Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:934/13.2BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:07/13/2023
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:LICENCIAMENTO URBANO
NULIDADE
EFEITOS PUTATIVOS
Sumário:I – Situando-se o prédio em Área Agrícola Preferencial, cujos solos se integram em Reserva Agrícola Nacional (RAN), estava, naturalmente, proibida a edificação de novas construções, o que veio a determinar a controvertida decisão de declarar a nulidade dos atos objeto de impugnação.
II – O art.° 134.° do CPA em vigor aquando da prática dos atos declarados nulos, prescrevia, a propósito do regime da nulidade, que "o disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito".
Determina o atual art.° 162.°, n.º 3, do CPA que "o disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo."
III - A atribuição de efeitos putativos aos atos declarados nulos pressupõe que tivesse sido efetuado pedido nesse sentido, tanto mais que a ação declarativa não corresponde ao momento de atribuição de efeitos aos atos declarados nulos.
Efetivamente, perante a declaração de nulidade de um ato, cabe à Administração executar o julgado, tirando do mesmo as devidas ilações, as quais, sendo caso disso, poderão igualmente vir a ser sindicadas judicialmente.
IV - Não cabe à sentença anulatória o "reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo", devendo a "primeira palavra" nesta matéria ser dada à Administração no âmbito da execução do julgado, ficando a posição jurídica do administrado ou contrainteressado salvaguardada pelos meios administrativos e judiciais especificamente desenhados para a respetiva tutela.
V - Impor ao Tribunal a formulação da forma de reposição da legalidade urbanística subverteria todo o regime jurídico, coartando à Administração a possibilidade de adoção das medidas que entendesse adequadas, no âmbito da sua discricionariedade, o que se mostraria violador do princípio de separação de poderes.
VI – A um ato de licenciamento nulo não podem, tendencialmente, e como regra, ser atribuídos efeitos putativos automáticos, sob pena de se desvirtuar todo o regime do ordenamento do território e, no caso, no Parque Natural da Ria Formosa.
VII – Em conclusão, não cabe à sentença anulatória o reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
O Ministério Público, devidamente identificado nos autos, intentou ação administrativa especial contra o Município de Tavira, tendo como contrainteressados R....... e W......., tendente a “impugnar os seguintes atos administrativos, todos eles praticados no âmbito de um procedimento de licenciamento promovido pela contrainteressada para a realização de obras referentes a uma edificação num prédio sito em A......., freguesia da Luz, concelho de Tavira (processo de obras n.º .......0/2007):
(i) A decisão de aprovação do projeto de arquitetura, proferida pela Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira em 5 de Maio de 2007;
(ii) A decisão de deferimento do pedido de licenciamento, proferida pela Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira em 5 de Junho de 2007; e
(iii) A decisão de deferimento do pedido de emissão da “licença” de utilização, proferida pela Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira em 1 de Agosto de 2008.”
O Município inconformado com a Sentença proferida no TAF de Loulé que, em 28 de Novembro de 2022, julgou procedente a presente ação e declarou “a nulidade dos atos administrativos impugnados, consubstanciados nos despachos da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira datados de 2 de Maio de 2007, de 5 de Junho de 2007 e de 1 de Agosto de 2008, mediante os quais foi, respetivamente, aprovado o projeto de arquitetura, deferido o pedido de licenciamento e concedida a autorização de utilização, no âmbito do processo de obras n.º .......0/2007”, veio Recorrer para esta instância em 2 de fevereiro de 2023, concluindo:
“A. Vem o presente Recurso da douta sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, declarou a nulidade dos atos administrativos praticados no âmbito de um procedimento de licenciamento promovido pelos contrainteressados;
B. A decisão recorrida não retirou dos factos considerados provados as corretas consequências jurídicas no que concerne à verificação dos efeitos putativos dos atos nulos;
C. O Tribunal “a quo” entendeu que a ponderação de um eventual reconhecimento dos efeitos putativos de um ato administrativo nulo não tinha lugar nesta ação declarativa;
D. Mas esses efeitos putativos devem ser reconhecidos logo na ação declarativa que declara a nulidade dos atos;
E. Uma vez que os atos administrativos nulos se referem ao projeto de obras n.º .......0/2008, nomeadamente, à decisão de aprovação do projeto de arquitetura, à decisão de deferimento do pedido de licenciamento e à decisão de deferimento do pedido de emissão da “licença” de utilização, a consequência necessária será a demolição do edificado, ao abrigo do disposto pelo artigo 102.°, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de dezembro (R.J.U.E.);
F. Com o consequente facto dos contrainteressados ficarem desalojados;
G. Dispõe o n.º 3 do artigo 162.°, do CPA que “O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo.”;
H. Este artigo admite os denominados efeitos putativos, os quais permitem, devido a determinados princípios jurídicos e ao decurso do tempo, a atribuição de validade e efeitos jurídicos a atos administrativos nulos, pelo que, apesar do seu reconhecimento não determinar a procedência ou improcedência da ação, influencia o modo como a mesma irá decorrer;
I. Assim, e salvo o devido respeito, não permitir a verificação do reconhecimento dos efeitos putativos na presente ação implica uma clara violação do princípio da segurança jurídica, sobretudo tendo em conta que os contrainteressados não irão fruir de um mínimo de previsibilidade, certeza e estabilidade no decorrer da ação, algo que a atribuição de efeitos putativos poderia garantir, visto que obstaria à demolição da casa de habitação dos contrainteressados;
J. As atuações por parte da Administração Pública transmitiram a confiança aos contrainteressados de que todo este processo decorria de acordo com os trâmites legais, e os mesmos atuaram sempre de acordo com o que lhes havia sido comunicado, procedendo à construção da sua moradia no ano de 2008;
K. E agora, decorridos 14 anos sobre a finalização da construção da moradia, o Tribunal veio decidir pela nulidade dos atos administrativos impugnados sem que se pronuncie sobre os efeitos putativos da situação de facto entretanto criada;
L. O artigo 162.°, n.º 3, do C.P.A. admite os denominados “efeitos putativos”, o que significa que, apesar da existência de um ato administrativo nulo, o mesmo poderá, e deverá, produzir efeitos jurídicos de acordo com determinados princípios jurídico- constitucionais, nomeadamente, mas não apenas, relacionados com o decurso do tempo;
M. Os contrainteressados atuaram de acordo com a segurança jurídica transmitida e provocada pelos sucessivos deferimentos às suas pretensões, não lhes sendo imputada qualquer manifesta intencionalidade e/ou dolo aos contrainteressados;
N. Acresce que o n.º 2, do artigo 10.°, do CPA sustenta o princípio da boa-fé e o princípio da proteção da confiança, decorrente do princípio da segurança jurídica, todos pedras basilares do Estado de Direito Democrático, na medida em que a confiança suscitada na contraparte, pela atuação administrativa, tem de ser objeto de tutela jurídica;
O. De acordo com a jurisprudência dominante, devem decorrer, pelo menos, 10 anos desde os factos ocorridos e a declaração de nulidade dos atos, o que se verifica no caso sub judice;
P. Os contrainteressados não podem, nem devem, permanecer nesta situação de insegurança jurídica, na medida em que atuaram de acordo com a confiança transmitida pelo Município, pelo que se mostram cumpridos todos os requisitos para o reconhecimento de efeitos putativos aos atos impugnados, ao abrigo do disposto no artigo 162.°, n.º 3, do CPA;
Q. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou, pois, o disposto no artigo 162.°, n.º 3, do C.P.A.;
R. E violou ainda o n.º 2, do artigo 10.°, do C.P.A.;
S. Que impunham fossem reconhecidos os efeitos putativos dos atos declarados nulos logo na presente ação.
Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e, em consequência, serem reconhecidos os efeitos putativos aos atos declarados nulos, assim se fazendo JUSTIÇA!

Em 9 de fevereiro de 2023 veio o Ministério Púbico apresentar as suas Contra-alegações de Recurso, concluindo:
“1. Nos presentes autos foram impugnados, em 2013, os atos administrativos praticados no procedimento de licenciamento de obras no âmbito do processo n.º .......0/2007 da Câmara Municipal de Tavira, por os mesmos terem sido praticados sob a falsa convicção de que, naquele local, existia uma construção prévia a 1951; verificando- se que não pré-existia qualquer construção, e situando-se o prédio em Área Agrícola Preferencial, cujos solos se integram em Reserva Agrícola Nacional (RAN), onde é proibida a edificação de novas construções, aqueles atos padecem de nulidade - o que foi declarado pelo Tribunal e não impugnado no recurso apresentado, o qual se circunscreve ao pedido de atribuição de efeitos putativos àqueles atos.
2. O Tribunal considerou, e bem, que a presente ação tinha como objeto apenas a apreciação da legalidade dos atos que concretamente foram impugnados, cabendo à entidade Administrativa, na sequência de tal apreciação, adotar as medidas de reposição da legalidade urbanística que considerasse mais adequadas, retirando da sentença proferida as consequências devidas.
3. A opção do Tribunal, salvo melhor opinião, é a única possível por duas razões essenciais.
4. Em primeiro lugar, vigora entre nós o princípio do pedido (art.° 3.° do CPC): o tribunal está cingido ao que as partes tiverem alegado e tiverem concretamente pedido, sendo que não foi apresentado pedido de atribuição de efeitos aos atos nulos;
5. O pedido formulado pelos contrainteressados na contestação apresentada, de atribuição de efeitos putativos, não configura nem um pedido reconvencional (que não foi formulado), nem uma exceção perentória (únicos casos em que seria lícito ao Tribunal apreciar tal questão).
6. Na verdade, e sabendo-se que as exceções perentórias "consistem na invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito a que se arroga o autor" (art.° 89.°, n.º 3, do CPTA), fácil é de ver que a atribuição de efeitos aos atos nulos não configura uma: é que o efeito pretendido na ação foi o da declaração de nulidade dos atos administrativos impugnados, e a atribuição de efeitos putativos a tais atos não contende com essa declaração de nulidade: não extingue, não modifica nem impede que os atos sejam nulos: pelo contrário, pressupõe essa mesma nulidade.
7. Mesmo que assim não se considerasse, a ação declarativa não é o local ou não corresponde ao momento de atribuição de efeitos aos atos declarados nulos uma vez que, perante a declaração de nulidade de um ato, cabe à Administração executar o julgado (ou extrair as consequências devidas da sentença proferida).
8. Perante essa obrigação pode a Administração (neste caso, o Réu ora recorrente) proceder de diversas formas - quer aplicando as soluções previstas no art.° 102.° do RJUE, quer justificando a inexecução do julgado (art.°s 174.° e 163.° do CPTA), ou até mesmo atribuindo efeitos aos atos declarados nulos (art.° 162.°, n.º 3, do CPA).
9. Como se decidiu no Acórdão do STA proferido no processo 0649/13.1BALSB, datado de 24/09/2020, "Não cabe à sentença anulatória o "reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo", devendo a "primeira palavra" nesta matéria ser dada à Administração no âmbito da execução do julgado, ficando a posição jurídica do administrado (aqui contrainteressado) salvaguardada pelos meios administrativos e judiciais especificamente desenhados para a respetiva tutela."
10. Permitir a antecipação do Tribunal quanto à forma de repor a legalidade urbanística constituiria uma intromissão nos poderes da entidade administrativa (no caso, da autarquia), a quem cabe decidir, em primeira linha, a forma adequada de organizar o seu território e garantir a inexistência de situações ilegais; seria uma violação do princípio de separação de poderes: ao Tribunal cabe julgar o que lhe é apresentado, ao Município cabe gerir o seu próprio território e garantir o cumprimento das decisões dos tribunais.
11. Mesmo que assim não fosse, os factos provados não permitem, de forma alguma, que, neste caso, sejam atribuídos efeitos aos atos declarados nulos.
12. Assim, a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos aos atos nulos deve ser encarada com extrema cautela, nomeadamente quando estejam em causa questões ligadas ao urbanismo, no âmbito das quais a cominação de nulidade de alguns comportamentos deve- se à tentativa de acabar com situações de facto consumado, situações criadas ao arrepio das regras existentes;
13. Acresce que a atribuição dos efeitos putativos depende, entre outros fatores, do decurso do tempo e da boa-fé dos intervenientes;
14. No caso, decorreram apenas seis anos desde a data da prática dos factos e a interposição da ação, o que não corresponde a um período suficientemente lato para se concluir pelo decurso do tempo a que se reporta o preceito;
15. E os primitivos proprietários do terreno não atuaram, manifestamente, com boa-fé, uma vez que causaram o logro que levou à prática dos atos declarados nulos, pelo que a sua má-fé inquinou, desde logo, tais atos, e a sua manutenção na ordem jurídica constituiria um autêntico prémio a tal atuação.
16. Por outro lado, dever-se-á atender ao motivo que determinou a nulidade dos atos, sendo sempre relevante verificar se o motivo de tal nulidade se prende com a vinculação situacional dos solos ou com a violação de norma de plano municipal. Escreveu Clara Serra Coelho, in "O urbanismo, o ordenamento do território e os tribunais", Almedina: 2010, que "Tal como expõem Pedro Gonçalves e Fernanda Paula Oliveira, «há situações em que a nulidade está prevista para situações de vícios graves (onde nos parece que podem incluir-se as situações de nulidade ligadas à vinculação situacional dos solos ou à violação de normas de planos que estabelecem restrições decorrentes de standards urbanísticos); noutras situações, a consequência da nulidade parece mais uma qualificação legislativa contingente, que pode ser explicada por uma tática legislativa e não tanto pela gravidade intrínseca do vício em causa (é o caso de alguns vícios de carácter procedimental». Quanto às primeiras situações, os autores citados excluem, em regra, a possibilidade de jurisdicização consagrada no art.° 134.°, n.°3, do CPA, tenho em conta que estão em causa interesses públicos que o legislador entendeu prevalecerem em matéria urbanística, de entre os vários interesses em presença (...)"
17. Ou seja, se temos que ver com uma extrema cautela a atribuição dos chamados efeitos putativos a atos de licenciamento, tal atribuição deverá ser afastada quando em causa esteja o vínculo situacional dos prédios, mormente quando façam parte integrante de regimes de proteção como é, paradigmaticamente, o caso da RAN e do Parque Natural da Ria Formosa - outra razão pela qual não podem ser declarados no caso presente.
18. Os atos declarados nulos permitiram uma desvirtuação completa do ordenamento do território e, neste caso, da preservação de solos aptos para outros fins (no caso, a agricultura e Parque Natural da Ria Formosa) que não, em princípio, a construção de residências.
19. Como lapidarmente se escreveu no Acórdão do STA proferido no processo 0846/09.4BELLE-A, datado de 04/04/2019, Nos casos em que a norma infringida está ao serviço de um direito ou interesse particularmente relevante, e cuja infração, por isso mesmo, é sancionada com a nulidade, são os próprios fundamentos do sistema que são postos em crise por esse vício absoluto, de tal modo que a atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, ainda que colaterais, ao ato nulo, representaria, por isso, um entorse intolerável na estrutura normativa do Estado de Direito."
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado improcedente e ser-lhe negado provimento, confirmando-se a sentença recorrida, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”

Em 28 de Março de 2023 foi proferido despacho de Admissão do Recurso.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa verificar recursivamente as questões suscitadas, nomeadamente, aplicabilidade de “efeitos putativos”, aos atos declarados nulos, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade como provada:
“a) Em 26 de Março de 2007, R....... pediu a concessão de licença para a realização de “obras de alteração” no prédio sito em A......., freguesia da Luz, concelho de Tavira, mediante requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Tavira, que deu origem ao processo n.º .......0/2007 (cfr. documento n.º 7 da petição inicial e fls. 1 a 89 do processo administrativo n.º .......0/2007);
b) Nessa data, o referido prédio encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º ….. da freguesia da Luz, como prédio misto, com a área total de 2 120 m2, sendo a área coberta de 123,50 m2, com aquisição registada a favor de R......., casada com W......., e inscrito na matriz urbana sob o artigo …… e na matriz rústica sob o artigo ……(cfr. fls. 50 e 51 do processo administrativo);
c) O pedido de licenciamento foi instruído, entre outros, com os seguintes documentos:
i. Certidão de registo predial, da qual constava que o prédio tinha a área coberta de 123,50 m2 (Cfr. fls. 50 e 51 do processo administrativo);
ii. Cópia do comprovativo da apresentação da declaração para inscrição ou atualização de prédios urbanos na matriz (modelo 1 do IMI), datada de 3 de Março de 2016, apresentada em nome da cabeça-de-casal da herança de J......., da qual constava como declarado que a área de implantação e a área bruta de construção do prédio era de 123,50 m2, e cópia de um requerimento de retificação da mesma no sentido de nela ficar a constar que o prédio tinha mais de 80 anos (Cfr. fls. 45 a 49 do processo administrativo);
iii. Planta de implantação e planta do edifício (pre)existente, com representação de uma área coberta de 48,00 m2 e uma área descoberta (“pátio impermeabilizado”) de 75,50 m2 (Cfr. fls. 16 e 17 do processo administrativo);
iv. Fotografias do edifício (pre)existente (cfr. fls. 20 e 21 do processo administrativo);
d) De acordo com o projeto de arquitetura apresentado, e concretamente com as plantas apresentadas e a respetiva memória descritiva, as obras que a contrainteressada pretendia realizar consistiriam na “demolição total da construção existente, face à falta de salubridade e condições da habitabilidade que atualmente esta apresenta” e na realização (ou substituição) por “uma nova construção sólida e coerente, agora de um só piso”, com uma “área encerrada” destinada a habitação de 109,27 m2 e uma área de pátios cobertos de 14,23 m2, no total de 123,50 m2, e com um volume superior ao da edificação (pre)existente (cfr. documento n.º 7 da petição inicial e fls. 1 a 36 do processo administrativo);
e) Nesta data, o solo ocupado por este prédio integrava-se, de acordo com o Plano Diretor Municipal de Tavira, na categoria de “espaços agrícolas”, em “áreas agrícolas preferenciais”, e estava incluído em área da RAN e do Parque Natural da Ria Formosa (cfr. fls. 18 e 57 do processo administrativo);
f) O Parque Natural da Ria Formosa emitiu parecer favorável (cfr. documento n.º 9 da petição inicial e fls. 56 do processo administrativo);
g) Não foi promovida a consulta à comissão regional da reserva agrícola do Algarve, nem previamente solicitada a emissão de parecer junto desta entidade;
h) Em 30 de Abril de 2007, foi elaborada uma informação técnica (n.º 2032/2007/DGU) pelos serviços da Câmara Municipal de Tavira, nos seguintes termos:
«(…) INFORMAÇÃO TÉCNICA:
Pretende o requerente construir uma moradia unifamiliar, após demolição do existente.
ANALISADA A PRETENSÃO, informam os serviços o seguinte:
1. Trata-se de um Prédio Misto com uma área total de 2 120.00m2, conforme registo apresentado;
- Corresponde à parte Urbana a área coberta de 123.50m2;
2. Consultada a Planta de ordenamento, Condicionantes, RAN e REN que integram o Plano Diretor Municipal, estamos perante a classe de espaços — ÁREA AGRÍCOLA PREFERENCIAL, cujos solos se integram no âmbito da RAN e em área de Jurisdição do PNRF;
3. O processo tem como antecedente o proc. N.º 554/2006, onde foi manifestada a intenção de indeferir face ao parecer desfavorável emitido pelo PNRF;
4. A proposta agora apresentada visa dar cumprimento ao parecer anteriormente emitido pelo PNRF;
5. Assim, o projeto de arquitetura apresentado refere a construção de uma moradia unifamiliar, implantada sobre a construção existente, de tipologia T2 [...], com uma área de implantação/coberta/construção de 123.50,2;
6. Em 27/04/2007, foi emitido parecer favorável por parte do PNRF, o qual deverá ser remetido à requerente para conhecimento;
8. O projeto de arquitetura cumpre o RGEU, RMUE e Segurança Contra Risco de Incêndio.
CONCLUSÃO
Face ao exposto, considera-se que o projeto de arquitetura tal como apresentado reúne condições para emissão de informação favorável. (…)»
(cfr. documento n.0 8 da petição inicial e fls. 57 do processo administrativo);
i) Em 2 de Maio de 2007, por despacho da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira, após parecer emitido pela Diretora do Departamento de Urbanismo, foi aprovado o projeto de arquitetura (cfr. documento n.º 8 da petição inicial e fls. 58 do processo administrativo);
j) Em 4 de Junho de 2007, foram apresentados os respetivos projetos de especialidades (cfr. documento n.º 10 da petição inicial);
k) Em 5 de Junho de 2007, por despacho da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira, foi deferido o pedido de licenciamento (cfr. documento n.º 10 da petição inicial);
l) Em 8 de Junho de 2007, foi emitido o alvará de licença de obras de “alteração e ampliação” de moradia (“construção de moradia c/ demolição do existente”), com o n.º 226/2007 (cfr. documento n.º 11 da petição inicial fls. 267 do processo administrativo);
m) Em 28 de Julho de 2008, foi pedida a emissão de “licença” de utilização (cfr. fls. 269 do processo administrativo);
n) Em 1 de Agosto de 2008, por despacho da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Tavira, foi deferido o pedido e concedida a autorização de utilização do edifício para habitação (cfr. documento n.º 12 da petição inicial e fls. 269v e 271 do processo administrativo);
o) Em 7 de Agosto de 2008, foi emitido o respetivo alvará de autorização de utilização, com o n.º 246/2008 (cfr. documento n.º 12 da petição inicial e fls. 271 do processo administrativo);
p) Em 1971, foi inscrito na matriz urbana, sob o artigo……, um prédio descrito como “prédio urbano térreo, com um compartimento, destinado a recolha de alfaias agrícolas”, com a área de 17,50 m2, em nome de J....... (cfr. documento n.º 2 da petição inicial e certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Tavira, remetida com o ofício registado no SITAF com o n.º 111032, em 6.10.2014);
q) Em 3 de Março de 2006, N......., na qualidade de cabeça-de-casal da herança de J......., apresentou uma declaração para inscrição ou atualização de prédios urbanos na matriz (modelo 1 do IMI) desse prédio inscrito na matriz sob o artigo……, por motivo de “prédio melhorado/modificado”, indicando nela que o prédio se destinava a habitação, tinha uma área de implantação e uma área bruta de construção de 123,50 m2, e mais de 50 anos de idade (cfr. documento n.º 2 da petição inicial e certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Tavira, remetida com o ofício registado no SITAF com o n.º 111032, em 6.10.2014);
r) Com essa declaração, foi entregue uma planta do edifício, na qual constava representado que o mesmo tinha uma “área bruta encerrada” de 48,00 m2 e uma “área impermeabilizada” (com pavimento) de 75,50 m2 (cfr. documento n.º 2 da petição inicial e certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Tavira, remetida com o ofício registado no SITAF com o n.º 111032, em 6.10.2014);
s) Em 21 de Março de 2006, N......., na qualidade de cabeça-de-casal da herança de J......., requereu a retificação da declaração modelo 1 do IMI, por modo a que dela passasse a constar que o prédio tinha mais de 80 anos, juntando, para o efeito, uma declaração emitida pelo Presidente da Junta de Freguesia da Luz, intitulada “atestado”, datada de 16 de Março de 2006, na qual consta que N....... “é possuidora de dois prédios urbanos térreos localizados na A......., registados com os artigos …. E….., tendo sido estes prédios e as zonas impermeabilizadas construídas em data anterior a 1926, conforme declaração de I....... e E......., ambos residentes nesta freguesia” (cfr. documento n.º 2 da petição inicial e certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Tavira, remetida com o ofício registado no SITAF com o n.º 111032, em 6.10.2014);
t) Em 4 de Abril de 2006, foi aberta no registo predial a descrição n.º……, correspondente ao prédio misto, sito em A......., composto de “pomar de citrinos e cultura e edifício térreo com 2 compartimentos, destinado a habitação, com a s.c: de 123,50 m2, Área total: 2120 m2”, inscrito na matriz rústica sob o artigo …… e na matriz urbana sob o artigo……, e registada a aquisição do mesmo, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de N....... e de S......., por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de J....... (cfr. documento n.º 1 da petição inicial);
u) Em 6 de Abril de 2006, foi feita a avaliação pelo perito avaliador do serviço de finanças, tendo ficado a constar que o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo …… tinha a área total de 123,50 m2 e que a área de implantação do edifício (e a área bruta de construção) era de 48,00 m2 (cfr. documento n.º 2 da petição inicial);
v) Em 21 de Junho de 2006, N....... pediu, mediante requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Tavira, a emissão de “certidão que comprove que o prédio urbano sito em A......., freguesia da Luz, deste município, inscrito na matriz sob o artigo….., foi construído antes de 1951, data em que não era de exigir licença de utilização” (cfr. documento n.º 3 da petição inicial);
w) Em 3 de Julho de 2006, foi elaborada uma informação por fiscal municipal do serviço de fiscalização da Câmara Municipal de Tavira, na qual consta, entre o mais, que “em deslocação ao local e colhido informações sobre o prédio urbano descrito na matriz sob o n.º ....... da freguesia da Luz de Tavira, conforme fotocópia da Caderneta Predial Urbana e descrição no Registo Predial, prédio construído antes de 1951, tendo sofrido obras de recuperação, foi utilizado ultimamente como habitação, conforme se pode observar na foto impressa” (cfr. documento n.º 4 da petição inicial);
x) Em 3 de Julho de 2006, por despacho exarado sob essa informação, foi determinado que se solicitasse informação à junta de freguesia sobre se a construção era anterior a 1951 e, no dia seguinte, foi junta ao procedimento declaração emitida pelo Presidente da Junta de Freguesia da Luz, intitulada “atestado”, datada de 16 de Março de 2006, na qual consta que N....... “é possuidora de dois prédios urbanos térreos localizados na A......., registados com os artigos ....... e ......., tendo sido estes prédios e as zonas impermeabilizadas construídas em data anterior a 1926, conforme declaração de I....... e E......., ambos residentes nesta freguesia” (cfr. documentos n.ºs 4 e 5 juntos com a petição inicial);
y) Em 5 de Julho de 2006, na sequência do despacho proferido pela Vice- Presidente da Câmara Municipal de Tavira, foi emitida uma certidão pelo Chefe de Secção de Obras, da qual consta que, “de conformidade com a informação dos Serviços de Fiscalização”, “o prédio urbano, sito em A......., freguesia da Luz, neste Município, inscrito na respetiva matriz sob o artigo………, foi construído anteriormente a mil novecentos e cinquenta e um, em data que não é possível precisar» (cfr. documento n.º 6 da petição inicial);
z) Em 22 de Agosto de 2006, foi celebrada escritura pública de compra e venda, mediante a qual N....... e S....... e marido L....... declararam vender a R......., representada por procuradora, o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º …. e inscrito na matriz rústica sob o artigo …… e na matriz urbana sob o artigo ......., acima indicado na alínea t) (cfr. documento junto com a contestação dos contrainteressados);
aa) Em 30 de Agosto de 2006, foi registada a aquisição do referido prédio a favor de R......., casada com W......., por compra (cfr. documento n.º 1 da petição inicial);
bb) Em 21 de Agosto de 2008, foi apresentada em nome de R......., na qualidade de proprietária, uma declaração modelo 1 do IMI relativa ao prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo ......., por motivo de “prédio melhorado/modificado”, que veio a dar origem ao artigo …… da freguesia da Luz (atualmente artigo …… da União das Freguesias da Luz de Tavira e Santo Estevão) (cfr. fls. 11 a 15 da certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Tavira, remetida com o ofício registado no SITAF com o n.º 111032, em 6.10.2014);
cc) Em 1995, não existia qualquer edifício ou construção no local onde veio a ser erigida pelos contrainteressados a edificação (moradia) cujas obras foram objeto da licença impugnada;
dd) A edificação previamente existente no local onde veio a ser implantada a moradia que foi licenciada — representada nas fotografias que instruíram o pedido de licenciamento [cfr. subalínea iv) da alínea c)] e, bem assim, o pedido de emissão de “certidão” comprovativa de que a construção era anterior a 1951 e a informação prestada pelo fiscal municipal relativamente à mesma [cfr. alíneas w) e x)] -, foi construída no ano de 2005 ou de 2006, sem que tenha sido pedida ou emitida licença administrativa.”

IV – Do Direito
Desde logo, e pela sua relevância para a ponderação e decisão da questão aqui predominantemente controvertida, e por forma a permitir uma mais eficaz visualização daquilo que se discorreu em 1ª instância, infra se transcreverá o essencial do discurso fundamentador da decisão recorrida.
“(…)
3.2. Da nulidade dos atos impugnados
Do acima exposto resulta, pois, que a licença emitida em 5 de Junho de 2007, por ter sido concedida em violação do disposto no PDM de Tavira, é nula, por força do disposto na alínea a) do artigo 68.° do RJUE e, bem assim, no artigo 103.° do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) então aplicável, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro.
E é igualmente nula, como se verifica, por não ter sido precedida de consulta à comissão regional da reserva agrícola, cujo parecer (favorável) era legalmente exigível, nos termos e por efeito do disposto na alínea c) do artigo 68.° do RJUE e no artigo 34.° do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho.
Padece também de nulidade a decisão que, em 2 de Maio de 2007, aprovou o projeto de arquitetura — cuja apreciação convoca a verificação, final e definitiva, da conformidade da pretensão urbanística com os instrumentos de gestão territorial e com as restrições de utilidade pública que lhe são aplicáveis, nos termos do artigo 20.°, n.º 1, do RJUE — conforme resulta do artigo 103.° do RJIGT e do artigo 34.° do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho e, por identidade de razão com o regime aplicável à licença, do artigo 68.°, alíneas a) e c), do RJUE.
E é nulo, outrossim e por fim, o ato mediante o qual, em 1 de Agosto de 2008, foi concedida a autorização de utilização do edifício, por ser consequente de uma licença que, sendo nula, é insuscetível de produzir quaisquer efeitos jurídicos, por força (e por maioria de razão) do disposto no artigo 133.°, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, aplicável na data em que o ato foi praticado), sem que, de resto, os contrainteressados possam beneficiar da exceção prevista neste preceito, concedida apenas aos titulares (terceiros) de um “interesse legítimo” alheio ao litígio sobre o ato principal.
3.3. Dos “efeitos putativos”
1 - Estabelecia o artigo 134.° do Código do Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro), na data em que os atos impugnados foram praticados, no n.º 1, que o ato nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade, acrescentando no n.º 2 que a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal.
Prescrevia, porém, no n.º 3, que o disposto nos números anteriores não prejudicava a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito: efeitos estes cuja atribuição, a ter lugar, como ora consta (clarificado) no n.º 3 do artigo 162.° do atual Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, deve ter feita de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo.
Esta norma, que integra o regime geral da nulidade — e cuja aplicação, aliás, se encontra hoje expressamente salvaguardada na parte inicial do artigo 68.° do RJUE, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9 de Setembro — funcionando como “válvula de escape” do mesmo, permite (ou impõe), quando assim o reclamem os princípios gerais e os valores fundamentais de direito relevantes em face das situações consideradas, ponderar a atribuição de efeitos jurídicos às operações urbanísticas que, apesar de realizadas ao abrigo de atos de gestão urbanística nulos, se consolidaram no plano dos factos, tão simplesmente porque o tempo entretanto decorreu.
2 - Ora, no caso dos autos, invocam os contrainteressados, com referência à data em que apresentaram a respetiva contestação, que haviam decorrido já quase seis anos desde a concessão da autorização de utilização do edifício em causa, que dizem constituir a sua habitação, “onde nela a sua família tem sede”, e que neles foi criada “a legítima expectativa da boa situação jurídica do prédio e do licenciamento da construção e do seu uso”.
E sustentam, alicerçados com tais fundamentos, que, ainda que seja declarada a nulidade dos atos impugnados, deve o tribunal “ponderar os valores in casu em oposição, na medida em que a declaração de nulidade, e sobretudo as suas consequências, constituiria urna violência desproporcional para os contrainteressados e uma violação aos princípios da segurança jurídica e da confiança”.
Pretenderão os contrainteressados, pois, como se deduz da sua alegação, beneficiar do (anteriormente) disposto no artigo 134.°, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo (que corresponde, atualmente, ao artigo 162.°, n.º 3, do novo Código do Procedimento Administrativo), e concretamente da possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto que, entretanto, se consolidou ao abrigo dos atos ora declarado nulos: e com tanto, evitar a destruição dos efeitos materiais que se produziram no plano dos factos com base nesses mesmos atos, obstando, em suma, à reposição da legalidade urbanística, e nomeadamente à demolição da edificação construída ao abrigo da licença ora declarada nula e, bem assim, à cessação da utilização que dela tem sido feita com base na autorização concedida, também ela nula.
No entanto, a ponderação tendente ao eventual reconhecimento dos “efeitos putativos” dos atos nulos não pode (nem deve) ter lugar nesta ação declarativa, na qual, aliás, não foi sequer peticionada (em reconvenção), e cujo objeto se cinge à fiscalização da legalidade dos atos administrativos impugnados.
Com efeito, a eventual atribuição de determinados efeitos jurídicos à situação de facto ora posta em juízo — no caso, permissivos ou autorizativos, passíveis de legitimar juridicamente a manutenção da situação de facto, e designadamente a não demolição da edificação e a manutenção da sua utilização — nunca seria impeditiva da procedência da presente ação e do pedido que nela foi deduzido: isto porque o eventual reconhecimento de tais efeitos nunca obstaria, como se exceção perentória fosse (que não é), à declaração da nulidade dos atos administrativos impugnados, cuja sanação ou convalidação é legalmente impossível e que, como tal, nunca poderiam manter-se na ordem jurídica como se válidos fossem.
O eventual reconhecimento de tais efeitos, que envolve necessariamente a formulação de um juízo valorativo e necessariamente casuístico, convocando a aplicação dos princípios gerais de direito e a ponderação dos interesses em presença, deverá, sim, ter lugar, no momento em que se imponha a execução da presente sentença: desde logo e em primeira linha pela entidade demandada, se esta assim o entender, e eventualmente pelo tribunal, caso seja requerida ou contestada a sua execução.
Mas em suma, e no que ora interessa, não pode obter-se nesta ação declarativa, que tem exclusivamente por objeto um pedido de declaração de nulidade dos atos administrativos (que não o de condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado), o reconhecimento da atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto concretamente posta em juízo, com vista à sua “jurisdicização” ou “legitimação jurídica”, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 134.° do anterior Código do Procedimento Administrativo e, atualmente, no n.º 3 do artigo 162.° do novo Código do Procedimento Administrativo.
E porque a (alegada) existência de uma situação de facto suficientemente constituída ou consolidada a que eventualmente possam (ou devam) ser reconhecidos efeitos putativos não tem reflexo algum no pedido (exclusivamente) impugnatório deduzido, nem releva como condição impeditiva ou extintiva da procedência do mesmo, não pode o tribunal senão declarar, sem mais, a nulidade dos atos impugnados.”

Vejamos:
Veio o Município de Tavira recorrer da sentença proferida em 1ª Instância, no que concerne à não atribuição de efeitos aos atos declarados nulos, por ter sido entendido não ser este o momento para a ponderação da aplicação do instituto previsto no art.° 134.°, n.º 3 CPA, (atual Artº 162.°, n.º 3) do CPA).

Limitando-se o recurso ao referido segmento decisório, mostra-se, por natureza, consolidado o demais decidido, nomeadamente a decisão de declaração de nulidade dos atos objeto de impugnação.

Em qualquer caso, verifiquemos o suscitado:
Foram na presente ação impugnados os atos praticados no procedimento de licenciamento de obras referentes à edificação do prédio sito em A......., freguesia da Luz, concelho de Tavira (processo de obras n.º .......0/2007), mormente a decisão de aprovação do projeto de arquitetura proferida em 2 de Maio de 2007; a decisão de deferimento do pedido de licenciamento de 5 de Junho de 2007; e a decisão de deferimento do pedido de emissão da "licença" de utilização, proferida em 1 de Agosto de 2008.

A impugnação de tais atos resultou do facto de ter sido entendido que os mesmos padeciam de nulidade, uma vez que terão sido proferidos na errada convicção de que naquele local existia primitivamente um imóvel licenciado, o que veio a merecer acolhimento pela decisão de 1ª Instância.

Situando-se o prédio em Área Agrícola Preferencial, cujos solos se integram em Reserva Agrícola Nacional (RAN), estava, naturalmente, proibida a edificação de novas construções, o que veio a determinar a controvertida decisão de declarar a nulidade dos atos objeto de impugnação.

Da atribuição de “efeitos putativos”
O Tribunal a quo considerou que a presente ação tinha como objeto apenas a apreciação da legalidade dos atos objeto de impugnação, cabendo à entidade Administrativa, na sequência de tal apreciação, adotar as medidas de reposição da legalidade urbanística que considerasse mais adequadas, retirando da sentença proferida as devidas ilações, entendimento que aqui se acolhe.

Efetivamente, nos termos do n.º 1 do art.° 3.° do Código de Processo Civil, "O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição."

Na situação em presença nenhuma das partes apresentou pedido de atribuição de efeitos aos atos nulos, sendo que o facto de, na contestação apresentada, os contrainteressados terem referido pretender que fossem atribuídos tais efeitos não configura um verdadeiro pedido.

Como se refere na sentença recorrida, tal pedido não configura um pedido reconvencional, nem uma exceção perentória, as quais correspondem a exceções de direito substantivo e "consistem na invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito a que se arroga o autor" (art.° 89.°, n.º 3, do CPTA).

Incontornavelmente, resulta da petição inicial, que o efeito pretendido foi o da declaração de nulidade dos atos administrativos objeto de impugnação.

Com efeito, a atribuição de efeitos a tais atos não contende com a declaração de nulidade.

Como reiteradamente foi já afirmado, a ação visa singelamente a declaração de nulidade dos atos impugnados, sendo que nada obsta a que em momento ulterior se possa vir a atribuir efeitos aos atos declarados nulos, uma vez preenchidos os correspondentes pressupostos.

Acompanhamos, pois, o entendimento vertido na Sentença Recorrida de acordo com a qual a atribuição de efeitos putativos aos atos declarados nulos pressupõe que tivesse sido efetuado pedido nesse sentido, tanto mais que a ação declarativa não corresponde ao momento de atribuição de efeitos aos atos declarados nulos.

Efetivamente, perante a declaração de nulidade de um ato, cabe à Administração executar o julgado, tirando do mesmo as devidas ilações, as quais, sendo caso disso, poderão igualmente vir a ser sindicadas judicialmente.

Na realidade, refere-se no Artº 102º do RJUE - "reposição da legalidade urbanística":
1 - Os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística quando sejam realizadas operações urbanísticas:
c) Ao abrigo de ato administrativo de controlo prévio revogado ou declarado nulo;
(...)
2 - As medidas a que se refere o número anterior podem consistir:
a) No embargo de obras ou de trabalhos de remodelação de terrenos;
b) Na suspensão administrativa da eficácia de ato de controlo prévio;
c) Na determinação da realização de trabalhos de correção ou alteração, sempre que possível;
d) Na legalização das operações urbanísticas;
e) Na determinação da demolição total ou parcial de obras;
f) Na reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos;
g) Na determinação da cessação da utilização de edifícios ou suas frações autónomas.

Sendo estas as operações urbanísticas suscetíveis de serem adotadas, pode a entidade administrativa no âmbito da sua discricionariedade, preconizar as soluções processuais que entenda adequadas, como seja a inexecução do julgado (art.°s 174.° e 163.° do CPTA) ou outras soluções materiais, como seja a atribuição de efeitos aos atos declarados nulos (art.° 162.°, n.º 3, do CPA).

Cabe pois, sendo caso disso, à Administração, nomeadamente, declarar existência de causa legítima de inexecução; promover a demolição do edificado, ou atribuindo efeitos aos atos declarados nulos.

Em qualquer caso, a execução do julgado é originariamente da iniciativa da entidade administrativa.

Como se decidiu no Acórdão do STA, trazido pelo Ministério Público, proferido no processo 0649/13.1BALSB, de 24/09/2020, "Não cabe à sentença anulatória o "reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo", devendo a "primeira palavra" nesta matéria ser dada à Administração no âmbito da execução do julgado, ficando a posição jurídica do administrado (aqui contrainteressado) salvaguardada pelos meios administrativos e judiciais especificamente desenhados para a respetiva tutela."

Impor ao Tribunal a formulação da forma de reposição da legalidade urbanística subverteria todo o regime jurídico, coartando à Administração a possibilidade de adoção das medidas que entendesse adequadas, no âmbito da sua discricionariedade, o que se mostraria violador do princípio de separação de poderes.

Da possibilidade de atribuição em concreto dos “efeitos putativos”
Sem prejuízo do referido supra, e para que não possam subsistir quaisquer dúvidas, vejamos, ainda assim, se se mostraria adequado conferir, desde já, efeitos putativos aos atos declarados nulos.

Entende o Município que os atos impugnados foram praticados há 6 anos aquando da interposição da ação, e que, considerando os princípios da proteção da confiança e da boa-fé, aos mesmos deveriam ser atribuídos efeitos putativos, não obstante a sua declarada nulidade.

O art.° 134.° do CPA em vigor aquando da prática dos atos declarados nulos, prescrevia, a propósito do regime da nulidade, que "o disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito".

Determina o atual art.° 162.°, n.º 3, do CPA que "o disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo."

O referido regime deve, em qualquer caso, ser adotado a titulo meramente excecional, e desde que tenha decorrido um período dilatado de tempo e verificada que seja a boa-fé dos destinatários dos referidos atos.

Como afirmou Clara Serra Coelho, in "O urbanismo, o ordenamento do território e os tribunais", Almedina: 2010, "Tal como expõem Pedro Gonçalves e Fernanda Paula Oliveira, «há situações em que a nulidade está prevista para situações de vícios graves (onde nos parece que podem incluir-se as situações de nulidade ligadas à vinculação situacional dos solos ou à violação de normas de planos que estabelecem restrições decorrentes de standards urbanísticos); noutras situações, a consequência da nulidade parece mais uma qualificação legislativa contingente, que pode ser explicada por uma tática legislativa e não tanto pela gravidade intrínseca do vício em causa (é o caso de alguns vícios de carácter procedimental». Quanto às primeiras situações, os autores citados excluem, em regra, a possibilidade de jurisdicização consagrada no art.° 134.°, n.º 3, do CPA, tenho em conta que estão em causa interesses públicos que o legislador entendeu prevalecerem em matéria urbanística, de entre os vários interesses em presença”.

Importa pois adotar o referido regime de atribuição de efeitos putativos a atos de licenciamento declarados nulos, com parcimónia e a titulo meramente excecional, o que não abrangerá certamente situações como as presentes em que estão em causa licenciamentos edificativos em zona RAN e no Parque Natural da Ria Formosa.

Como a este propósito se sustentou no acórdão do STA de 09.12.2009 (Proc. n.º 0100/08) “… os efeitos putativos considerados nesse preceito são, apenas, «os que resultam da efetivação prática dos efeitos do ato nulo por um período prolongado de tempo» (M. Esteves de Oliveira/P. Costa Gonçalves/J. Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª ed. 1997, 655). (…) Assim, e como tem acentuado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, em consonância, aliás, com a doutrina, deve tal possibilidade ser ponderada com extrema cautela, (…) e que a eventual admissão destes, além de corresponder à necessidade de estabilidade das relações jurídico-sociais, deve estar sempre ligada à ideia de prossecução do interesse público …. (…) Nesta perspetiva, e no sentido de que …, não deve, no caso dos autos, reconhecer-se prevalência às invocadas expectativas de estabilidade da situação de facto existente, importa notar que, como salienta o acórdão de 16.12.03 (R.º 414/03), «a razão de ser da lei cominar com nulidade as violações dos instrumentos de ordenamento territorial é precisamente para evitar a prática do ‘facto consumado’, que os prazos da impugnação de atos anuláveis não acautela plenamente». Daí que, como também regista o mesmo aresto, os casos em que ocorrem tais violações nunca tenham sido vistos nem pela doutrina nem pela jurisprudência como revestindo a especialidade que justifica, designadamente, no caso dos referidos ‘agentes putativos’, o reconhecimento da relevância jurídica de situações de facto, criadas e duradouramente mantidas com base em atos nulos. (…) E, de qualquer modo, na situação a que respeitam os autos, o tempo decorrido desde a tomada das deliberações em causa e a interposição do recurso contencioso, de 1998/1999 a 2003, não se afigura bastante para criar uma situação de facto merecedora de tutela jurídica, à luz da invocada disposição do art. 134.º, n.º 3, do CPA …”.

Igualmente se escreveu no Acórdão deste TCAS no Processo n.º 11324/14, de 03/11/2016, que "não deve, no caso dos autos, reconhecer-se prevalência às invocadas expectativas de estabilidade da situação de facto existente pois a razão de ser da lei cominar com nulidade as violações dos instrumentos de ordenamento territorial é precisamente para evitar a prática do "facto consumado", que os prazos da impugnação de atos anuláveis não acautela plenamente» pelo que, quando ocorrem tais violações, não podem ser encaradas como revestindo a especialidade que justifica, designadamente, no caso dos referidos "agentes putativos", o reconhecimento da relevância jurídica de situações de facto, criadas e duradouramente mantidas com base em atos nulos."

Igualmente se escreveu no Acórdão do STA proferido no processo 014/12.8BELLE de 08/10/2018, que "o certo é que no âmbito do licenciamento urbanístico, não há, por regra, lugar ao reconhecimento da relevância jurídica de situações de facto, criadas e duradouramente mantidas com base em atos nulos, sendo que os efeitos putativos têm sido tradicionalmente reconhecidos na jurisprudência, em especial, nas relações laborais entre a administração e os seus funcionários. Mas, em matéria de urbanismo, como é sabido, os interesses de ordem pública prevalecem sobre as expectativas individuais, podendo o "jus aedifícandi", ceder por razões relacionadas com a proteção de integridade geofísica, ambiental ou paisagística da zona em questão (cfr. Acs. TCA-Sul de 27.09.2013 e de 08/05/2014, proferido no processo 10124/13, bem como Fernando Alves Correia, "Manual de Direito do Urbanismo", Almedina, Vol. III, p.172 e ss)."

Decorre de tudo quanto se expendeu que a um ato de licenciamento nulo não podem, tendencialmente, e como regra, ser atribuídos efeitos putativos, sob pena de se desvirtuar todo o regime do ordenamento do território e, no caso, no Parque Natural da Ria Formosa.

Como se escreveu ainda no Acórdão do STA proferido no processo 0846/09.4BELLE-A, de 04/04/2019, "Nos casos em que a norma infringida está ao serviço de um direito ou interesse particularmente relevante, e cuja infração, por isso mesmo, é sancionada com a nulidade, são os próprios fundamentos do sistema que são postos em crise por esse vício absoluto, de tal modo que a atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, ainda que colaterais, ao ato nulo, representaria, por isso, um entorse intolerável na estrutura normativa do Estado de Direito."

É certo que não decorre dos factos que os contrainteressados estivessem de má-fé e que soubessem que o licenciamento se mostrava ilícito. No entanto, a atribuição de efeitos aos atos que foram declarados nulos na sequência do apuramento da conduta ilegal dos primitivos proprietários seria viabilizar uma situação de impunidade permissiva.

O normativo em questão, ao permitir a atribuição de efeitos aos atos nulos, se é certo que pressupõe a existência de uma situação de boa-fé dos atuais interessados, não pode deixar de acautelar a situação decorrente da atuação dos originários titulares que terão pretendido induzir em erro as Entidades Administrativas licenciadoras, o que determinaria que a atribuição de efeitos putativos iria beneficiar reflexamente os originários infratores.

Como se escreveu no Acórdão do STA de 18/06/2020, proferido no processo n.º 01701/10.0BEBRG, o reconhecimento dos efeitos putativos "feito de harmonia com os princípios gerais de direito [nomeadamente, da proteção da confiança/segurança jurídica, da boa fé, da proporcionalidade, e da prossecução do interesse público (abarcando a vertente da boa administração)], encontra-se ligado ou conexionado com a existência de um período relativamente alargado de tempo, surgindo este como um elemento relevante para o juízo de avaliação e de ponderação na estabilização das situações ou das relações sociais em questão à luz da confiança e da boa-fé, não podendo beneficiar aqueles que direta, ou mesmo dolosamente, deram causa à nulidade do ato à sombra do qual os referidos efeitos são reclamados."

Conclui-se, reiterando o sumariado no Acórdão do STA, proferido no processo 0649/13.1BALSB, de 24/09/2020, onde se sublinhou que "Não cabe à sentença anulatória o "reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo",

* * *
Em face de tudo quanto se expendeu precedentemente confirmar-se-á o sentido da decisão recorrida.

* * *

Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao Recurso Jurisdicional apresentados, confirmando-se a Sentença Recorrida.
Custas pelo Recorrente
Lisboa, 13 de julho de 2023
Frederico de Frias Macedo Branco

Alda Nunes

Lina Costa