Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11405/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/18/2014
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA- PENA DE PRISÃO- INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
Sumário:I - O resultado da interpretação da regra contida no artigo 9º, alínea b), da L.N., segundo o artigo 9º do C.C., é a chamada interpretação declarativa ou confirmatória, ou seja, há uma coincidência entre o significado literal e o espírito da lei resultante dos elementos não literais (histórico, de contexto jurídico vertical e horizontal, de consistência sistemática, e de teleologia atualista que considera os princípios subjacentes e as consequências) da interpretação.
II - o significado literal da alínea b) citada corresponde ao significado mais comum das palavras (crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos), não havendo nenhuma razão não gramatical para um resultado interpretativo mais lato ou mais restrito do significado literal. E muito menos haverá, logicamente, razão para um resultado interpretativo integrável no conceito de interpretação reconstrutiva restritiva, que é a tese sugerida pela teoria meramente doutrinária dos “factos indiciadores de indesejabilidade do estrangeiro interessado”, quanto a tal alínea b), num contexto que exigiria (i) ou que a pena efetiva tivesse sido igual ou superior a 3 anos, (ii) ou, ainda pior, que o juiz administrativo julgasse que assim deveria ser.
III - Se a lei e o legislador quisessem se referir à pena concreta, teria sido muito fácil dizê-lo, não devendo o intérprete supor que o legislador é irracional e que não soube se exprimir (artigo 9º, nº 3, do C.C.).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· MINISTÉRIO PÚBLICO intentou

Ação de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra

· E….. D….., de nacionalidade brasileira, natural de M….., República Federativa do Brasil, e residente na Rua T….., Lote .., 2° ..., Quinta ….., C……..

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Por sentença de 14-1-2014, o referido tribunal decidiu julgar procedente o pedido.

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Inconformada, a r. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. Em Outubro de 2004, a Recorrente e o companheiro, M….. J……, com ela residente, iniciaram uma vida a dois, passando a viver em condição análoga à dos cônjuges (união de facto), em comunhão de mesa, leito e teto, isto é vivem na mesma casa, comem ao mesmo tempo e na mesma mesa, dormem na mesma cama, praticando relações sexuais de cópula, partilham as despesas na alimentação, vestuário, de lazer, entre outras. A R. por pretender que lhe fosse reconhecida judicialmente a sua relação amorosa com o companheiro, o qual tem nacionalidade Portuguesa, como uma união de facto, por forma a poder requerer a nacionalidade Portuguesa, nos termos e para os efeitos do art.14° n° 2. do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa D.L. n°237-A/06 de 14 de Dez., propôs ação judicial que correu termos no 3° Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco sob o n°91/10.6TBCTB, já transitada em julgado. Tal ação veio a ser julgada procedente e provada sendo reconhecida judicialmente que a R. coabita com o companheiro há mais de três anos em condições análogas às dos cônjuges.

2. Tendo a R. pedido a nacionalidade, veio o M°P° deduzir oposição à aquisição da nacionalidade Portuguesa alicerçando a sua posição na não verificação de um dos requisitos — cumulativos— de que a Lei da Nacionalidade faz depender a aquisição da nacionalidade, isto é a ausência de condenações, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa. (cfr. artigo 9°, da Lei Orgânica n° 2/2006, de 17/4, que alterou a Lei n° 37/81, de 3/10 [Lei da Nacionalidade]).Considerou o M.P. que a condenação da R. por crime punível em abstrato com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos afastava, desde logo, a possibilidade de obter a nacionalidade portuguesa por naturalização.

3. A R. contestou com base no facto de que tal interpretação da lei violar o disposto no artigo 30°, n° 4 da Constituição da República Portuguesa, já que nos termos do normativo em causa, nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos. Interpretar a norma de uma forma cujo resultado é que a mera verificação de uma condenação em crime punível abstratamente com pena de 3 anos de prisão impede automaticamente a aquisição da nacionalidade Portuguesa, sem que um Tribunal tenha sequer considerado essa possibilidade como uma consequência da condenação, sem que o juízo de indesejabilidade seja valorado sequer em fase administrativa, será uma violação do direito a mudar de nacionalidade, vazado na 2' parte do n° 2 do art° 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aplicável ex vi art° 8 da CRP: "Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade". Assim sendo, a disposição legal em causa tem de ser entendida como um mero índice ou circunstância indiciadora da indesejabilidade a valorar perante cada situação concreta e não um verdadeiro impedimento da aquisição da nacionalidade. (neste sentido Ac TCA Sul, proc. n°08678/12 de 10-01-2013). Não vemos razão para concluir estarmos perante qualquer circunstância indiciadora da indesejabilidade. Na verdade, cabe ao M°P° na ação para oposição ã aquisição da nacionalidade portuguesa, o ónus da prova da existência dos factos impeditivos do direito [aquisição da nacionalidade] que o interessado quis fazer valer [arts. 342°, n° 2 e 343° do Cód. Civil], alegando necessariamente as circunstâncias indiciadoras da indesejabilidade, o que não foi feito (neste sentido Ac. TCA Sul n°04881/09 de 26-05-2011.). Por outro lado, os crimes pelos quais foi condenada já foram extintos por consideradas cumpridas as penas aplicadas. A R. está perfeitamente ressocializada, tendo "já pago" pelos crimes que cometeu.

4. Entende a R. que não basta que se verifiquem factos impeditivos da aquisição da nacionalidade, no caso em apreço, a prática de crimes puníveis com pena de prisão igual ou superior a três anos, carecendo de ser completados com outros fatores evidenciadores da indesejabilidade. Cabe ao M.P., requerente do processo de oposição, alegar e provar esses outros fatores evidenciadores, o que não ocorreu na ação por ele proposta. Pelo que, temos de concluir não estarem verificados todos os requisitos para que a ação, oposição, do M.P. proceda, devendo ser concedida a nacionalidade á recorrente.

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O recorrido contra-alegou, concluindo:

1. O art° 56°, n° 2, do atual Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado Decreto -Lei n° 237-A/2006, prevê: "2 - Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou da adoção: a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional; h) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igualou superior a três anos, segundo a lei portuguesa; c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro."

2. "In casu", constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.

3. Os fundamentos de oposição á aquisição da nacionalidade portuguesa devem ser integrados por factos que constituam circunstâncias indicadoras de indesejabilidade.

4. E a condenação do requerente da nacionalidade por prática de crime punível com pena de prisão de máximo igualou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa (atenta, diríamos nós, a gravidade, a preocupação e alarme consubstanciado na moldura penal aqui estabelecida pelo legislador nesta Lei da Nacionalidade), constitui fundamento justificativo da indesejabilidade do requerente como cidadão nacional.

5. Para a verificação da existência do fundamente de indesejabilidade, é perfeitamente irrelevante o seu cumprimento.

6. Nestes termos, a sentença recorrida não merece censura ou reparo, mantendo-a e negando provimento ao recurso.

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O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. Teremos presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida política e económica submetida ao Bem Comum e à suprema e igual Dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa Lei Fundamental e os princípios ou máximas estruturais vigentes, como os da Juridicidade, da Igualdade e da Proporcionalidade.

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QUESTÕES A RESOLVER

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

Temos, pois, de apreciar o seguinte contra a decisão do tribunal a quo:

-erro de julgamento de direito quanto à existência de um facto impeditivo da aquisição da nacionalidade portuguesa, por via das condenações criminais da interessada.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

1. A Requerida é natural de M…… G….., República Federativa do Brasil, onde nasceu em 28.4.1978 (cfr de fls. 12 a 13 e 44 dos autos que se dão por reproduzidas);

2. Desde Outubro de 2004 que a Requerida e o cidadão português M….. J….., nascido em 9.1.1955, na Covilhã, vivem em união de facto (cfr. doc. 1 de fls. 162 a 168 idem);

3. Situação que foi reconhecida judicialmente por sentença, de 25.1.2011, proferida nos autos, tramitados no 3° Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, sob o n° 91/10.6TBCTB (idem);

4. Em 3.5.2012, a Requerida declarou junto da Conservatória do Registo Civil de Castelo Branco que pretendia adquirir a nacionalidade portuguesa com base na união de facto referida em 2. (cfr. de fls. 10 a 11 ibidem);

5. Tendo para o efeito declarado, designadamente, que: "(...) a) Tem ligação efetiva à comunidade portuguesa. /1 b) Não foi condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa. // (...)" (idem);

6. Por Acórdão, de 16.11.2007, proferido no Processo Comum (Tribunal Coletivo) n° 2I03.5ZRCBR — 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Castelo Branco, a Requerida foi condenada pela prática de um crime de auxílio á imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 134°, n° 1, do Decreto-Lei n° 244/98, de 8 de Agosto, na redação do Decreto-Lei n° 4/2001, de 10 de Janeiro, e atualmente previsto e punível pelo artigo 134°-A, n° 1, na redação dada pelo Decreto-Lei n° 34/2003, de 25 de Fevereiro, na pena de um ano e seis meses de prisão, e, em concurso aparente, pela prática de um crime de angariação de mão-de-obra ilegal, previsto e punível pelo artigo 136°-A, n° 1, do Decreto-Lei n° 244/98, na redação do Decreto-Lei n° 4/2001, e atualmente previsto e punível pelo artigo 136°-A, n° 1, na redação dada pelo Decreto-Lei n° 34/2003, na pena de um ano e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico na pena de dois anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de dois anos (cfr. de fls. 49 a 87 ibidem);

7. Em 6.12.2007, o acórdão que antecede transitou em julgado (cfr de fls. 49 ibidem);

8. Por sentença, de 16.7.2008, proferida no Processo Comum (Tribunal Singular), n° 223/05.6PBCTB, no 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Castelo Branco, a Requerida foi condenada pela prática de um crime de ofensa á integridade física, previsto e punível pelo artigo 143°, n° 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, fixada em cada dia a quantia de €4,50 (cfr de fls. 97 a 105 ibidem);

9. Em 22.9.2008, a sentença que antecede transitou em julgado (cfr. de fls. 97 ibidem);

10. Na sentença referida no ponto 8. ficou provado que as agressões praticadas pela Requerida foram resultado de uma discussão (idem);

11. Com base nas referidas declarações foi organizado na Conservatória dos Registos Centrais o processo com o n° 17104/12, no qual se questionou a existência de facto impeditivo da pretendida aquisição (cfr. de fls. 133 a 134 ibidem);

12. Em 3.5.2013 foi instaurada a presente ação (cfr. de fls. 2 ibidem).

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

A ora recorrente, cidadã brasileira, a viver em Portugal e em união de facto desde 2004, judicialmente reconhecida em maio de 2012, com um cidadão português, considera que não bastava o facto de ter sido condenada pelos dois crimes atrás referidos, para se preencher o que se prevê na al. b) do artigo 9º da L.N.

A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, é fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (artigo 9º/b) da L.N.).

Como ficou provado, dos 3 crimes por que a recorrente já foi condenada, 2 são puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos.

Ora, o resultado da interpretação de tal regra legal contida no artigo 9º/b) da L.N., segundo o artigo 9º do C.C., é a chamada interpretação declarativa ou confirmatória, ou seja, há uma coincidência entre o significado literal e o espírito da lei resultante dos elementos não literais (histórico, de contexto jurídico vertical e horizontal, de consistência sistemática, e de teleologia atualista que considera os princípios subjacentes e as consequências) da interpretação.

No caso presente, a interpretação declarativa ou confirmatória é na modalidade média, ou seja, o significado literal da alínea b) citada corresponde ao significado mais comum das palavras (crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos), não havendo nenhuma razão não gramatical para um resultado interpretativo mais lato ou mais restrito do significado literal.

E muito menos haverá, logicamente, razão para um resultado interpretativo integrável no conceito de interpretação reconstrutiva restritiva, que é a tese sugerida pela teoria meramente doutrinária dos “factos indiciadores de indesejabilidade do estrangeiro interessado”, quanto a tal alínea b), num contexto que exigiria (i) ou que a pena efetiva tivesse sido igual ou superior a 3 anos, (ii) ou, ainda pior, que o juiz administrativo julgasse que assim deveria ser.

Se a lei e o legislador quisessem se referir à pena concreta, teria sido muito fácil dizê-lo, não devendo o intérprete supor que o legislador é irracional e que não soube se exprimir (artigo 9º/3 do C.C.).

O artigo 9º/b) da L.N. não contém, pois, uma norma jurídica que tolere ponderações ou sopesamentos por parte da Administração ou do juiz. Não há, assim, qualquer elemento que nos permita, sem arbítrio e sem violação do postulado da separação de poderes, encontrar naquela alínea um mero indício de algo a que se chame de indesejabilidade.

A regra jurídica assim inferida aqui por nós da fonte legal citada não viola nem o artigo 30º/4 da Constituição (Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos), nem o artigo 15º/2 da D.U.D.H./1948 (Ninguém pode ser arbitrariamente privado … do direito de mudar de nacionalidade).

Com efeito, (i) o fator impeditivo de aquisição da nacionalidade aqui em causa não é uma pena concreta, caso em que se poderia invocar o artigo 30º/4 cit., ao contrário da pena abstrata referida, que apela a preocupações gerais e abstratas do legislador de quem se admite nacionalizar em geral.

Por outro lado, (ii) o direito universal de mudar de nacionalidade não foi arbitrariamente posto aqui em causa, porque há uma lei que fixa os requisitos objetivos fiscalizáveis e os procedimentos equitativos para se obter ou não a mudança de nacionalidade.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

(Acórdão processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator)

Lisboa, 18-12-2014

Paulo H. Pereira Gouveia (relator)

Nuno Coutinho

Carlos Araújo