Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:413/16.6BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:02/09/2017
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:PEDIDO ANULAÇÃO DE VENDA, FORMULADO PELO ADQUIRENTE
ERRO RELEVANTE
Sumário:1) Não constitui fundamento relevante da anulação de venda, a invocação, por parte do adquirente, de que tomou conhecimento, em data posterior à venda, de que pende sobre o imóvel ordem camarária de reposição do mesmo em conformidade com a licença de utilização.
2) A demolição em causa, a ocorrer, não irá contender com nenhuma das características ou qualidades da fracção em causa, tal como consta da sua descrição predial ou edital para venda, visando precisamente repor integralmente a sua configuração e composição originais devidamente aprovadas.
3) Pelo que se impõe concluir que as qualidades do bem vendido foram correctamente identificadas no edital de venda, não existindo ónus ou limitação relevante que não tenha sido tomado em consideração, pelo que não existe fundamento para a pretendida anulação de venda.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I- Relatório

A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional contra a sentença proferida fls. 71/76, que julgou procedente a reclamação judicial deduzida contra o despacho do Director de Finanças de Faro, proferido em 05.07.2016, que indeferiu o pedido de anulação da venda do imóvel correspondente ao artigo 8153, Fracção F, fracção AAAN, situada no 2.º andar, 3.ª piso, designada sótão, destinado a arrecadação.

Nas alegações de recurso, a recorrente formula as conclusões seguintes:

a) A reclamação foi interposta do despacho de indeferimento que recaiu sobre o pedido de anulação da venda n° ..., proferido pelo Diretor de Finanças de Faro.

b) O pedido de anulação da venda foi efectuado ao abrigo do artigo 257°, n° l, alínea a) do CPPT e foi indeferido com o fundamento de não ter sido apresentada prova que sobre a fracção adquirida existam ónus ou encargos que invalidem a venda, sendo que a partir dessa data teve a posse e a propriedade do imóvel (doe. 7 entregue com a p.i.).

c) A douta sentença recorrida julgou procedente a reclamação por considerar não estar a decisão reclamada devidamente fundamentada.

d) No entanto, não pode a Fazenda Pública concordar com este entendimento.

e) Do despacho proferido pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de ..., junto a fls. 20 e seguintes do SFTAF, decorre que o que é pretendido é a integral reposição da legalidade urbanística violada, devolvendo as características originais do imóvel, através da demolição das obras ilegalmente executadas.

f) Pelo que, estes factos deveriam constar do probatório.

g) Já que se tornam necessários para concluir que não ocorreu o alegado erro sobre o objecto, já que a demolição, a ocorrer, não contende com nenhuma das características do imóvel que foram anunciadas.

h) Pois, trata-se de um sótão destinado a arrecadação e sem licença de habitação (item I do probatório da sentença).

i) Ora, como bem refere o douto parecer da Procuradora da República, que acompanhamos "as qualidades do objecto estão correctamente identificadas no anúncio de venda, inexiste qualquer ónus real ou limitação relevante que não tenha sido tomado em consideração, e não se verifica fundamento legal para a anulação da venda face ao preceituado no art. 257°, n° l al. a) CPPT".

j) Pelo que, a decisão reclamada limitou-se a concluir precisamente neste sentido, não se vendo que mais justificações se impunham.

k) Quanto à "Ap. 818 de 2012/10/08 - Acção", tal averbamento constava da certidão da conservatória do registo predial, assim como do despacho de adjudicação, elaborado em 2014, factos que deveriam ter sido levados ao probatório da sentença sob recurso.

l) Assim, já desde 2014 que tinha o recorrido a obrigação de saber da existência da acção judicial, ao contrário do que alega de que só em fevereiro de 2016 teve conhecimento da mesma, aquando da sua citação.

m) Pelo que, ao ter entregue o requerimento de anulação de venda em 2016, é forçoso concluir que o pedido foi intempestivo, como foi alegado na resposta da representante da Fazenda Pública, atento o disposto no art° 257°, n° l, ai. a) e n° 2 do CPPT.

n) Facto que o Mm° Juiz a quo deveria ter conhecido nos presentes autos, no uso dos poderes de sindicância da decisão reclamada. Com efeito, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, na sua globalidade, apesar de haver uma parte do mesmo que é processada perante órgãos da Administração Tributária (art°.103, n°.l, da L.G.T.).

o) Não o tendo feito, deverá agora esta questão ser apreciada e decidida, pois dos processo constam todos os elementos pertinentes para a decisão.

p) Assim, no entender da FP, a douta sentença recorrida labora em erro de julgamento ao entender que tanto a liquidação como a respectiva execução fiscal foram anuladas. Como referido, apenas o foram parcialmente.


X

A fls. 104/109, o recorrido proferiu contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado.

Formula as conclusões seguintes:

1) A douta sentença proferida a fls 112 do SITAF que julgou procedente a Reclamação de Acto do Órgão de Execução Fiscal não sofre de qualquer vício ou violação de lei.

2) Não se verificando qualquer erro de julgamento conforme erradamente é pretendido pela recorrente.

3) A decisão reclamada (de indeferir o pedido de anulação da venda) aplicou indevidamente a lei aos factos e não se encontrava de facto suficientemente fundamentada.

4) O pedido de anulação de venda apresentado pelo ora reclamante foi tempestivo e legal, encontrando-se suportado em documentos que atestam que se verificou erro sobre o objecto e qualidades da fracção transmitida.

5) Motivo pelo qual se o proponente tivesse conhecimento das ilegalidades que atingiam a fracção anunciada para venda e de que existia uma ordem de demolição da mesma nunca teria efectuado qualquer proposta de aquisição.

6) Verificando-se assim que o ora reclamante tem legitimidade e fundamento para pretender a anulação da venda já que se verificou um erro relevante decorrente da omissão de informação da AT que relativamente ao imóvel em venda em leilão existia um contencioso judicial e uma ordem de demolição por entidade administrativa competente.

7) Deve pois ser mantida a douta sentença recorrida, com as legais consequências.


X

A Digna Magistrada do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer (cfr. fls. 125/126 dos autos) no qual termina pugnando por que se negue provimento ao recurso jurisdicional.

X

II. Fundamentação

2.1. De Facto

1. Em 28 de Maio de 2014, a venda n.° ... foi anunciada nos seguintes termos:

"(...) // Prédio urbano artigo 14411 fracção AAAN (...) situada no 2° andar - 3.°piso - designada por Sótão destinado a arrecadação, tem o uso exclusivo da zona situada a poente da fracção com a área de 400m2; Tipologia/Divisões: 1; (...) Descrito na CRP sob o n.º 03748/880705-AAAN; A fracção AAAN não tem licença de habitação. // (...)" - cfr. fls. 38 dos autos.

2. No dia 18 de Agosto de 2014, aquele prédio foi adjudicado a C... por € 9.220,50 (acto reclamado) - cfr. fls. 31 dos autos.

3. Em 4 de Abril de 2016, C... requereu a anulação da venda - cfr. fls. 15 dos autos.

4. No dia 5 de Julho de 2016, aquele requerimento foi indeferido com a seguinte fundamentação: "O Requerente não apresentou prova que sobre a fracção adquirida existam ónus ou encargos que invalidem a venda ocorrida em 15 de" (sic) - cfr. fls. 16 dos autos.

5. Em Fevereiro de 2003, os serviços de fiscalização da Câmara Municipal de ... detectaram que a fracção AAAN havia sido, sem prévia e necessária licença ou autorização camarária, ampliada, compartimentada e dotada de equipamento que propicia a sua utilização para fins habitacionais - cfr. fls. 21 dos autos.

6. Em Março de 2016, C... foi citado para o processo .../13.1BELLE-A no qual o Executado, anterior proprietário da fracção AAAN, discutia a legalidade da ordem de demolição daquelas obras de ampliação e compartimentacão - cfr. fls. 27-28 e 24 dos autos.


X

Em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, consignou-se o seguinte:

«Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade».


X

Com as contra-alegações, o recorrido juntou aos autos cópia da certidão do registo predial do imóvel em causa nos autos (fls. 110/115).

Compulsado o teor do documento, e atendendo aos pressupostos a que está sujeita a junção dos documentos em sede de recurso (artigo 651.º/1, do CPC), impõe-se ordenar o desentranhamento do mesmo, pois não esclarece, nem contende com a economia dos presentes autos, dado que não contém elementos sobre a situação patrimonial ou jurídica do prédio que já não constem dos mesmos.


X

Compulsados os autos, impõe-se rectificar o n.º 4 do probatório, o qual passa a ter a redacção seguinte:

«No dia 5 de Julho de 2016, aquele requerimento foi indeferido com a seguinte fundamentação: "O Requerente não apresentou prova que sobre a fracção adquirida existam ónus ou encargos que invalidem a venda ocorrida em 15 de Julho de 2014, sendo que desde essa data detém a posse e a propriedade do imóvel" - cfr. fls. 16 dos autos.


X

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º/1, do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto:

7. Do despacho de adjudicação consta o seguinte:

«Assim encontrando-se paga a totalidade do preço e cumpridas todas as obrigações fiscais, é adjudicado o bem identificado no respectivo Edital, fracção AAAN do artigo urbano n° 8153 da freguesia de ... e ... e concelho de ..., a C..., nif …, (…) pelo valor de € 9.220,50.

De harmonia com o disposto no art.° 260° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ordeno o cancelamento dos ónus e encargos a seguir identificados, relativamente ao prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 3748/19880705 - AAAN.

Ap.33 de 2007/07/16 - Penhora a favor da Fazenda Nacional

Ap. 4329 de 2009/02/16 - Penhora a favor da Fazenda Nacional,

Ap.818 de 201 2/1 0/08 -Acção;

Proceda-se à emissão do respectivo título de transmissão, nos termos do n° 1 do art. 827° do Código do Processo Civil» - fls. 30.


X

2.2. De Direito

2.2.1. Nos presentes autos vem sindicada sentença proferida fls. 71/76, que julgou procedente a reclamação judicial deduzida contra o despacho do Director de Finanças de Faro, proferido em 05.07.2016, que indeferiu o pedido de anulação da venda do imóvel correspondente ao artigo 8153, Fracção F, fracção AAAN, situada no 2.º andar, 3.ª piso, designada sótão, destinado a arrecadação.

2.2.2. Para julgar procedente a reclamação, a sentença considerou procedente o vício de falta de fundamentação do despacho que indeferiu o pedido de anulação de venda em exame.

2.2.3. O cerne da presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento em que incorreu a sentença sob escrutínio, ao julgar procedente o vício de falta de fundamentação do despacho de indeferimento do pedido de anulação de venda.

Estabelece o artigo 257.º do CPPT (“Anulação de venda”) o seguinte:

«1. A anulação de venda só poderá ser requerida dentro dos prazos seguintes:

a) De 90 dias, no caso de a anulação se fundar na existência de algum ónus real que não tenha sido tomado em consideração e não haja caducado ou em erro sobre o objecto transmitido ou sobre as qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado;

(…)

2. O prazo contar-se-á da data da venda ou da que o requerente tome conhecimento do facto que servir de fundamento à anulação, competindo-lhe provar a data desse conhecimento, ou do trânsito em julgado da acção referida no nº 3.

(…)

4. O pedido de anulação da venda deve ser dirigido ao órgão periférico regional da administração tributária que, no prazo máximo de 45 dias, pode deferir ou indeferir o pedido, ouvidos todos os interessados na venda, no prazo previsto no artigo 60.º da lei geral tributária.

(…)».

2.2.4. A recorrente invoca a extemporaneidade do pedido de anulação de venda, considerando que a excepção da intempestividade do pedido, invocada na contestação, devia ter sido conhecida pela sentença recorrida.

Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Do disposto no artigo 257.º/4, 5 e 6, do CPPT, resulta que o pedido de anulação de venda é dirigido ao órgão periférico da Administração Fiscal, corporizando um procedimento tributário, o qual conflui (ou deve confluir) para a emissão de decisão expressa sobre o pedido de anulação formulado.

No caso, foi proferida decisão expressa sobre o pedido, por meio da qual, o órgão competente para decidir emitiu pronúncia expressa sobre o mesmo, pelo que falece ao órgão jurisdicional da reclamação judicial competência para dirimir a questão da tempestividade do pedido, questão que foi rejeitada pelo órgão da Administração Fiscal competente, ao emitir pronúncia expressa sobre o mesmo.

Motivo porque se impõe julgar improcedentes as presentes conclusões de recurso.

2.2.5. A recorrente invoca erro de julgamento, dado que o despacho que indeferiu o pedido de anulação de venda não enferma do vício de falta de fundamentação, considerado procedente por parte da sentença sob recurso.

O teor do despacho em crise é o seguinte:

"O Requerente não apresentou prova que sobre a fracção adquirida existam ónus ou encargos que invalidem a venda ocorrida em 15 de Julho de 2014, sendo que desde essa data detém a posse e a propriedade do imóvel".

À luz dos ditames do preceito do artigo 77.º/2, da LGT, dir-se-á que os motivos do despacho em exame mostram-se acessíveis a um destinatário médio, colocado na posição do recorrido. Aí se consigna que não existem ónus ou encargos que invalidem a venda ocorrida. O que determinou, no entendimento do órgão autor do acto questionado, o indeferimento do pedido de anulação da venda.

Donde resulta que a sentença recorrida, ao julgar procedente o vício de falta de fundamentação do acto impugnado, incorreu em erro de julgamento, pelo que não se pode manter na ordem jurídica. A mesma deve ser substituída por decisão que aprecie dos demais fundamentos da reclamação e decida da manutenção (ou não) do despacho impugnado.

Termos em que se impõe julgar procedentes as presentes conclusões de recurso

2.2.6. O objecto do dissídio reside na questão de saber se existe erro sobre o objecto do bem vendido, capaz de determinar a anulação da venda realizada na execução.

O recorrido defende a existência do erro em causa, porquanto, se tivesse tido conhecimento da existência do contencioso judicial com a Câmara de ... e da ordem de demolição que pende sobre o imóvel, na data da publicitação da venda, não teria adquirido o bem.

Por seu turno, a Fazenda Pública defende que o imóvel anunciado corresponde ao que foi adjudicado, ou seja, trata-se de um sótão, destinado a arrecadação, com as áreas patenteadas no Edital. As obras cuja demolição se impõe correspondem à reposição da situação do prédio, conforme a legalidade e conforme o que consta do Edital. Tais obras são reclamadas pelos demais condóminos do prédio. A presente situação é do conhecimento do recorrido, dado que, desde a aquisição do imóvel, tomou a posse do mesmo.

Constitui jurisprudência assente a de que «[o] erro sobre as qualidades que releva para efeitos de anulação tem de se consubstanciar numa divergência entre as qualidades do objecto da venda e o teor dos editais ou anúncios respectivos. Por outro lado, para justificar a anulação, não será necessário que o mesmo erro seja essencial, bastando o mero erro incidental (se não fosse o erro, a compra não teria sido efectuada pelo preço que foi) e será indiferente que o comprador tenha culpa na ocorrência do erro»(1).

Mais se refere que: «[s]e é certo que a Administração Fiscal não está obrigada a efectuar uma descrição exaustiva do bem a vender, bastando que faça uma descrição sumária do mesmo, há que verificar, caso a caso, se os elementos divulgados nos anúncios e editais são suficientes para que o potencial interessado forme uma exacta e correcta ideia sobre o mesmo bem, nos seus aspectos quantitativos e qualitativos, ou seja, que tais elementos são susceptíveis de proporcionar aos potenciais compradores toda a informação relevante sobre as características do bem a vender»(2).

No caso, verifica-se que «a demolição em causa, a ocorrer, não irá contender com nenhuma das características ou qualidades da fracção em causa, tal como consta da sua descrição predial ou edital para venda, visando precisamente repor integralmente a sua configuração e composição originais devidamente aprovadas»(3).

Pelo que se impõe concluir que as qualidades do bem vendido foram correctamente identificadas no edital de venda, não existindo ónus ou limitação relevante que não tenha sido tomada em consideração, pelo que não existe fundamento para a pretendida anulação de venda (artigo 257.º/1/a), do CPPT).

Ao decidir no sentido apontado, o despacho reclamado não merece censura, pelo que deve ser confirmado na ordem jurídica.

Ao julgar em sentido diverso, a sentença recorrida não se pode manter, devendo ser substituída por decisão que julgue improcedente a presente reclamação.

Termos em que se julgam procedentes as presentes conclusões de recurso.


Dispositivo

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a reclamação.

Custas pelo recorrido, em ambas as instâncias.

Registe.

Notifique.


(Jorge Cortês - Relator)

(Cristina Flora - 1º. Adjunto)

(Cremilde Miranda - 2º. Adjunto)

(1) Acórdão do TCAS, de 26.06.2014, P. 07628/14.

(2) Acórdão do TCAS, de 19.11.2015, P. 07841/14.

(3) Parecer da ilustre Magistrada do MP, fls. 68/69.