Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:108/20.6BEFUN
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:ISABEL FERNANDES
Descritores:INTIMAÇÃO;
PROPINAS;
DADOS PESSOAIS;
SIGILO FISCAL;
UNIVERSIDADE.
Sumário:I – A cessação do sigilo fiscal depende da existência de uma norma que atribua ao requerente o acesso à informação protegida ou a possibilidade de determinar a quebra do dever de sigilo e a prestação dessa informação, para efeitos da alínea b) do nº2 do artigo 64º da LGT.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

U..., veio deduzir Intimação para prestação de Informações e passagem de certidões, sob a forma de processo prevista nos artigos 104.° a 108.° do CPTA, aplicáveis por força da al. j) do n.° 1 do art.° 92.° em conjugação com o art.° 146.° do CPPT, contra a VICE-PRESIDÊNCIA DO GOVERNO REGIONAL E DOS ASSUNTOS PARLAMENTARES.

O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, por decisão de 27 de Junho de 2020, julgou i) improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e ii) procedente o pedido de informações formulado pela Requerente U... e, em consequência, intimou, a Entidade Requerida a, no prazo de dez dias, prestar a informação requerida: morada completa e actual de todos os alunos da melhor identificados pelo nome e NIF no requerimento de 10 de Julho de 2019, referido em A) do probatório.

Não concordando com a sentença, a VICE-PRESIDÊNCIA DO GOVERNO REGIONAL E DOS ASSUNTOS PARLAMENTARES veio interpor recurso da mesma, tendo nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto da decisão do Meritíssimo Juiz a quo de deferimento da intimação para prestação da informação morada de alunos da ora Recorrida, por si identificados pelo nome e NIF, para efeitos de proceder à recuperação e regularização de dívidas de propinas desses alunos, conforme alínea a) da matéria dada por assente pelo tribunal a quo,

B) com fundamento no Regime da Administração Financeira do Estado, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, no Decreto-Lei n.° 319 -A/88, de 13 de Setembro, no Estatuto da U..., na Lei n.° 37/2003, de 22 de Agosto, e no princípio da proporcionalidade (n° 2 do artigo 266° da CRP).

C) A 14/04/2020 o pedido de informação foi indeferido, com fundamento, em suma, no facto de, estatuindo o artigo 64° da LGT as duas dimensões que integram o sigilo fiscal, a mais estritamente patrimonial e a mais estritamente pessoal, ser de enquadrar o elemento solicitado (morada) na dimensão pessoal do dever de sigilo fiscal, sendo que a legitimidade de acesso aos elementos solicitados pelo Requerente (que se encontram, de acordo com o n° 1 do artigo 64° da LGT, sujeitos a dever de sigilo fiscal) não foi estabelecida em qualquer norma (cfr. artigo 64° n° 2 alínea b)).

D) A referida decisão administrativa encontrou a sua fundamentação jurídica na Lei Geral Tributária (LGT), nas instruções da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre esta matéria (Instrução n.° 19 - DSJT/2016 _ Instruções relativas ao Dever de Confidencialidade, artigo 64.° da LGT), veiculadas na informação de 09/11/2016 da Direção de Serviços de Justiça Tributária, no Parecer n.° 7/2013 da Procuradoria-Geral da República, publicado na 2.a série do Diário da República a 16/10/2015, e ainda em alguma doutrina relativa ao sigilo fiscal.

E) Com efeito, a douta sentença não pode ser aceite pela ora Recorrente, pois, não obstante o tribunal a quo não ter controvertido o facto de que a morada é um dado pessoal,

F) de ter demonstrado estar ciente de que pela proibição prevista no artigo 64.° n° 1 da Lei Geral Tributária ficam abrangidas não apenas as informações de natureza estritamente pessoal (como a morada), mas ainda as referentes à situação económico-financeira, ao património e aos actos jurídico- negociais (vide fls. 22 da sentença),

G) de ter compreendido o essencial da fundamentação da administração tributária para indeferir o pedido (vide fls. 12 da sentença),

H) e de ter referido legislação e doutrina pertinentes para a decisão (vide fls. 15 da sentença),

I) acaba por fazer tábua rasa da fundamentação de direito por si exposta na sentença, e concluir em sentido diverso da mesma (invocando outra, e com o devido respeito, irrelevante fundamentação de direito).

J) É que o facto de o tribunal a quo considerar que as propinas são tributos e que as universidades públicas são administração tributária (cfr. fls. 23 e 25 da sentença) não implica que possa derrogar normas de natureza imperativa visando a garantia da confidencialidade dos dados dos contribuintes (dos com natureza pessoal e dos relativos à situação tributária).

K) Passamos então a procurar sumariar e complementar o projeto de decisão que já aqui se deu por integralmente reproduzido:

L) Nos termos do n°. 1 do artigo 64°. da Lei Geral Tributária (LGT), os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre:

a) os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes;

b) e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.

M) Sendo que, tal dever de sigilo apenas cessa nas situações tipificadas no n°. 2 do mesmo artigo, de que se destaca na alínea b) a cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes.

N) De referir, no entanto, que a derrogação do sigilo fiscal com fundamento nesta alínea, pressupõe a existência de uma norma específica que atribua à entidade pública que solicita os elementos, poderes de acesso à informação protegida. Com efeito, esta não é uma norma de aplicação direta, mas de remissão para os preceitos legais que, no caso afastem o dever de sigilo.

O) Neste contexto, as questões que importam aqui esclarecer, serão as de saber:

P) se a morada de um contribuinte pessoa singular é (ou não), um dado abrangido pelo dever de sigilo, nos termos do n°. 1 do artigo 64°. da LGT,

Q) em caso afirmativo, se este dever de sigilo poderá (ou não) cessar, no âmbito da cooperação legal da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com outras entidades públicas, designadamente com a “U...”, ora Recorrida, nos termos da alínea b) do n°. 2 do artigo 64°. da LGT.

R) Vejamos então em primeiro lugar, se a morada de um contribuinte pessoa singular é (ou não), um dado abrangido pelo dever de sigilo, nos termos do n°. 1 do artigo 64°. da LGT.

S) Do considerando 4) e do artigo 4° ponto do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), bem como da alínea a) do artigo 3°. da Lei da Proteção de Dados Pessoais - LPDP (Lei n°. 67/98, de 26 de outubro) resulta que o domicílio fiscal ("qualquer informação”) relativo a um contribuinte pessoa singular que seja “identificado ou identificável" (por exemplo: através do nome; do NIF; do cartão de cidadão, etc.), constitui um dado pessoal abrangido pelo dever de sigilo profissional.

T) Assim sendo, isto é, por ser uma informação relativa a uma pessoa singular que, no caso em concreto, seria, desde logo, identificada através do respetivo nome, a morada de cada um dos estudantes (contribuintes pessoas singulares) cujas propinas estão em dívida à ora Recorrida, é um dado pessoal de cada um desses mesmos contribuintes.

U) Acresce que, de acordo com as instruções da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre esta matéria (Instrução n.° 19 - DSJT/2016 _ Instruções relativas ao Dever de Confidencialidade, artigo 64.° da LGT), veiculadas na informação de 09/11/2016 da Direção de Serviços de Justiça Tributária, a fls.6 a 8, “Estão abrangidos pelo dever de sigilo, nos termos do n.° 1 do artigo 9.°. do Decreto-Lei n.°. 14/2013, de 28 de janeiro, conjugado com o n.°. 1 do artigo 36° e artigo 41.° do mesmo diploma legal (estes últimos, inseridos no Título III, Capítulo II que se refere à proteção de dados pessoais), os seguintes elementos identificativos relativos a determinado contribuinte pessoa singular (titular do NIF): a) Nome completo; b) domicilio fiscal: c) Estatuto fiscal, de acordo com as regras de conexão de residência previstas no Código do IRS; d) Naturalidade; c) Nacionalidade; f) Data de nascimento; g) Sexo; h) Número de documento de identificação civil e respetiva designação; í) Número de Identificação Bancária (NIB) au Número Internacional de Conta Bancária (IBAN); j) Grau de deficiência; k) Contatos telefónicos: i) Correio eletrónico. Assim sendo, isto é, por constituírem dados pessoais relativos a determinada contribuinte pessoa singular, que estão abrangidos pelo dever do sigilo e que, em concreto, integram a base de dados do registo de contribuintes da AT, a sua transmissão a terceiros só poderá ocorrer nas condições previstas no n.° 2 do artigo 64.°. da LGT - cfr. artigo 37°. da Decreto- Lei n.° 14/2013 de 28 de janeiro. (...) Nos termos do n.° 1 do artigo 22.° da Decreto-Lei n.°. 14/2013, de 20 de janeiro, considera-se domicílio fiscal o estatuído no artigo 19.° da LGT. 5.1. O domicílio fiscal de determinado contribuinte pessoa singular, constitui um elemento identificativo/dado pessoal desse contribuinte (titular do NIF), que está abrangido pelo dever de sigilo nos termos da alínea b) do n.°. 1 do artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 14/2013, de 28 de janeiro, conjugado: com o n.° 1 do artigo 36. ° e artigo 41.° do mesmo diploma legal (...). Assim sendo, isto é, por constituir um dado pessoal relativo a determinado contribuinte pessoa singular (titular do NIF), que está abrangido pelo dever de sigilo e que, em concreto, integra a base de dados do registo de contribuintes da AT, a sua transmissão só poderá ocorrer nas condições previstas nas alíneas a) a c) do n.° 2 do artigo 64. ° da LGT (...) Em conformidade, aliás, com o que também decorre do disposto na alínea a) do artigo 3.° do Decreto-Lein.° 67/98, de 26 de outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais - LPDP) que, para efeitos desta lei, define 'Dados Pessoais" como sendo: “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respetivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (titular dos dados)". Conjugado com o n.° 1 do artigo 17.° da mesma LPDP nos termos do qual "os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções.").".

V) Esclarecido fica então que o elemento morada não é suscetível de revelar algo acerca da situação patrimonial dos contribuintes.

W) Todavia, é considerado elemento de natureza pessoal, e, por esse esse motivo, está abrangido pelo dever de sigilo, nos termos do n°. 1 do artigo 64°. da LGT.

X) Resta apenas averiguar se, ainda assim, este dever de sigilo, poderá (ou não) cessar no âmbito da cooperação legal da Autoridade Tributária e Aduaneira com outras entidades públicas, designadamente com a ora Recorrida, nos termos da alínea b) do n°. 2 do artigo 64°. da LGT.

Y) Conforme já referimos, a cessação do dever de sigilo, nos termos da alínea b) do n°. 2 do artigo 64°. da LGT, depende da existência de uma norma específica, que atribua à entidade pública que solicita os elementos, poderes de acesso à informação protegida.

Z) Ora, no presente caso, para fundamentar o acesso à informação protegida, não foi invocada nem pela ora Recorrida, nem pelo tribunal a quo, qualquer disposição legal, com a referida característica de especificamente prever a derrogação do dever de sigilo e o acesso à informação protegida.

AA) De facto, para Abílio Morgado in “O Sigilo Fiscal”, Ciência e Técnica Fiscal, 2004, n° 414, 7-62, página 38, esta norma do artigo 64° n° 2 da LGT “...não é de aplicação directa, não estabelece exnovo qualquer dever de informação; é sim uma norma remissiva para outras que...afastem...o sigilo fiscal.”.

BB) Nesse sentido poderá consultar-se o Parecer n°. 20/94, emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), cujas conclusões n°s 3 e 4 aqui se dão por inteiramente reproduzidas.

CC) E, mais recentemente, o Parecer n.° 7/2013 da Procuradoria-Geral da República, publicado na 2.a série do Diário da República, n°. 203, a 16/10/2015, pág. 29828 que, na parte que aqui releva, passamos a transcrever: “9.1 — A primeira das situações em que se prevê a possibilidade de quebra do segredo fiscal diz respeito à cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes. Trata -se, pois, de uma norma autorizadora em branco, que pressupõe, para a respetiva aplicação, a existência de outras normas legais que especificamente prevejam a obrigação, por parte da Administração Tributária, de fornecimento, no quadro da cooperação entre entidades públicas, de informações abrangidas pelo segredo fiscal. Em face desse preceito, e na falta de expressa previsão legal, as estruturas orgânicas da AT não poderão facultar dados de natureza sigilosa a quaisquer organismos públicos57, não havendo, neste caso, que distinguir, pelas razões que acima se aduziram, entre organismos internos ou exteriores à mesma Autoridade. 9.1.1 - É o que sucede, designadamente, com o Decreto-Lei n°. 92/2004, de 20 de abril, o qual, no uso de autorização legislativa concedida pela Lei n°. 107-B/2003, de 31 de dezembro, estabeleceu a forma, extensão e limites da interconexão de dados entre os serviços da administração fiscal e as instituições da segurança social. (...)” (sublinhado nosso)

DD) Sendo ainda de salientar, que o artigo 66°. do novo Código de Procedimento Administrativo (novo CPA), apenas prevê um dever geral de cooperação ou de auxílio, entre entidades públicas, e não pode fundamentar a cessação do dever de sigilo, e a prestação da informação protegida.

EE) Não se encontrando, assim, reunidos os pressupostos para a cessação do dever de sigilo e prestação da informação protegida no âmbito da cooperação legal da Autoridade Tributária e Aduaneira com outras entidades púbicas, nos termos da alínea b) do n°. 2 do artigo 64°. da LGT.

FF) Salvo melhor opinião, deveria ter sido este o itinerário cognoscitivo e valorativo do tribunal a quo.

GG) Posto isto, ressalvado outro entendimento, labora em equívoco a douta decisão recorrida (vide fls. 25 a 27 da sentença) ao dar de barato que os diplomas e normativos por si invocados (Regime da Administração Financeira do Estado, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, o Decreto- Lei n.° 319 -A/88, de 13 de Setembro, o Estatuto da U..., a Lei n.° 37/2003, de 22 de Agosto, ou o princípio da proporcionalidade (n° 2 do artigo 266° da CRP)) fundamentam o fornecimento de informação deste calibre,

HH) diplomas e normativos esses, salvo o devido respeito por outros entendimentos, sem qualquer relevância para os efeitos aqui em apreço,

II) ainda mais quando em nenhum desses diplomas ou normativos se encontra norma que atribua à U..., ora Recorrida, o acesso à informação protegida ou a possibilidade de determinar a quebra do dever de sigilo e a prestação dessa informação, conforme exigido pelo artigo 64° n° 2 da LGT.

JJ) Verifica-se pois que o tribunal a quo, à revelia do disposto na alínea b) do n°. 2 do artigo 64°. da LGT, e sem indicar norma específica que atribua à entidade pública que solicita os elementos poderes de acesso à informação protegida, considerou cessado o dever de sigilo.

KK) Em suma, salvo o devido respeito, a decisão recorrida parece olvidar quer a natureza (dado pessoal) da informação solicitada em questão (morada), quer a exigência legal de norma específica que atribua à entidade pública que solicita os elementos poderes de acesso à informação protegida,

LL) e ao assim decidir o tribunal a quo incorreu em erros de julgamento sobre a matéria de direito, quer ao determinar como aplicáveis os diplomas e normativos acima referidos, quer ao violar o disposto no artigo 64° n° 1 e 2 da LGT.

MM) Por último, e no que respeita ao argumento aduzido pelo tribunal a quo (a fls. 26 da sentença) no sentido de que “... estando a Requerente e os seus funcionários também eles sujeitos ao sigilo fiscal, por força do n.° 3 do art.° 64.° da LGT, como vimos, não faria sentido que a Administração tributária não possa facultar aquela informação...” dir-se-á apenas, que se esse argumento procedesse, e, tal como entendido pelo tribunal a quo, os elementos sujeitos a sigilo fiscal pudessem ser livremente divulgados, atendendo a que quem os obtivesse sempre estaria igualmente sujeito ao respetivo dever de sigilo, o dever de sigilo desapareceria da ordem jurídica.

Nestes termos, e nos mais de direito cujo douto suprimento se invoca, deve ser julgado procedente o presente recurso e a decisão recorrida ser revogada.»


*

A recorrida, U..., nas suas contra-alegações, tendo pugnado pela manutenção do julgado.

*

O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificado para o efeito, ofereceu aos autos o seu parecer no sentido da improcedência do recurso.
*

Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta 1ªSub-Secção do Contencioso Tributário para decisão.



*

II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«A) Em 10 de Julho de 2019, a Requerente enviou um ofício dirigido à Diretora Regional da AT RAM com o assunto: "Solicitação de Informação - pedido de colaboração" no qual requereu:

"A U..., vem pela presente, solicitar a V.Exa, a vossa colaboração na obtenção por parte da Administração Tributária (AT), no seguinte processo:

A U... iniciou um processo de recuperação e regularização de dívidas de propinas de alunos.

Neste seguimento, a U... notificou os alunos para proceder voluntariamente ao pagamento das dívidas no prazo de 30 dias, nos termos do n.° 1 do artigo 42.° do decreto-Lei 155/92 de 28 de julho.

No entanto, alguns dos ofícios enviados aos alunos foram devolvidos por motivos diversos tais como: "morada incompleta", "mudou-se", "desconhecido".

Face ao acima exposto, solicita-se a V. Exa os bons ofícios no sentido de nos serem facultadas as moradas completas e atuais dos seguintes contribuintes, de modo a possibilitar a U... continuar com o processo de recuperação de dívidas, conforme sua obrigação legal:


(identificação dos alunos e o seu NIF)".

[cfr. doc. a fls. 20 do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];



B) Em 8 de Agosto de 2019, no âmbito do pedido de informações referido na alínea antecedente, foi proferido PROJETO DE DECISÃO de Indeferimento pela Diretora Regional da AT RAM, em concordância com a Informação n.° 26-ACG, com o teor que se reproduz:

"PROJETO DE DECISÃO


I - DO PEDIDO

Veio, a 10/07/2019, a "U..." (doravante somente U…) solicitar a esta Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (adiante AT-RAM) o fornecimento da informação morada de alguns dos seus alunos, pelo requerente identificados pelo nome e NIF, para efeitos de proceder à recuperação e regularização de dívidas de propinas desses alunos.

Pretende-se então o fornecimento de elementos relativos a pessoas singulares.

II - DA APRECIAÇÃO

Estatui o artigo 64.° da Lei Geral Tributária (LGT), que o princípio da confidencialidade e do sigilo fiscal, em respeito pelo princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada, obriga os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária a guardar sigilo sobre:

a) os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes;

b) e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.

A confidencialidade fiscal e o segredo profissional fiscal plasmados no referido artigo 64° da LGT, privilegiam fundamentalmente a tutela da intimidade da vida privada, valor com assento constitucional nos artigos 26.° e 35.° n° 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que prescrevem que a todos os cidadãos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, e nesse sentido, proíbem o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo casos excecionais taxativamente previstos na lei.

Por esta proibição ficam abrangidas não apenas as informações de natureza estritamente pessoal, mas ainda as referentes à situação económico-financeira, ao património e aos actos jurídico-negociais. Deu-se por conseguinte, como assente a inclusão, na esfera da intimidade da vida privada, dos dados informativos concernentes à situação tributária dos contribuintes.

Sobre o que deve entender-se por dados relativos à situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, deverá atender-se ao parecer n° 20/94 de 9/2/95 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, publicado no Volume VII da Coleção dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, que estabelece que "A expressão «dados relativos à situação tributária dos contribuintes, constante da alínea d) do artigo 17° do Código de Processo Tributário, abrange, na sua previsão, quaisquer informações, quaisquer elementos informatizados ou não que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares, ou pessoas colectivas, comerciantes e não comerciantes. A "confidencialidade" protegida na disposição referida na conclusão anterior não abrange os dados que tenham natureza pública, por serem livremente cognoscíveis por recurso a outras vias jurídico-institucionais, como sejam, v. G., os registos predial, comercial e civil.". (sublinhado nosso)

Neste sentido, veja-se o que também escrevem Carlos Pamplona Corte-Real, Jorge Bacelar Gouveia, e Joaquim Pedro Cardoso da Costa in “Breves Reflexões em Matéria de Confidencialidade Fiscal'', Ciência e Técnica Fiscal, 368, Outubro - Dezembro de 1992, (citação também feita no parecer da PGR acima mencionado): "...não é tanto um dado fiscal isolado que preocupará o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas os dados fiscais que digam algo de forma mais ampla acerca da situação patrimonial dos contribuintes". (sublinhado nosso)

Noutro ponto do parecer supra identificado esclarece-se que "São dados que exprimem a capacidade contributiva: os bens, as actividades, as receitas, os rendimentos, as despesas, os encargos, em suma, tudo o que reflicta ou se prenda com a matéria colectável em causa em cada processo, tudo o que interesse à situação tributária do contribuinte.", (sublinhado nosso)

Neste sentido, veja-se o que também escrevem Carlos Pamplona Corte-Real, Jorge Bacelar Gouveia, e Joaquim Pedro Cardoso da Costa in “Breves Reflexões em Matéria de Confidencialidade Fiscal", Ciência e Técnica Fiscal, 368, Outubro - Dezembro de 1992, (citação também feita no parecer da PGR acima mencionado):

"...a ideia de situação tributária: reflecte um grau relativamente significativo da repercussão dos dados fiscais eventualmente solicitados sobre a visualização e denúncia, parcelar que seja, da situação patrimonial do cidadão fiscalmente relevante, como expressão da sua confidencialidade contributiva. Quer isto dizer que não é tanto um dado fiscal isolado que preocupará o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas os dados fiscais que digam algo de forma mais ampla acerca da situação patrimonial dos contribuintes.

Daí decorre, desde logo, que os dados fiscais confidenciais não excluem o seu carácter económico, como se poderia antever de uma eventual conexão que se admitiu de tais dados com uma perspectiva, personalizada ou intimista do princípio da confidencialidade fiscal. Portanto, deve assentar-se que se tem em vista dados de natureza pessoal, sim, mas cujo teor possa de algum modo retratar a capacidade contributiva dos cidadãos."

Posto isto, não nos parece que o elemento solicitado (morada) seja suscetível de revelar algo acerca da situação patrimonial dos contribuintes. Todavia, é considerado elemento de natureza pessoal.

É que há que ter em conta as instruções da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre esta matéria (Instrução n.° 19 - DSJT/2016 _ Instruções relativas ao Dever de Confidencialidade, artigo 64.° da LGT), veiculadas na informação de 09/11/2016 da Direção de Serviços de Justiça Tributária, a fls.6 a 8, segundo as quais:

"4. ELEMENTOS IDENTIFICATIVOS

Estão abrangidos pelo dever de sigilo, nos termos do n.° 1 do artigo 9.°. do Decreto-Lei n.°. 14/2013, de 28 de janeiro, conjugado com o n.°. 1 do artigo 36° e artigo 41.° do mesmo diploma legal (estes últimos, inseridos no Título III, Capítulo II que se refere à proteção de dados pessoais), os seguintes elementos identificativos relativos a determinado contribuinte pessoa singular (titular do NIF):

a) Nome completo;

b) domicilio fiscal;

c) Estatuto fiscal, de acordo com as regras de conexão de residência previstas no Código do I RS;

d) Naturalidade;

c) Nacionalidade;

f) Data de nascimento;

g) Sexo;

h) Número de documento de identificação civil e respetiva designação;

i) Número de Identificação Bancária (NIB) au Número Internacional de Conta Bancária (IBAN);

j) Grau de deficiência;

k) Contatos telefónicos;

i) Correio eletrónico.

Assim sendo, isto é, por constituírem dados pessoais relativos a determinada contribuinte pessoa singular, que estão abrangidos pelo dever do sigilo e que, em concreto, integram a base de dados do registo de contribuintes da AT, a sua transmissão a terceiros só poderá ocorrer nas condições previstas no n.° 2 do artigo 64.°. da LGT - cfr. artigo 37°. da Decreto-Lei n.° 14/2013 de 28 de janeiro.

5. DOMICÍLIO FISCAL

Nos termos do n.° 1 do artigo 22.° da Decreto-Lei n.°. 14/2013, de 20 de janeiro, considera-se domicílio fiscal o estatuído no artigo 19.° da LGT.

5.1. O domicílio fiscal de determinado contribuinte pessoa singular, constitui um elemento identificativo/dado pessoal desse contribuinte (titular do NIF), que está abrangido pelo dever de sigilo nos termos da alínea b) do n.°. 1 do artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 14/2013, de 28 de janeiro, conjugado: com o n.° 1 do artigo 36.° e artigo 41.° do mesmo diploma legal (...).

Assim sendo, isto é, por constituir um dado pessoal relativo a determinado contribuinte pessoa singular (titular do NIF), que está abrangido pelo dever de sigilo e que, em concreto, integra a base de dados do registo de contribuintes da AT, a sua transmissão só poderá ocorrer nas condições previstas nas alíneas a) a c) do n.° 2 do artigo 64.° da LGT (...)

Em conformidade, aliás, com o que também decorre do disposto na alínea a) do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 67/98, de 26 de outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais - LPDP) que, para efeitos desta lei, define 'Dados Pessoais" como sendo: "qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respetivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (titular dos dados)".

Conjugado com o n.° 1 do artigo 17.° da mesma LPDP nos termos do qual "os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções."

Normativos de cuja aplicação, também resulta que o domicílio fiscal ("qualquer informação”) relativo a um contribuinte pessoa singular que seja “identificado ou identificável" (por exemplo: através do nome; do NIF; do cartão de cidadão, etc.), constitui um dado pessoal abrangido pelo dever de sigilo profissional.

5.2. Já o domicílio fiscal de uma pessoa coletiva, por ser um dado tornada público por via do registo comercial, não está abrangido pelo dever de sigilo e quando solicitado poderá ser facultado pelos serviços - nesse sentido o Parecer n.° 356/2012, da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

Verifica-se assim que, por estar abrangido pelo dever de sigilo, e em cumprimento do artigo 64° da LGT, não poderá ser fornecido o elemento morada pela Requerente peticionado.

No entanto, o n° 2 do supracitado artigo 64°. da LGT, prevê a cessação do dever de sigilo em determinadas situações: “2 - O dever de sigilo cessa em caso de: a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária; b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes: (...)

Sendo que a cessação dependerá sempre da existência de uma norma que atribua ao requerente o acesso à informação protegida ou a possibilidade de determinar a quebra do dever de sigilo e a prestação dessa informação.

De facto, para Abílio Morgado in “O Sigilo Fiscal", Ciência e Técnica Fiscal, 2004, n° 414, 7-62, página 38, esta norma do artigo 64° n° 2 da LGT "...não é de aplicação directa, não estabelece ex novo qualquer dever de informação; é sim uma norma remissiva para outras que...afastem...o sigilo fiscal".

Neste sentido também se pronunciou o Parecer n.° 7/2013 da Procuradoria-Geral da República, publicado na 24 série do Diário da República a 16/10/2015, pág. 29828: "9.1 — A primeira das situações em que se prevê a possibilidade de quebra do segredo fiscal diz respeito à cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes. Trata-se, pois, de uma norma autorizadora em branco, que pressupõe, para a respetiva aplicação, a existência de outras normas legais que especificamente prevejam a obrigação, por parte da Administração Tributária, de fornecimento, no quadro da cooperação entre entidades públicas, de informações abrangidas pelo segredo fiscal. Em face desse preceito, e na falta de expressa previsão legal, as estruturas orgânicas da AT não poderão facultar dados de natureza sigilosa a quaisquer organismos públicos, não havendo, neste caso, que distinguir, pelas razões que acima se aduziram, entre organismos internos ou exteriores à mesma Autoridade." (sublinhado nosso)

Acontece que nem o requerente invoca qualquer fundamento legal para a sua pretensão, nem nos foi possível encontrar quaisquer normas que atribuam ao requerente acesso a informação protegida ou que determinem a quebra do dever de sigilo e a prestação dessa informação.

Nestes termos, os elementos solicitados, por serem elementos de natureza pessoal e nessa medida estarem abrangidos pelo dever de sigilo, nos termos do artigo 64° da LGT, não poderão ser facultados.

III-DA CONCLUSÃO

Por todo o exposto, e atendendo a que a legitimidade de acesso aos elementos solicitados pelo Requerente (que se encontram, de acordo com o n° 1 do artigo 64° da LGT, sujeitos a dever de sigilo fiscal) não foi estabelecida em qualquer norma, pelo que o presente pedido é indeferido." [cfr. doc. a fls. 10 a 15 do PA];

C) A Requerente, apresentou audição prévia, na sequência da notificação do projeto de Decisão, no qual pugnou por uma decisão que determine que seja facultada à U... as moradas atuais e completas dos alunos indicados no requerimento de 10.07.2019, nos termos que se reproduzem, por extrato:

"(...) 3. - A U..., pessoa colectiva de direito público de natureza institucional, é conferida autonomia financeira e patrimonial. - cfr. art. 76° da Constituição e arts 11°, 108° a 118° do RJIES;

4. - Do acervo de receitas privativas da U... contam-se as propinas e outras taxas de frequência de ciclos de estudos (cfr. art. 115°/1 — al. b) do RJIES e arts. 15 e 16° da Lei n° 37/2003, de 22 de Agosto), sendo que estes tributos tem a natureza jurídica própria de taxa. - cfr. art. 4°/2 da LGT;

5. - A Universidade é conferida, no âmbito da sua autonomia financeira, a atribuição e aos seus órgãos a competência legal de proceder à liquidação e cobrança das suas receitas próprias, entre as quais as propinas dos seus alunos. - cfr. art. 111°/2 — al. c) do RJIES;

6. - As ditas propinas são, pois, tributos administrados pela Universidade, por força das suas atribuições e competências, que lhe são conferidas pelo RJIES e pela LBFES.

7. - Ora, como decorre do requerimento apresentado, é no contexto do exercício destas atribuições e destas competências tendentes à liquidação e cobrança das propinas aos seus alunos que a Universidade formulou o pedido à AT RAM no sentido de lhe ser facultada as moradas completas e atuais dos alunos aí elencados;

8. - Donde, a atuação da entidade pública U... ao solicitar tal informação à AT RAM circunscreve-se à medida dos seus poderes tendentes à liquidação e cobrança das taxas decorrentes de propinas devidas pelos seus alunos;

10. - Ora, o invocado dever de sigilo que é invocado no projeto de decisão "cessa" em face de situação de "cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes", nos termos do disposto no art. 64.°/2 al. b) da LGT.

11. - O que é precisamente o que ocorre entre a U... e a AT RAM em face do pedido formulado e aos concretos e específicos fins que o mesmo visa e que foram comunicados.

12. - Deste modo, afigura-se à requerente que não é aplicável à situação o dever de sigilo, pois que o legislador, de forma expressa, determina a sua cessação na situação como a presente, pelo que o invocado no projeto de decisão não tem correspondência com a realidade;

13. - Por outro lado, a Legitimidade da U... decorre, com se afigura patente, das atribuições e competências legais que lhe são cometidas cm sede de liquidação e cobrança das suas receitas próprias, maxime das taxas de propinas (cfr. art. 111°/ 2 - al. c) do RJIES e 15 e 16° da Lei n° 37/2003, de 22 de Agosto; (...)" [cfr. doc. a fls. 6 a 8 do PA];

D) Em 14 de Abril de 2020, foi prolatada DECISÃO pela Diretora Regional da AT RAM, "Não autorizando nos termos propostos na informação e parecer”, em concordância com a informação n.° 10-ACG de 26 de Março de 2020, na qual se concluiu o seguinte: "não se encontra fundamento para alterar o projeto de decisão, pelo que somos de parecer que se deverá manter o projeto de decisão constante da informação n° 04 (ACG) de 06-02-2019 (...)":

"(...) Vejamos, o requerente fez referência à atribuição que lhe foi conferida de proceder à cobrança das suas receitas próprias, atribuição essa que não é de modo algum controvertida pela AT-RAM, mas não fez qualquer referência a uma eventual atribuição de acesso a elementos sujeitos a sigilo fiscal, essa sim uma atribuição relevante no caso em apreço.

Além do mais, tendo o projeto de decisão referido que o n° 2 do artigo 64° da LGT, prevê a cessação do dever de sigilo em caso de cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes, sendo que a cessação dependerá sempre da existência de uma norma que atribua ao requerente o acesso à informação protegida ou a possibilidade de determinar a quebra do dever de sigilo e a prestação dessa informação, poderia o requerente em sede direito de audição ter vindo apresentar tal norma, e não o fez, antes limitou-se a considerar laconicamente no ponto 11 do seu direito de audição que "...é precisamente o que ocorre entre a U... e a AT-RAM...", sem contudo, reitere-se, apresentar qualquer norma que fundamente tal "ocorrência". (...)" [cfr. doc. a fls. 4 e 5 do PA];

E) Em 20 de Maio de 2020, a Requerente apresentou a presente Intimação para a prestação de informações. [cfr. doc. a fls. 1 dos autos];


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Não ficaram por provar outros factos com relevo para a decisão.

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Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do exame dos documentos junto aos autos pelas partes, no qual se inclui o Processo Administrativo Instrutor, cujo teor se mostra não impugnado, conforme indicado em cada uma das alíneas do probatório.»



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- De Direito

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Lidas as conclusões das alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, resulta que vem invocado erro de julgamento sobre a matéria de direito, por violação do preceituado no nº2 do artigo 64º da LGT.

Está em causa nos presentes autos um pedido de intimação deduzido pela ora Recorrida, no qual solicitava que fosse intimada a ora Recorrente a prestar as informações que aquela requerera, pedido que foi aceite pelo Tribunal a quo.

O pedido de informações formulado pela U... traduzia-se na identificação da morada completa e actual de todos os alunos da melhor identificados pelo nome e NIF, pedido esse que foi indeferido pela Recorrente.

A sentença recorrida entendeu que, contrariamente ao decidido, deveria ser satisfeito o pedido de informações e, em consequência, intimou, a Entidade Requerida a, no prazo de dez dias, prestar a informação requerida.

Assim, a questão central é a de saber se a morada dos contribuintes está protegida pelo sigilo fiscal e em que circunstâncias pode ser revelada pela AT e, nessa medida, saber se se verifica o invocado erro de julgamento na interpretação do nº2 do artigo 64º da LGT acolhida pela sentença recorrida.

A sentença recorrida concluiu o seguinte:

“(…)Concluímos, assim, ante o exposto, que as propinas resultantes da taxa de frequência dos alunos, constituem um meio de financiamento das Instituições de Ensino Superior, incumbindo aos órgãos daquelas instituições a liquidação e cobrança das mesmas, de acordo com as diretrizes previstas no Regime da Administração Financeira do Estado.

Ora, se U... não conseguir identificar o domicílio fiscal dos alunos não poderá concluir o processo de recuperação e regularização de dívidas de propinas e consequentemente prosseguir com o fim que lhe foi cometido por lei.

Pelo que e, estando a Requerente e os seus funcionários também eles sujeitos ao sigilo fiscal, por força do n.° 3 do art.° 64.° da LGT, como vimos, não faria sentido que a Administração tributária não possa facultar aquela informação - não reveladora da capacidade contributiva dos contribuintes (alunos), como é, aliás, reconhecido pela AT-RAM, na informação reproduzida em B).

Note-se que a cobrança coerciva daqueles tributos - propinas, é efetuada pelos serviços de execução - órgãos de execução fiscal da AT-RAM, por via do processo e procedimento de execução fiscal, o que no caso concreto, ficando a U... impossibilitada de prosseguir à recuperação das propinas, na sequência da não notificação dos alunos, o ónus de cobrança coerciva recairá sobre a AT RAM. Uma vez que, compete ao Serviço de Finanças do domicílio do devedor que estiver indicado nas certidões de dívida, emitidas por falta de pagamento voluntário de propinas, instaurar e tramitar o processo executivo nos termos previstos no art.° 148.° e ss. do CPPT, com base nos títulos executivos emitidos pelas instituições de ensino superior público.

Assim, tendo presente o princípio da proporcionalidade, orientador de toda a atuação da administração (n.° 2 do art.° 266.° da CRP) na resolução de questões em que se restringem direitos, ponderados os limites da adequação, necessidade e equilíbrio, em razão dos fins de interesse público que conduzem à pretensão da Requerente - recuperação e regularização de dívidas de propinas dos alunos da U... - considerando, que não será a identificação da morada fiscal dos alunos (melhor identificados no requerimento descrito em A)) que irá revelar a situação patrimonial tributária dos mesmos, deverá a Entidade Requerida facultar os elementos solicitados pela Requerente - moradas completas e atuais - dos alunos melhor identificados no requerimento de 10 de Julho de 2019.

Termos em que, e em face do exposto, procede a pretensão da Requerente e, em consequência, observando que a derrogação do sigilo deve ter lugar apenas no grau indispensável para a satisfação do interesse público, deverá a Entidade Requerida, através dos serviços da AT RAM, ser intimada a prestar a informação requerida pela U..., no prazo de dez dias, conforme previsto no n.° 1 do art.° 108.° do CPTA.(…)”

Discorda a Recorrente do decidido por entender que o facto de o tribunal a quo considerar que as propinas são tributos e que as universidades públicas são administração tributária (cfr. fls. 23 e 25 da sentença) não implica que possa derrogar normas de natureza imperativa visando a garantia da confidencialidade dos dados dos contribuintes (dos com natureza pessoal e dos relativos à situação tributária).

Comecemos por dizer que não é controvertida a natureza de dado pessoal da morada do contribuinte em poder da AT, e nessa medida sujeita ao sigilo fiscal nos termos do preceituado no artigo 64º da LGT.

O problema coloca-se, pois, na interpretação do nº2 do artigo 64º da LGT, concretamente, da alínea b), e que se traduz em saber em que condições cessa o dever de sigilo fiscal no âmbito da cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes, no caso, a U....

Recuperamos o que sobre esta matéria se escreveu no recente Acórdão deste TCAS, de 25 de Junho de 2020, proferido no âmbito do processo nº 2796/19, sendo que, aí, a informação pretendida consistia no NIF (número de identificação fiscal):

“(…) O sigilo fiscal integra-se no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada referido no Art.º 26.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (1), cujos arts. 7º e 8º consagram precisamente o respeito pela vida privada e familiar (art. 7º/1) bem como à proteção de dados pessoais que lhe digam respeito, os quais devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. (art. 8º/1-2)

Os interesses que se pretendem proteger com o segredo fiscal, enquadram-se numa dimensão da privacidade do cidadão que, no entanto, não entra no núcleo da sua intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar «garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana» (n.ºs 1 e 2 do Art.º 26º da CRP), como são o caso do segredo médico ou religioso – cfr., neste sentido, Saldanha Sanches, «Segredo Bancário, segredo fiscal uma perspetiva funcional»(2).

O número fiscal do contribuinte foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 463/79 de 30 de novembro, com alterações legislativas sucessivas, o qual foi entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro, que na sua versão atualizada, refere no artigo 9.º/ 2 que "O NIF a atribuir automaticamente é considerado igualmente um elemento de identificação do interessado."

Por sua vez, o artigo 37.º do mesmo diploma sob a epígrafe "Comunicação de dados" dispõe que "Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, a informação constante da base de dados do registo de contribuintes da AT só pode ser transmitida nas condições previstas no artigo 64.º da Lei Geral Tributária."

E o artigo 41.º do mesmo Decreto-Lei sob a epígrafe "Sigilo", menciona que "Os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como todas as pessoas que, no exercício das suas funções, tomem conhecimento daqueles dados, ficam estritamente vinculados ao dever de sigilo fiscal e profissional, mesmo após o termo das suas funções."

E conforme alínea m) do art. 3º da Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, que transpôs para o Direito Português a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, (que nos termos do art. remete para o seu regime todas as referências à lei de Proteção de Dados Pessoais - art. 67º/3) considera «Violação de dados pessoais», uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação não autorizada de dados pessoais transmitidos, conservados ou tratados de outro modo, ou o acesso não autorizado a esses dados; sendo dados pessoais, segundo a mesma lei, as informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados») – alínea c) do mesmo art. 3º.

Por sua vez, acrescenta o n.º 2 do mesmo art.º 3º que para os efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, considera-se identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador como o nome, o número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa.(…)

Nos termos do artigo 64.º n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) "Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado."

Este dever de sigilo cessa, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, designadamente em caso de:

"a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;

b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;

c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;

d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal;

e) Confirmação do número de identificação fiscal e domicílio fiscal as entidades legalmente competentes para a realização do registo predial ou automóvel.(…)”

Nas palavras de Lima Guerreiro, in LGT Anotada, Rei dos Livros, anotação ao artigo 64º, pág.305: O dever de sigilo cessa igualmente em caso de outras disposições legais que consagrem expressamente o dever de cooperação da administração tributária com outras entidades públicas, nos termos da alínea b) do número 2 do presente artigo. A referida alínea não é uma norma de aplicação directa, mas de remissão para os preceitos legais que afastem, no âmbito dos deveres de cooperação da administração tributária com outras entidades públicas, o dever de segredo fiscal. É indispensável, pois, para a cessação do dever de segredo, a consagração na lei de poderes gerais de acesso por entidades públicas às informações detidas pela administração tributária. (negrito nosso)

Ora, é precisamente na exigência de consagração na lei que o entendimento preconizado pela sentença falha. Efectivamente, não obstante a sentença ter identificado as circunstâncias em que pode ceder o dever de sigilo fiscal, entendemos que a conclusão a que chegou não espelha uma correcta interpretação da alínea b) do nº2 do artigo 64º da LGT.

A verdade é que, para além da invocação do princípio da proporcionalidade, bem como pela caracterização do tipo de tributos em causa e legitimidade para a sua cobrança detida pela Recorrida, em lado algum a sentença recorrida logra identificar a norma legal que consagre a cessação do dever de sigilo fiscal relativamente à U..., ou às Universidades em geral.

Dito isto, outra conclusão não se alcança que não seja a de que a informação solicitada pela Recorrida se encontra coberta pelo sigilo fiscal uma vez que não se encontra verificada a exigência legal prevista na alínea b) do artigo 64º da LGT, nem nenhuma das situações em que a LGT admite a sua derrogação.

Daí que a Recorrida não possa ver satisfeito o seu pedido de intimação para informação da morada dos estudantes com dívidas de propinas, pelo que se impõe revogar a sentença recorrida que em sentido contrário decidiu.


III- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a intimação.

Custas pela Recorrida.

Registe e Notifique.

Lisboa, 30 de Setembro de 2020


(Isabel Fernandes)

(Benjamim Barbosa)

(Ana Pinhol)