Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:425/21.8 BESNT-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:02/14/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INCIDENTE DE ESCUSA DO JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I. Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

II. A escusa do juiz tem como um único objectivo ou finalidade a de garantir a imparcialidade do juiz, a qual se presume. E só em situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve levar o mesmo a ser escusado de intervir num processo.

III.A apresentação no Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais de queixa contra o juiz, sem mais e por si só, não constitui fundamento de escusa.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO


1. Do objecto do incidente:

O Senhor Juiz de Direito do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, Dr. J …………, veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do CPC, que lhe seja concedida dispensa de intervir na acção administrativa que, com o nº 425/21.8 BESNT, lhe foi distribuída e em que é Autor Jo………………. e Réus, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Outros.

A pretensão do escusante é motivada por factos superviventes à instauração da presente acção e assenta na queixa apresentada pelo Autor junto do Conselho Superior da Magistratura posteriormente remetida ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na qual vem pedido o “afastamento compulsivo “ do Senhor Juiz requerente, por aquele ter entendido que o comportamento deste juiz não é isento e de que “terá tido relações passadas com os actuais representantes das Rés neste processo”, e “nas participações “ que o mesmo dirigiu ao Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, em 30.03.2022 e 04.10.2022, na quais “acusa o requerente de «conluio», «solidariedade com as rés» e falta de isenção”.

Por despacho de 7.02.2023, efectuado ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 119.º, do CPC, foi solicitado ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais a confirmação sobre a existência de queixa do autor e, no caso afirmativo, qual o seguimento da mesma.

Na resposta recepcionada neste Tribunal no mesmo dia, a Senhora Juíza Secretária do CSTAF confirmou a existência da queixa apresentada pelo Autor e deu nota que em sessão do Conselho de 22.11.2021, foi deliberado “determinar o arquivamento da presente queixa”. Juntou cópia dessa deliberação e da documentação apreciada.

Não havendo necessidade de proceder a qualquer outra diligência, cumpre decidir.

2. Apreciando:

Nos termos do artigo 119.º, n.º 1 do CPC o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de” intervir na causa quando se verifiquem alguma dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

A lei não apresenta expressamente a definição de circunstâncias ponderosas, pelo que será a partir do senso e das regras da experiência comum que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas, tendo sempre presente que o regime dos impedimentos/suspeições não se contenta com um qualquer motivo; ao invés exige que o motivo seja “sério, e grave” e “adequado a geral a sua desconfiança sobre a sua imparcialidade” (cfr. art. 120.º, n.º 1, do CPC).

Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

Como já repetidamente afirmámos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante (…)” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pela ASJP).

Como se afirma no acórdão do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5: “No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.

A escusa do juiz tem, portanto, como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, a qual se presume. E só em situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve levar o mesmo a ser escusado de intervir num processo.

Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a entender que a imparcialidade e a objectividade exigidas no exercício da função jurisdicional, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» que é tanto a subjectiva como a objectiva.” (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115).

Revertendo para o caso que aqui nos ocupa, o fundamento da escusa assenta na queixa que o Autor apresentou junto do Conselho Superior de Magistratura, posteriormente remetida para o CSTAF.

Como melhor se alcança da deliberação do CSTAF, proferida na sessão de 21.11.2021, temos, ao que aqui releva, que:

(…) percorrida a participação, verifica-se que não se mostram evidenciados quaisquer factos denunciadores da alegada falta de isenção, ou de qualquer outro comportamento do Senhor Juiz visado suscetível de integrar o conceito de infração disciplinar.

Com efeito, ao longo da sua exposição, o queixoso limita-se a divergir do entendimento jurídico vertido na decisão judicial que censura. Divergência que não é, nem podia ser fundamento de responsabilidade disciplinar do Senhor Juiz visado, atento, desde logo, o citado princípio da independência e da liberdade de julgamento dos juízes.

(…) neste quadro, não se verificam os pressupostos de intervenção deste Conselho Superior em matéria disciplinar.

Deste modo, não tendo sido aventados pelo queixoso, nem se descortinando, quaisquer factos denunciadores de violação dos deveres profissionais pelo Senhor Juiz visado, ou que possam demandar a intervenção deste Conselho Superior, cumprirá determinar o arquivamento da presente queixa.

Pelo exposto este Conselho delibera determinar o arquivamento do presente expediente.

Ora, desde logo, a apresentação no Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais de queixa contra o juiz, sem mais e por si só, não constitui fundamento de escusa (cfr., neste sentido, ainda que em relação ao CSM, i.a., o ac. do TR Évora de 5.06.2012, proc. n.º70/12.9YREVR). Sobre esta circunstância, permitimo-nos trazer à colação o acórdão do STJ de 5.12.1990 (CJ 1990, 5, 20, Tavares Santos): “Não constitui só por si fundamento de recusa de juiz em processo penal o simples facto de o requerente ter apresentado queixa contra ele no Conselho Superior da Magistratura (…) A aceitar-se a pretensão, criar-se-ia um precedente grave de que poderia lançar mão aquele que, em tribunal, pretendesse afastar um juiz da sua causa. Bastaria que, apercebendo-se de que o julgamento não estava a ser-lhe favorável, dirigisse qualquer queixa ao C.S.M.. Ora é evidente que a suspeição é uma figura séria para poder ser usada por razões inconfessadas”.

Por outro lado, como se deixou assente, a referida queixa foi arquivada liminarmente e já em Novembro de 2021. Ou seja, não só era manifesta a sua falta de fundamento, como o tempo transcorrido até hoje é significativo (há mais de 1 ano).

De igual modo, verificadas as “participações” efectuadas pelo Autor junto do Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados por idênticos fundamentos, não permitem fazer perigar a isenção do senhor juiz escusante, nem permitem suspeitar da sua imparcialidade ou gerar essa desconfiança por parte da comunidade em geral.

Não deixando de reconhecer que possa causar algum melindre ao Senhor Juiz escusante o facto de continuar a tramitar o processo em que surgiu uma queixa ao CSTAF e duas participações ao Conselho Deontológico da Ordem Advogados, as quais estão na base da formulação do pedido de escusa, certo é que tal se apresenta como uma decorrência da profissão que abraçou. Como, também, tem sido dito, os incómodos que o juiz poderá sentir em tal situação mais não são que os ónus de ser juiz.

Temos para nós que, em pressuposto que é fundamental, “o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” (cfr. o ac. STJ de 23.09.2009, Maia Costa). Princípio do juiz natural que no presente caso não tem fundamento para ser postergado.

Os fundamentos invocados pelo Senhor Juiz requerente não têm, pois, a virtualidade de fundamentar a requerida escusa, já que não se verifica qualquer motivo(s) adequado(s) a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade na condução do processo e, muito menos, um motivo sério e grave.

3. Decidindo:

Pelo exposto, indefere-se o pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz de Direito, Dr. J ………….., para intervir nos autos.

Sem tributação.

Notifique.

14 de Fevereiro de 2023


O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES