Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:233/20.3BECBR-A
Secção:CA
Data do Acordão:03/04/2021
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:LEI N.° 1-A/2020, DE 19.03.;
SUSPENSÃO DOS PRAZOS DE CADUCIDADE E DE PRESCRIÇÃO.
Sumário:Em relação aos processos urgentes, importa não confundir a regra de suspensão dos prazos de caducidade e de prescrição que lhes sejam relativos, prevista - para todo e qualquer processo que corra termos perante os tribunais administrativos - nos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03. -, com a regra que determinava a não suspensão de prazos processuais nesses processos - inscrita no n.º 7 do citado art. 7.º - e que, como decorre da letra da lei, se refere apenas aos prazos processuais de tramitação destes processos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O A., L..., veio interpor recurso jurisdicional do saneador-sentença proferido pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de 14.09.2020, que julgou procedente a exceção, suscitada oficiosamente, de erro na forma do processo não convolável em procedimento de massa, meio processual que julgou adequado, por falta de verificação do pressuposto da tempestividade, e, em consequência, absolveu os RR., Marinha Portuguesa e Ministério da Defesa Nacional da instância.

Nas alegações de recurso que apresentou, concluiu nos seguintes termos – cfr. fls. 297 e ss. – ref. SITAF:

«(…)

1. No que se refere a douta sentença proferida no dia 14 de Setembro de 2020, esta não traz aos autos a devida aplicação da Justiça, senão vejamos:

2. Em 26 de fevereiro foi publicada a lista definitiva dos candidatos classificados, que de acordo com o art. 59° n°1 e n°3 do CPTA, os prazos de impugnação começam a contar a partir da data da sua publicação.

3. O ato cuja impugnação foi demandada, que classificou o Apelante como Inapto para o serviço nas classes de Fuzileiro e Mergulhadores, data de 26 de fevereiro de 2020, aquando da publicação da lista definitiva dos candidatos classificados.

4. Contudo, no despacho em causa refere - que os prazos relativos aos processos urgentes nunca estiveram suspensos, o que, não corresponde à realidade.

5. Na verdade, atendendo à situação excecionalíssima que se vive atualmente, a 19 de março de 2020 foi publicada em Diário da República a Lei 1-A/2020 que previa medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, designadamente no referente aos prazos dos processos urgentes como aliás se consta do texto da lei no seu art. 7o n°5.

6. No referido artigo menciona-se expressamente que o prazo ficou suspenso.

"Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n°8 e 9”

7. Não se tratando como evidenciamos de nenhuma das exceções das alíneas 8 e 9 do mesmo artigo.

8. Ao contrário do que mencionado no despacho, os prazos relativos aos processos urgentes estiveram efetivamente suspensos por força da Lei 1-A/2020 de 19 de março, alterada pela Lei 4-A/2020 de 6 de abril.

9. Do disposto no art. 7°-A da Lei 4-A/2020 que procedeu à primeira alteração à Lei 1°A/2020, consta que os prazos que estiveram suspensos retomaram a sua contagem na data da entrada em vigor da Lei 4-A/2020 de 6 de abril.

10. Esta alteração à Lei 1°A/2020 refere o seguinte:

"Os prazos procedimentais no âmbito do Código dos Contratos Públicos que estiveram suspensos por força dos artigos 7o e 10° da presente lei, na sua redação inicial, retomam a sua contagem na data da entrada em vigor da Lei n°4- A/2020 de 6 de abril”.

11. Assim, o autor teria até 7 de maio de 2020 para dar início à ação - um mês de acordo com o art. 99° n°2 CPTA (que se conta nos termos do art. 279° do CCiv.)

12. Ora, a 26 de abril do presente ano, dentro do prazo exigido por lei, foi requerida uma providência cautelar de suspensão de ato administrativo, que deu início ao respetivo processo.

Portanto, deve-se improceder a exceção de erro na forma de processo por se considerar intempestiva e julgar procedente o presente recurso.(…)»

A Recorrida Marinha Portuguesa contra-alegou, concluindo como se segue – cfr. fls. 306 ss. – ref. SITAF:

«(…)

A. Como prazo de impugnação que é, o prazo fixado no artigo 99.°, n.° 2, do CPTA é um prazo substantivo, de propositura de uma ação, contando-se nos termos do artigo 279.° do Código Civil.

B. Não se trata de um prazo “para a prática de atos processuais e procedimentais'”, porquanto a apresentação de uma petição ou requerimento inicial não é um ato processual, dada a lógica inexistência de um processo previamente à respetiva instauração.

C. Logo, o prazo para essa apresentação não é um prazo processual,

D. O que torna inaplicável o regime de suspensão de “(...) todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal (...)” estabelecido no artigo 7.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.° 4-A/2020, de 6 de abril, invocado pelo Recorrente.

E. E, ainda que o mesmo fosse aplicável - o que não se concede e que por dever de patrocínio e mera hipótese de raciocínio se concebe -, o n.° 7 do invocado artigo 7.° é claro ao dispor que os processos urgentes continuavam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, nos casos em que - como o ato de propositura de uma ação - o ato a praticar não só podia, como devia mesmo, ser praticado por meios eletrónicos.

F. Não tem a mínima aplicação ao caso o disposto no artigo 7.°-A da Lei n.° 1-A2020, de 19 de março, aditado pela Lei n.° 4-A2020, de 6 de abril, por versar sobre contratação pública, matéria totalmente estranha aos presentes autos.

G. Pelo exposto, improcede totalmente a censura dirigida pelo Recorrente à douta decisão recorrida. (…)»


Neste tribunal, o DMMP não se pronunciou.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, mas com prévia divulgação do texto do acórdão pelos Mmos. Juízes Adjuntos, vem o processo submetido à conferência desta Secção de Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

A questão suscitada pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduz-se em apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter dado por verificado o erro na forma do processo e absolvido os RR., ora Recorridos, da instância em virtude de a ação urgente que julgou adequada – procedimento de massa - ter dado entrada decorrido o prazo de um mês previsto no art. 99.º, n.º 2, do CPTA.

II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto constante da sentença recorrida é aqui transcrita ipsis verbis:
«(…)
Em 26/2/2020 foi publicada a lista definitiva dos candidatos classificados e ordenados, confirmando-se a decisão de exclusão do Autor, cfr. fls. 103 a 112 do processo administrativo apenso aos autos.
O A. não recorreu a meios de impugnação administrativa, tendo intentado a presente ação em 28/5/2020 (bolds e negritos nossos).


II.2. De direito

i) Do erro de julgamento em que incorreu a decisão recorrida ao ter dado por verificado erro na forma do processo e absolvido os RR., ora Recorridos, da instância em virtude de a ação ter dado entrada decorrido o prazo de um mês previsto no art. 99.º, n.º 2, do CPTA.

Sobre esta matéria o discurso fundamentador da decisão recorrida foi o seguinte:

«(…) In casu, o A. não utilizou meios de impugnação administrativa, pelo que o prazo de impugnação contenciosa iniciou a contagem na data em que foi publicada a lista de classificação final em 26/2/2020.

Sendo de um mês o prazo de impugnação contenciosa daquele ato, por força do já referido artigo 99°, n° 2 do CPTA, e configurando-se este como um prazo substantivo que se conta nos termos do artigo 279° do Código Civil (CC), o prazo de propositura da ação de contencioso dos procedimentos de massa terminou no dia 27/3/2020 [cf. alínea c) do art.° 279° do CC].

Também não procede o argumento do A. de que os prazos estiveram suspensos por força da Lei 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei 4-A/2020, de 6 de abril, pois os prazos relativos aos processos urgentes nunca estiveram suspensos.

Assim, julga-se procedente a excepção de erro na forma do processo, absolvendo-se da instância os RR.»

Desde já se adianta que o assim decidido não é para manter. Vejamos porquê.

Não é posto em causa no presente recurso que a contagem do prazo para intentar a ação se iniciou na data em que foi publicada a lista de classificação final em apreço, ou seja, em 26.02.2020 (cfr. matéria de facto).

A decisão recorrida concluiu pela subsunção da situação em apreço à previsão do disposto no artigo 99º do CPTA, o que igualmente não vem posto em causa.

E pacífico se mostra, ainda, que o A., ora Recorrente, não utilizou qualquer meio de impugnação administrativa, tendo intentado a presente ação apenas em 28.05.2020 (cfr. matéria de facto).

Invoca o Recorrente em sua defesa que «(…) atendendo à situação excecionalíssima que se vive atualmente, a 19 de março de 2020 foi publicada em Diário da República a Lei 1-A/2020 que previa medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, designadamente no referente aos prazos dos processos urgentes como aliás se consta do texto da lei no seu art. 7.º n°5.

7. No referido artigo menciona-se expressamente que o prazo ficou suspenso “Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n°8 e 9”

8. Não se tratando como evidenciamos de nenhuma das exceções das alíneas 8 e 9 do mesmo artigo.

9. Ao contrário do que mencionado no despacho, os prazos relativos aos processos urgentes administrativos estiveram efetivamente suspensos por força da Lei 1-A/2020 de 19 de março, alterada pela Lei 4-A/2020 de 6 de abril.

10. Do disposto no art. 7°-A da Lei 4-A/2020 que procedeu à primeira alteração à Lei 1°A/2020, consta que os prazos que estiveram suspensos retomaram a sua contagem na data da entrada em vigor da Lei 4-A/2020 de 6 de abril.

11. Esta alteração à Lei 1°A/2020 refere o seguinte: “Os prazos procedimentais no âmbito do Código dos Contratos Públicos que estiveram suspensos por força dos artigos 7.º e 10° da presente lei, na sua redação inicial, retomam a sua contagem na data da entrada em vigor da Lei n°4- A/2020 de 6 de abril".

12. Assim, o autor teria até 7 de maio de 2020 para dar início à ação - um mês de acordo com o art. 99° n°2 CPTA (que se conta nos termos do art. 279° do CCiv.)

13. Ora, a 26 de abril do presente ano, dentro do prazo exigido por lei, foi requerida uma providência cautelar de suspensão de ato administrativo, que deu início ao respetivo processo.(…)»

Porém, e ao contrário do que invoca o Recorrente, o prazo para essa apresentação não é um prazo processual, mas sim substantivo, razão pela qual não se lhe destina a previsão de suspensão de prazos e diligências, ao ter determinado que «(...) Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública», cfr. n.º 1 do do citado art. 7.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19.03.

Assim como se não lhe aplicam as disposições constantes da citada Lei n.° 1-A/2020, referentes aos procedimentos de contratação pública, pois não é essa a realidade subjacente aos presentes autos, mas sim um procedimento de emprego público.

Porém, embora não tinha sido invocado, mas não estando esse tribunal limitado pelo enquadramento jurídico dado às questões suscitadas, nos termos do disposto no art. 5., n.º 3 do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA, importa atentar ainda no disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado art. 7.º da Lei n.º 1-A/2001, ao terem estabelecido que «3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos. 4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.».

Vejamos.

Sobre esta matéria, José Duarte Coimbra (1), evidencia, cristalinamente, o seguinte:

«(…) Sem que o ponto tivesse sido objeto de quaisquer alterações desde a sua versão originária, o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 determinou igualmente que a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da COVID-19 “constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos” (n.º 3), determinação essa que “prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional” (n.º 4).

A referência a “todos os tipos de processos” tinha evidentemente por objeto os “processos” a que se referia o n.º 1 desse mesmo artigo 7.º29. E incluía, assim, os processos ¯ todos os processos ¯ administrativos. Por seu turno, a circunstância de a lei ter em vista os prazos de prescrição ou de caducidade que fossem relativos a esses processos permite revelar que o que dela resultava era fundamentalmente a suspensão dos prazos de prescrição ou de caducidade dos quais depende, em termos de mérito/procedência ou de admissibilidade, a propositura de certas ações em juízo. É certo que, como regra geral, as ações administrativas podem ser propostas a todo o tempo. Sucede que essa regra, enunciada no n.º 1 do artigo 41.º do CPTA, convive com muitas outras que, seja no plano substantivo, seja no plano processual, condicionam a propositura de ações administrativas à observância de certos prazos. Disso mesmo dá aliás conta esse exato preceito do CPTA, ao ressalvar logo de seguida o disposto “na lei substantiva [v.g., o prazo-regra de vinte anos em que prescrevem direitos de fonte obrigacional, ex vi artigo 309.º do Código Civil, ou o prazo de três anos em que prescreve o direito de indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual, ex vi artigos 498.º do Código Civil e 5.º do RRCEEP] e no capítulo seguinte [v.g., os prazos de caducidade previstos no n.º 1 do artigo 58.º, no artigo 69.º, no n.º 2 do artigo 74.º e no artigo 77.º-B do CPTA]”. Isto para além dos prazos ¯ também de caducidade ¯ de que depende a admissibilidade das ações administrativas urgentes (n.º 2 do artigo 98.º, n.º 2 do artigo 99.º e artigo 101.º do CPTA) e da intimação para a prestação de informações (n.º 2 do artigo 105.º do CPTA)30.

Pois bem: desde o dia 9 de março de 2020-31 que todos estes prazos, já iniciados e ainda em curso nessa data, ou que viessem a iniciar-se posteriormente, foram, por força da Lei n.º 1-A/2020, suspensos. Ou seja: a sua contagem foi paralisada (ou não se iniciou sequer) e só se retomaria (ou se iniciaria) a partir do momento em que viesse a ser declarado o terminus da situação excecional de resposta à pandemia.

Como parece claro, ninguém ficou impedido de, mesmo com o respetivo prazo de prescrição ou de caducidade suspenso, propor, na vigência da situação excecional, a respetiva ação ¯ com o que se pode dizer que, nesse caso, “renunciava” à suspensão. O que esta regra de suspensão de prazos de prescrição e de caducidade veio permitir foi então e apenas a possibilidade de «desconsiderar» os dias de vigência da situação excecional e assim diferir para o futuro o termo dos prazos que condicionassem a admissibilidade ou a procedência de ações em juízo. Ou, como o dizia a parte final do n.º 4 do artigo 7.º: esses prazos seriam “alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”. Com o que, na prática, se prosseguia o objetivo de, durante a vigência dessa situação excecional, não «obrigar» ninguém a ter de propor ações perante os tribunais administrativos, mesmo que à custa de um efeito global ¯ e muito provavelmente pernicioso, há que reconhecer ¯ de «arrastamento» de um conjunto mais ou menos vasto de ações que, não dando entrada em juízo durante esse período, só mais tarde acabarão por chegar, e agregadamente, aos tribunais administrativos.

Concretizando o modo como (mais) esta regra de suspensão, que de modo algum se confunde com a da suspensão dos prazos processuais, se repercute sobre as ações administrativas, alguns aspetos merecem ser sublinhados:

(i) Em relação a prazos de caducidade fixados em meses (v.g., o de três meses para a impugnação de atos administrativos por particulares: alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do CPTA) ou anos (v.g., o de um ano para a impugnação de atos administrativos pelo Ministério Público: alínea a) do n.º 1 do artigo 58.º do CPTA) que no dia 9 de março de 2020 já se encontrassem em curso, a aplicação da suspensão prevista nos n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 parece ter de implicar o afastamento da regra de contagem «de mês a mês» ou «de ano a ano» prevista na alínea c) do artigo 279.º do Código Civil e a conversão de tais prazos em dias de calendário (no caso do de 3 meses, em 90 dias)32, pois só assim se torna possível «descontar» os dias de duração da situação excecional e, finda esta, retomar a sua contagem33.

(ii) Em relação aos processos urgentes, importa de sobremaneira não confundir a regra de suspensão dos prazos de caducidade e de prescrição que lhes sejam relativos (prevista ¯ para todo e qualquer processo que corra termos perante os tribunais administrativos ¯ nos n.os 3 e 4 do artigo 7.º), com a regra que determinava a não suspensão de prazos processuais nesses processos (inscrita no n.º 7 do artigo 7.º e que, como decorre da sua litera, se referia apenas aos prazos processuais de tramitação dos processos urgentes ¯ “os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos” ¯, não aos prazos para a propositura/instauração das respetivas ações). Quer dizer: o facto de, ao abrigo desta última regra, a tramitação dos processos administrativos urgentes ¯ já pendentes ou que viessem a dar entrada entretanto ¯ não se encontrar suspensa não obstava a que os prazos de caducidade de que dependesse a sua instauração se encontrassem, efetivamente, e por força do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 7.º, suspensos. Assim, e por exemplo: o prazo ¯ de caducidade ¯ de um mês para a propositura de ações de contencioso dos procedimentos de massa previsto no n.º 2 do artigo 99.º do CPTA encontrava-se, durante a vigência da situação excecional de resposta à COVID-19 e ex vi n.os 3 e 4 do artigo 7.º, suspenso (suspensão essa que abrangeu não apenas os prazos que se tenham iniciado só após o dia 9 de março de 2020, mas também os que, já iniciados antes dessa data, ainda não se tivessem esgotado); mas se, não obstante essa suspensão, tiverem sido efetivamente propostas ações desse tipo junto dos tribunais administrativos durante esse período, elas tramitaram, ex vi n.º 7 do artigo 7.º, sem qualquer suspensão dos respetivos prazos processuais. O mesmo é dizer: em relação aos processos urgentes, o n.º 7 do artigo 7.º excecionava o n.º 1 do artigo 7.º; mas não excecionava os n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020.

(iii) Em particular em relação às ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual, importa também ter em conta que o disposto no n.º 1 do artigo 7.º-A não afetava a conclusão anterior. Quer dizer: o que nesse preceito se estabelecia ¯ de modo redundante em relação ao disposto no n.º 7 do artigo 7.º, diga-se ¯ era apenas a não suspensão dos prazos processuais (que é a regra que constava do n.º 1 do artigo 7.º) às ações de contencioso pré-contratual (como aliás era inequívoco pela litera daquele n.º 1 do artigo 7.º-A: “a suspensão de prazos prevista no n.º 1 do artigo anterior não se aplica ao contencioso pré-contratual”); mas de modo algum se afastava a regra ¯ diferente ¯ de suspensão de prazos de caducidade/prescrição prevista nos n.os 3 e 4 do artigo 7.º. Vale isto por dizer que o prazo ¯ de caducidade ¯ de um mês para a propositura deste tipo de ações previsto no artigo 101.º do CPTA beneficiava, efetivamente, da suspensão decorrente daqueles n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020. Mas claro: esta suspensão de modo algum impedia que os particulares a ela “renunciassem” e, efetivamente, propusessem ações de contencioso pré-contratual durante o período excecional ¯ ações essas que, em sequência e nos termos do n.º 7 do artigo 7.º, deveriam tramitar sem qualquer suspensão de prazos processuais.»

Retomando o caso em apreço, e no pressuposto que decorre das normas e da doutrina supra citadas e transcritas, o início do prazo de um mês para propositura da ação urgente prevista no art. 99.º do CPTA, iniciou-se a 27.02.2020 e suspendeu-se a 09.03.2020 - cfr. art. 7.º, n.s 3 e 4 da citada Lei n.º 1-A/2020 – decorridos que estavam apenas 10 dias -, tendo retomando a sua contagem, apenas em 03.06.2020, por via da revogação deste art. 7.º operado pelo art. 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05.

Porém, decorre da matéria de facto supra que o A., ora Recorrente, intentou a ação em 28.05.2020 (cfr. matéria de facto), ou seja, antes do levantamento da suspensão operada pelo art. 7.º, n.s 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, o que significa que, a ter existido alguma intempestividade, seria esta por antecipação e não por o A., ora Recorrente, ter excedido o prazo que tinha para propor a ação, razão pela qual, e face a todo o exposto, a decisão recorrida não se pode manter.

Em face do que, imperioso se torna conceder provimento ao recurso e concluir que a ação urgente em apreço foi intentada dentro do prazo de um mês previsto para o efeito – cfr. art. 99.º, n.º 2, do CPTA – sendo, por esse motivo tempestiva.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e julgar tempestiva a apresentação da ação sub judice, mais ordenando a baixa dos autos para o processo aí prosseguir seus termos, se a tal nada mais obstar.

Custas pela Recorrida Marinha Portuguesa.

Lisboa, 04.03.2021.

Dora Lucas Neto

*

A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira.

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(1) In A Justiça Administrativa em tempos de emergência e de calamidade, E-publica, vol.7, n.º 1, Abril de 2020, disponível aqui www.e-publica.pt