pedrosa de Areal Rothes

ass) José Carlos Almeida Lucas Martins


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(3) Cfr. no mesmo sentido o acórdão do STA de 30.4.2003, recurso n.° 12/02-30.

(4) Regime geral que só é aplicável aos casos não englobados nos outros regimes especiais, como defende Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado, 2 ª Edição, 2000, VISLIS, pág. 1181 e segs.

(5) Cfr. neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Ob. cit. pág. 1182, nota 6.