Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:299/20.6BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:10/14/2021
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO,
NULIDADE DO AUTO DE NOTÍCIA,
PARTICIPAÇÃO E INSTRUÇÃO
Sumário:I. Quando o auto de notícia enferme de nulidade nos termos da alínea a) e b) do n.º 1 do art. 63.º do RGIT poderá servir de base ao processo de contraordenação tributária nos termos do art. 56.º, alínea b) do RGIT, uma vez que vale como participação por força do n.º 4, do art. 63.º do RGIT;

II. Nesses casos, em que o auto de notícia vale como participação, não há dispensa a investigação e instrução do processo de contraordenação, e, portanto, a verificação desse pressuposto legal deverá ser aferido casuisticamente pelo juiz.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou verificada a nulidade insuprível, enunciada nos artigos 57.°, n.° 2, alínea a) e 63.°, n.° 1, alínea b), ambos do RGIT no âmbito do Recurso de Contra-Ordenação deduzido por P... - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA, contra a decisão de aplicação de coima proferida no processo de contra-ordenação n.° 1112202006000..., que correu os seus termos no Serviço de Finanças de Portimão, no qual lhe foi aplicada uma coima única no montante de €9.790,69, acrescida do montante de €76,50 a título de custas processuais, por infracção ao artigo 18.°, n.° 1 (T) do CIVA - "Falta de liquidação de IVA", infracção punida nos termos do disposto no artigo 114.°, n.° 2 e 26.°, n.° 4 do RGIT - "Falta de entrega da prestação tributária" e, por infracção ao artigo 17.° e 120.°, n.° 10 do CIRC - "Omissões ou inexatidões praticadas na dec. periódica de rendimentos Mod. 22 (C/Imp. Liq)", infracção punida nos termos do artigo 119.°, n.° 1 e 26.°, n.° 4 do RGIT - "Omissões ou inexatidões praticadas em documentos fiscalmente relevantes".

A recorrente apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões:
«
a) Decidiu o Meritíssimo Juiz "a quo” pela procedência dos autos de Recurso de Contra-ordenação, por considerar que “No caso vertente, constata-se que o auto de notícia que se encontra nos presentes autos e que serviu de base à instauração do processo de contraordenação aqui em causa, não se encontra assinado pelo autuante, nem consta do mesmo a sua identificação, uma vez que não foi sequer indicado o seu nome (cfr. alíneas A) e B) do probatório).”
b) O Mm° Juiz "a quo’’ concluiu pela verificação de uma nulidade insuprível nos termos do art.° 63° n.° 5 do RGIT;
c) Salvo melhor e douta opinião, não pode a FP concordar com tal conclusão;
d) A questão decidenda prende-se com a alegada falta de assinatura do auto de notícia;
e) Concorda-se com o decisor da 1a Instância quando invoca o n.° 4 do artigo 63° do Regime Geral das Infracções Tributárias;
g) Pelo que, valendo o auto como participação, o processo devia continuar para investigação e instrução;
h) In casu, verifica-se que os factos foram verificados no decorrer de acção inspectiva cujo conhecimento mostra a arguida ter tido, uma vez que solicitou um pedido de redução de coimas, inserto nos autos;
i) Por outro lado, os inspectores tributários, elaboraram o Relatório de Faltas remetido ao Serviço de Finanças competente, do qual constam a identificação da inspectora e chefe de divisão e assinatura desta última cfr. Documento inserto nos autos;
j) As disposições previstas nos art.°s 58° e 30° n.° 1 b) do RGIT mandam instaurar de imediato o processo de contraordenação em caso de falta de pagamento na sequência de pedido de redução de coima apresentado pelo contribuinte;
l) Tal pedido de redução de coimas encontra-se inserto nos autos;
m) A arguida foi notificada da decisão de fixação da coima, da qual constam a indicação das normas infringidas, a indicação das normas punitivas; a indicação do período de tributação em causa, a indicação do termo legal para o cumprimento da entrega do imposto e a indicação do valor do imposto não entregue;
n) Pelo exposto, Relatório de Faltas e Notificação à arguida nos termos do n.° 2 do art.° 79° do RGIT, consta a descrição sumária dos factos que estão na base das infracções verificadas;
o) Também da referida notificação, efectuada nos termos do art.° 79° n.° 2 do RGIT, inserta nos autos, consta a menção à possibilidade de consulta de todos os elementos quer no "Portal das Finanças” quer no Serviço de Finanças instrutor do processo;
p) Ao decidir pela procedência do pedido, incorreu o Mm° Juiz a quo em erro de julgamento e violou a douta sentença recorrida o disposto nos art.°s 58°, 30° n.° 1 b), 79° n.° 1 e 114° n.° 2 todos do RGIT;
Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.»

O recorrido, Ministério Público, apresentou as suas contra-alegações, tendo formulado as conclusões seguintes:

«I - A questão a decidir é a de saber se a sentença de 30/10/2020 enferma de erro de julgamento por considerar que a falta de identificação do autuante e da respectiva assinatura no auto de notícia constitui nulidade insuprível.
II - O auto de notícia é um documento escrito, lavrado por uma entidade pública, dentro dos limites das competências que lhe estão atribuídas (autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial), que presenciar qualquer crime - leia-se contra-ordenação - de denúncia obrigatória (arts. 243° n° 1 CPP, 255° al. a) CP e 35° RGIT).
III - Trata-se de um documento autêntico que faz prova dos factos materiais nele constantes enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (arts. 99° n° 1 e 169° CPP, 363° n° 1 e 2 e 371°C CIV).
IV - O art. 57° n° 2 RGIT fixa os requisitos do auto de notícia exigindo, na alínea i), a assinatura do autuante nos ternos aí mencionados.
V - E o art. 63° n° 1 als. a) e b) RGIT comina com nulidade insuprível, entre outras, "O levantamento do auto de notícia por funcionário sem competência"e a " A faita de assinatura do autuante".
VI - Razão pela qual a falta de identificação do autuante bem como da respectiva assinatura no auto de notícia constitui nulidade insuprível no processo de contra-ordenação tributário e tem por efeito a anulação desse processo.
VII - Neste sentido decidiram os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa em 31/10/2017 no P. 638/149SGLSB.L1-5 e do Tribunal Central Administrativo Sul de 10/11/2016, P. 08747/15 e de 11/10/2018, P. 1556/17.4BELRS.
Pelos motivos expostos entende-se que a sentença recorrida aplicou correctamente o direito aos factos e deve ser confirmada.
Todavia, Vªs Excias decidirão e farão a costumada JUSTIÇA.»
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O Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

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A questão invocada pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter concluído pela verificação de nulidade insuprível nos termos do art. 63.º, n.º 5, do RGIT, por falta de assinatura do auto de notícia.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:



A) Em 06-01-2020, foi levantado "Auto de Notícia" com o n.° P0000001625, à Recorrente P... - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA, com o seguinte teor:




(cfr. fls. 4 do Documento n.° 004571979 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

B) No "Auto de Noticia" identificado em A) supra, o campo da assinatura do Autuante, encontra-se em branco (cfr. fls. 4 do Documento n.° 004571979 dos autos, idem);

C) Em 06-01-2020, com base no "Auto de Notícia", identificado em A) supra, foi instaurado em nome da ora Recorrente, pelo Serviço de Finanças de Portimão, o processo de contra-ordenação n.° 1112202006000... (cfr. fls. 3 do Documento n.° 004571979 dos autos, ibidem);

D) Em 30-01-2020, foi proferido pelo Director de Finanças de Faro, no processo de Contra-ordenação n.° 1112202006000..., decisão de aplicação de uma coima única à arguida, ora Recorrente, no montante de €9.790,69, acrescida de €76,50 de custas processuais, com o seguinte teor:


(cfr. fls. 16 a 17 do Documento n.° 004571966 dos autos, ibidem);

E) Por ofício n.° 360, de 04-02-2020, do Serviço de Finanças de Lagoa, a Recorrente foi notificada da decisão de aplicação da coima, identificada em D) supra (cfr. fls. 15 do Documento n.° 004571966 dos autos, ibidem);
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Factos Não Provados

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito e que, por conseguinte, importe registar como não provados.

Motivação da decisão de facto

Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se no teor dos documentos constantes dos autos, que não foram impugnados pelas partes, nem existem indícios que ponham em causa a sua genuinidade.»

*

Resulta da matéria de facto, e não se encontra controvertido nos autos, que o auto de notícia em causa não se encontra assinado (cf. alínea A) dos factos assentes).

Com base nesse facto, a Meritíssima Juíza do TAF Loulé julgou verificada a nulidade insuprível, enunciada nos artigos 57. °, n.° 2, alínea a) e 63.°, n.° 1, alínea b), ambos do RGIT, considerando que tal omissão não permitia aferir da competência do autuante para a prática do ato.

A Recorrente Fazenda Pública não se conforma com o decidido, invocando o erro de julgamento da sentença recorrida, por se ter concluído pela verificação de nulidade insuprível nos termos do art. 63.º, n.º 5, do RGIT, com o fundamento de falta de assinatura do auto de notícia.

A Recorrente funda a sua tese no facto de a infração ter sido verificada em sede de ação de inspeção, tendo sido aposta a assinatura da inspetora tributária no respetivo relatório de inspeção, e nos termos do disposto no n.º 4, do art. 63.º do RGIT, o auto de notícia vale como participação. Por outro lado, da notificação da decisão de fixação de coima, constam todos os elementos que correspondem aos requisitos da fundamentação exigidos pelo art. 79.º, n.º 1, do RGIT, e por outro lado, sempre a Arguida poderia consultar os elementos do processo utilizando a sua senha de acesso do portal das finanças.

Para conhecimento deste fundamento do recurso, adita-se a seguinte matéria de facto ao abrigo do disposto nos artigos 428.º e 431.º, al. a), do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, ex vi artigo 3.º, al. b), do RGIT:

F) Em 29/11/2019 o Diretor de Finanças de Faro proferiu decisão no procedimento de revisão instaurado ao abrigo do art. 92.º da LGT, no sentido de manter a fixação da matéria coletável apurada por métodos indiretos mantendo as conclusões retiradas no relatório de inspeção tributária que subjaz às infrações em causa nos autos, aderindo à posição do perito da administração tributária e respetivo laudo, no qual se descrevem os factos investigados no decurso da ação de inspeção e o direito aplicável que constam do relatório de inspeção (cf. ata, laudos dos peritos e ata da decisão do procedimento de revisão, que se encontram juntos ao procedimento de contra-ordenação a fls. 9 a 23 dos autos, e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais).

Na verdade, nos termos da a) e b) do n.º 1, do art. 63.º do RGIT, a falta de assinatura do autuante, como se verifica no caso dos autos, bem como o levantamento do auto de notícia por funcionário sem competência, são qualificadas pelo normativo como “nulidades insupríveis”.

Como bem salienta Jorge Lopes de Sousa, in RGIT anotado, 3.ª ed., Áreas Editora, 2008, em anotação ao art. 63.º “Tal qualificação é-lhes atribuída não por não poder haver sanação das irregularidades que constituem estas nulidades, mas pelo facto de elas não poderem ser consideradas como sanadas pelo mero decurso do tempo sem arguição pelos interessados ou por qualquer atuação deste, como é de regra nas nulidades sanáveis (art. 120. ° e art. 123.° do CPP). Assim, as nulidades referidas apenas poderão ser supridas em alguns casos e, nos casos em que o podem ser, só podem considerar-se sanadas com supressão da deficiência ou irregularidade a que elas se reportam, designadamente com a prática de acordo com a lei do ato omitido ou irregularmente praticado.”

Ora, importa atentar, de igual modo, ao que se dispõe no n.º 4 daquele art. 63.º do RGIT. Efetivamente, de acordo com esse preceito legal, ocorrendo as nulidades enunciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1, o auto de notícia vale como “participação”.

Ou seja, resulta daquele n.º 4, do art. 63.º do RGIT que o legislador tributário entendeu conferir um valor jurídico ao auto de notícia, e nessa medida, apesar da existência de nulidades que o afetem, nomeadamente as enunciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1), do art 63.º do RGIT ainda assim, o auto de notícia, nessas circunstâncias, vale como participação da infração.

Assim sendo, importa tirar as devidas consequências jurídicas deste regime previsto no RGIT, nomeadamente, importa concluir que, pese embora o auto de notícia que enferme daquelas nulidades insupríveis não possa servir de base ao processo de contraordenação tributária nos termos do art. 56.º, alínea a) do RGIT, já poderá servir nos termos da alínea b) deste mesmo preceito legal, uma vez que vale como participação por força do n.º 4, do art. 63.º do RGIT.

Por outras palavras, no processo de contraordenação tributária o legislador entendeu que nos casos de nulidade insuprível do auto de notícia previstos nas alíneas a) e b) do art. 63.º do RGIT, ainda assim, tal auto de notícia possa valer como participação (cf. n.º 4, do art. 63.º do RGIT). Assim sendo, nos termos da alínea b) do art. 56.º do RGIT, continua a servir de base ao processo de contraordenação, o que significa que o processo de contraordenação se mantém regular, ainda que fundado numa participação.

A diferença qualitativa de regimes relaciona-se com o valor probatório do auto de notícia, uma vez que o seu levantamento nos termos do art. 57.º a 59.º do RGIT, dispensa a investigação e instrução do processo de contraordenação (cf. n.º 2, do art. 69.º do RGIT), sem prejuízo da obtenção de outros elementos indispensáveis para a prova da culpabilidade do arguido ou para demonstrar a sua inocência, como expressamente estatui a última parte daquele preceito legal.

Portanto, a questão que se coloca no caso dos autos, em que o auto de notícia apenas vale como participação, é se houve a investigação e instrução do processo de contraordenação, pois esta não se encontra dispensada nos termos do disposto no art. 69.º n.º 2 do RGIT. Ora, a resposta terá de ser positiva.

Efetivamente, in casu, tal investigação e instrução do processo de contraordenação, exigida quando o auto de noticia vale como participação, se verifica, conforme resulta, desde logo, da ata de reunião de peritos a que se refere ao artigo 92.º da LGT que se realizou na sequência da fixação da matéria tributável por métodos indiretos, e que se encontra junta aos presentes autos de contraordenação (cf. alínea F) da matéria de facto aditada oficiosamente). Na verdade, a matéria coletável foi fixada com base num relatório de exame à escrita da Arguida e respetivos anexos, no qual foi conferido o direito de participação nos termos do art. 60.º da LGT. Nesse relatório descrevem-se os factos e os requisitos legais que impossibilitaram a comprovação da matéria tributável por métodos diretos. A matéria de facto e os pressupostos para a fixação da matéria coletável foi discutida no âmbito do procedimento de revisão, decidindo-se manter os valores apurados.

Resulta ainda da decisão de aplicação de coima (cf. alínea D) dos factos provados) que o processo de contraordenação foi instaurado, para além do mais, com base na “decisão de 29/11/2019 do Diretor de Finanças de Faro de manter a fixação da matéria coletável, por não ter havido acordo de Revisão da Matéria Coletável entre os peritos, os quais se dão como provados”.

Ou seja, na própria decisão administrativa de aplicação de coima se faz referência a esses elementos que serviram de investigação e instrução dos autos de contraordenação (i.e. decisão de manter a fixação da matéria coletável, que mantém as conclusões retiradas no relatório de inspeção tributária, e que subjaz às infrações em causa nos autos – cf. alínea F) do facto aditado oficiosamente), pelo que dúvidas não restam de que o procedimento de contraordenação foi instruído com tais elementos indispensáveis para que se conclua que foi efetuada a investigação e instrução do processo de contraordenação, sendo também evidente, que tais elementos foram efetivamente considerados para a prolação da decisão administrativa de aplicação de coima, pois esta faz referência expressa aos mesmos.

Acresce que a Arguida não coloca em causa a prática da infração, nem a medida da coima, invocando, tão-somente, nulidades da decisão de aplicação de coima. Ou seja, nem sequer é levantada a questão de uma ausência total de investigação e instrução do processo de contraordenação que colocasse em causa os direitos de defesa da Arguida.

Por essa razão, ou seja, por existir regime especial previsto no RGIT, nos termos supra expostos, é que entendemos não ser aplicável a jurisprudência dos tribunais judiciais citada pelo Magistrado do Ministério Público na conclusão VII) das suas contra-alegações de recurso.

Por outro lado, também não é aplicável ao caso dos autos o entendimento vertido nas decisões proferidas nos acórdãos deste TCA Sul de 10/11/2016, proc. 08747/15, e do acórdão do TCAS de 11/10/2018, proc. n.º 1556/17.4BELRS, porque nas mesmas não foi equacionada a aplicação do n.º 4, do art. 63.º do RGIT, conjugado com a alínea b), do art. 56.º do mesmo diploma.

Pelo exposto, importa conceder provimento ao recurso, e revogar a decisão recorrida.

Cumpre então, conhecer em substituição da 1.ª instância, dispensando-se o contraditório por manifesta desnecessidade, cumprindo apenas conhecer da nulidade insuprível suscitadas pela Arguida nos termos do art. 63.º, n.º 1, alínea d) do RGIT.

Efetivamente, nas suas conclusões da p.i. a Arguida invocou que a decisão administrativa não contém a descrição sumária dos factos exigida pela alínea b) do n.º 1, do art. 79.º do RGIT, na medida em que na decisão não se refere à “prévia dedução da prestação tributária não entregue” que constitui elemento essencial do tipo legal de contraordenação em causa (art. 114.º, n.º 1 do RGIT). Não bastando de igual modo, a referência ao art. 119.º, n.º 1 e 26.º, n.º 4 do RGIT e a expressão “omissões ou inexatidões” sendo necessário explicar no que consiste tais termos. Por outro lado, no que se refere a enunciação das normas infringidas remete-se para o art. 18.º, n.º 1, do CIVA referindo-se à “falta de liquidação de IVA” e aos artigos 17.º, 120.º, n.º 10 do CIRC sem referir se foi apresentada dentro do prazo sem pagamento, ou se por outro lado, na apresentação do prazo, mas com pagamento suficiente.

Apreciando.

Dispõe o art. 79.º, n.º 1, do RGIT:

“1 - A decisão que aplica a coima contém:

a) A identificação do infrator e eventuais comparticipantes;

b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas;

c) A coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação;

d) A indicação de que vigora o princípio da proibição da reformatio in pejus, sem prejuízo da possibilidade de agravamento da coima, sempre que a situação económica e financeira do infrator tiver entretanto melhorado de forma sensível;

e) A indicação do destino das mercadorias apreendidas;

f) A condenação em custas”.

Resulta da alínea b) deste preceito legal que a decisão que aplica a coima deve conter a descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas.


Por outro lado, a falta dos requisitos da decisão que aplica a coima previstas no art. 79.º do RGIT constitui uma nulidade insuprível do processo de contraordenação tributário prevista no art. 63.º, n.º, alínea d) do RGIT.

Portanto, a decisão administrativa deve ser suficientemente fundamentada, quer de facto, quer de direito, de modo a permitir ao arguido exercer o seu direito de defesa, o qual reveste a natureza de direito fundamental em processo de contraordenação (cf. neste sentido, vide Ac. do STA de 30/05/2018, proc. n.º 0269/18).

No que se refere à satisfação do requisito legal de descrição sumária dos factos importa interpretar o preceito legal em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê e pune a infração imputada ao arguido, pelo que é suficiente que a decisão de aplicação de coima descreva os factos essenciais que integram o tipo de ilícito em causa, (nesse sentido, vide por todos, acórdão do STA de 10/04/2019, proc. n.º 0260/17.8BEAVR 0226/18).

Como escreve Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos “(…) o que exige aquela al. b) do n.º 1 do art. 79.º, interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado (art . 32.º, n.º 10, da CRP) é que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente…” (cf. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, 4.ª Ed., Vislis, Lisboa, 2010, pp. 517 a 519).

Ora, in casu, interpretando o preceito legal em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê e pune a infração imputada ao arguido, temos então que a decisão administrativa descreve de forma suficiente os factos e as normas violadas e punitivas permitindo ao arguido o exercício do seu direito fundamental de defesa.


Com efeito, resulta da decisão que aplicou a coima (cf. alínea D) dos factos assentes) as normas infringidas relativamente a cada uma das duas infrações de que a Arguida vem acusada, nomeadamente o art. 18.º, n.º 1 CIVA “falta de liquidação de IVA”, bem como o art. 17.º, 120.º, n.º 10 do CIRC “omissões ou inexactidões praticadas na dec. periódica de rendimentos Mod. 22 (c/Imp. Liq). Constam ainda as normas punitivas, nomeadamente a referência aos artigos 114.º n.º 2, e 26.° n.º 4 RGIT “falta de entrega de prestação tributária”, bem como o art. 119.º e 26.º, n.º 4 do RGIT para as “omissões ou inexactidões praticadas em documentos fiscalmente relevantes”. De igual modo, se encontra exarado o período de tributação, o termo do prazo para cumprimento da obrigação.

Mais se faz expressa referência de que o processo foi instaurado com base no relatório de faltas da inspeção de Finanças de Faro, identificando-se as ordens de serviço ao coberto das quais tal relatório foi elaborado, bem como com base na “decisão de do dia 29-11-2019 do Diretor de Finanças de Faro de manter a fixação da matéria coletável, por não ter havido acordo de revisão da Matéria coletável entre os peritos, os quais se dão como provados”.

Ora, bastando-se a lei como uma descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas, entendemos que esta exigência da alínea b), do n.º 1, do art. 79.º do RGIT considera-se satisfeita quando, como no caso dos autos, o elemento essencial de cada um do tipo em causa está descrito na decisão administrativa (não entrega da prestação tributária/omissões e inexatidões nas declarações ou em outros documentos fiscalmente relevantes) juntamente com a indicação das normas infringidas e punitivas, bem como uma descrição, ainda que sumária, dos elementos que estão na base de tal decisão que, in casu, se consubstancia na referência de que a decisão administrativa que esta se fundou na decisão do Diretor de Finanças de Faro de manter a fixação da matéria coletável.

Na verdade, fez-se constar expressamente na decisão administrativa a mesma se fundou na decisão do Diretor de Finanças de Faro de manter a fixação da matéria coletável. Ora, nesta decisão do Diretor de Finanças constam com exatidão e pormenor os comportamentos da Arguida que se subsumem às normas infringidas e ao tipo legal das normas punitivas, pois o procedimento de revisão partiu dos factos e normas infringidas que constavam do relatório de inspeção às contas da Arguida. A Arguida participou nesse procedimento de revisão por intermédio do perito que nomeou, e nessa medida, conhece perfeitamente o seu teor, conhece os factos que aí são descritos com base no relatório de inspeção elaborada na sequência da ação de inspeção às suas contas.

Sublinhe-se que “(…) A apreciação dos termos concisos e sumários em que deve ser efetuada essa descrição sumária dos factos pode ser encarada de forma mais ou menos exigente, até porque estamos perante decisões em que essa descrição é feita em aplicações informáticas com campos formatados, mas esse entendimento tem como limite o direito do arguido a exercer a sua defesa” - cf. acórdão do STA de 13/01/2021, proc. n.º 0530/19.0BELRA.

Deste modo, verifica-se que no caso dos autos, a descrição sumária da decisão administrativa é suficiente e bastante, pois assegura o direito de defesa da Arguida consagrado no art. 32, n.º 10, da CRP, é suficiente para permitir à Arguida aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa perceção, defender-se adequadamente relativamente às duas infrações de que vem acusada (falta de liquidação de IVA e omissão e inexatidão praticada na declaração de IRC) e pronunciando-se quanto ao preenchimento dos pressupostos das respetivas normas punitivas (art. 114.º n.º 2 do RGIT e art. 119.º n.º 1 do RGIT).

Adicionalmente refira-se que o facto de na decisão de aplicação de coima “não se fazer referência à circunstância de o imposto ter ou não sido recebido deixou de relevar, para o futuro, a partir da alteração introduzida na alínea a) do n.º 5 do artigo 114.º do RGIT pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, pela qual se passou também a tipificar como contraordenação de falta de entrega da prestação tributária a falta de entrega ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que o devesse ser e em relação à qual, contrariamente ao que sucede com o tipo previsto no n.º 3 do artigo 114.º do RGIT, não é elemento essencial da infração que o imposto tenha sido recebido.” – Ac. do STA de 09/10/2019, proc. n.º 01063/16.2BELRA.

Assim sendo, não se verifica a nulidade insuprível do processo de contraordenação tributário prevista no art. 63.º, n.º, alínea d) do RGIT por falta dos requisitos da decisão que aplica a coima previstos na alínea b), do n.º 1, do art. 79.º do RGIT, e deste modo, improcede o recurso da decisão de aplicação da coima.

Sumário (art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. Quando o auto de notícia enferme de nulidade nos termos da alínea a) e b) do n.º 1 do art. 63.º do RGIT poderá servir de base ao processo de contraordenação tributária nos termos do art. 56.º, alínea b) do RGIT, uma vez que vale como participação por força do n.º 4, do art. 63.º do RGIT;

II. Nesses casos, em que o auto de notícia vale como participação, não há dispensa a investigação e instrução do processo de contraordenação, e, portanto, a verificação desse pressuposto legal deverá ser aferido casuisticamente pelo juiz.


III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção, da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, e em substituição, julga-se improcedente o recurso da decisão de aplicação de coima.


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Custas pela Arguida (artigos 94.º, n.º 3 do RGCO, aplicável ex vi, art. 3.º, alínea b) do RGIT).
D.N.
Lisboa, 14 de outubro de 2020.

Cristina Flora (Relatora)

Patrícia Manuel Pires (1.ª adjunta)

Vital Lopes (2.º adjunto)