Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:885/07.0BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:02/09/2017
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:IVA
PRESUNÇÃO DE TRANSMISSÃO DE BENS
Sumário:I - Nos termos do artigo 80º do CIVA (actual artigo 86º), pode a AT presumir como transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade. Por conseguinte, a presunção de transmissão decorre da verificação do facto de os bens não se encontrarem em locais relacionados com o exercício da actividade.
II - Trata-se, nos termos que decorrem do artigo 73º da LGT, de uma presunção ilidível pelo sujeito passivo, ou seja, este pode demonstrar que não foram transmitidos os bens que não se encontrem nos apontados locais.
III - No caso concreto, não vem evidenciada qualquer discrepância entre a inventariação física dos bens (que a AT não fez) e os registos contabilísticos que permita à AT concluir que faltam (fisicamente) bens e daí extrapolar para presumir a sua transmissão.
IV - Pelo contrário, o que se verifica é que a impugnante, ao proceder ao registo de um custo extraordinário, como se verificou, cuidou de espelhar na contabilidade que aquele montante de € 41.869,33 respeita a bens que, em resultado de quebras ou falhas, não foram transmitidos.
V- Por conseguinte, a presunção que decorre do artigo 80º do CIVA nunca aqui poderia operar.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

1 – RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade S..., LDA, contra o ato de liquidação adicional de IVA n.º ..., relativo ao período 2004/12, no valor de € 12.337,67, e respectivos juros compensatórios, no valor de € 868,03, vem dela interpor o presente recurso jurisdicional.

Nas suas alegações expende, a final, o seguinte quadro conclusivo:

I. A impugnante contabilizou o valor de 41.869.33, a título de quebras de existências, tendo-se verificado no decurso da acção inspectiva externa efectuada que para as mesmas não existia facturação que titulasse as respectivas vendas e que as mesmas também não se encontravam nas instalações daquela.

II. Dispõe o art.º 80º do CIVA que se presumem transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade, pelo que, fundada na presunção da sua respectiva transmissão/venda, foi apurado IVA em falta, do ano de 2004, no montante de 12.337,68.

III. A aplicação do disposto no art.º 80º do CIVA em sede de procedimento inspectivo justificou-se enquanto resultado da inventariação operada e da verificação da falta de bens face aos registos contabilísticos.

IV. Por tal facto, nos termos do art.º 80º do CIVA, presumiu-se a transmissão dos bens encontrados em falta, com a consequente liquidação do correspondente imposto.

V. E tratando-se de uma presunção juris tantum, apenas ilidível perante prova em contrário, isto é, mediante prova de que os bens não foram efectivamente objecto de transmissão, a impugnante não logrou, ressalvado melhor entendimento, apresentar prova suficientemente demonstrativa de ter procedido à destruição, inutilização, obsolescência ou deterioração daquelas existências.

VI. Com efeito, a contabilidade da impugnante não permite demonstrar com efectividade qual o destino dado aos bens, posto que a organização contabilística por aquela implementada é reveladora de descontrolo na área das existências/inventários, como a própria reconhece quando se refere a situações como inventariação incorrecta dos bens; incorrecto envio de produtos ao cliente final (o que desencadeia uma alteração no produto em causa enquanto o produto não regressa), de bens com defeito de fabrico, de bens inutilizados por mau acondicionamento no transporte, bens que se tornam obsoletos, etc.

VII. E, neste conspecto, os depoimentos prestados neste estrito sentido afiguram-se concertados e comprometidos ab initio com aquela tese, não se revelando, portanto, idóneos para provar a tese exposta.

VIII. Assim, não logrando carrear para os autos a prova contrária necessária e imprescindível para ilidir a presunção legal de que a Administração Fiscal beneficia, nos termos do art.º 80º do CIVA, sempre a questão decidenda deveria ter sido decidida contra a impugnante.

IX. A douta Sentença a quo fez errada interpretação do art.º 80º do CIVA, dos artigos 73º e 74º n.º 1 da Lei Geral Tributária e dos artigos 342º n.º 1, e 350º do Código Civil.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO, FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”


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Notificada das alegações de recurso, veio a Recorrida contra-alegar, terminando com as seguintes conclusões:

A - O recurso quanto à matéria de facto deve ser rejeitado por total falta de especificação por parte da Recorrente, visto que não foi cumprido o ónus imposto pelo artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 281.º do CPPT.

B - Insurge-se a FP quanto ao vício de violação de lei que foi imputado na sentença recorrida.

C - O Trihunal a quo concluiu não estarem reunidos os pressupostos de que depende a aplicação do artigo 80.º do Código do IVA, uma vez que os Serviços de Inspeção não lograram demonstrar que determinados bens não tinham sido encontrados em locais em que a recorrente exerce a sua atividade (nem tão pouco indicar quais os supostos bens em causa).

D - Conforme explicou o Tribunal a quo ''a Administração Tributária não provou a existência do facto conhecido de que teria que partir [inexistência dos bens em armazém] para aplicar aquela presunção".

E - A inspeção tributária não reuniu os pressupostos suficientes para aplicar a presunção legal, preferindo "assumir" que o valor registado em quebras dizia respeito a bens que não se encontravam em armazém.

F - E que, ainda que assim não se entendesse, sempre teria de se concluir que a impugnante havia ilidido a presunção do supra mencionado artigo, face à prova efetuada nos autos, mais concretamente da factualidade assente em F), G). H) e I) do probatório.

G - Caso este Venerando Tribunal venha a considerar procedentes os argumentos da Recorrente - o que apenas por cautela de patrocínio se equaciona, sem conceder -, requer-se a ampliação do âmbito do recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 636.º do CPC.

H - Nesse caso, seria forçoso concluir que a impugnação seria procedente porque a liquidação padece do vício de falta de fundamentação.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser negado provimento ao presente recurso.


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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu Parecer onde concluiu no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, vem o processo submetido à Secção de Contencioso Tributário para julgamento do recurso.


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2 - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

É a seguinte a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:

A - A Impugnante exerce a actividade de importação, exportação, fabrico e venda de equipamento de protecção individual (facto alegado no artigo 2º da petição inicial e não contestado pela Fazenda Pública);

B - A Impugnante, no ano de 2004, mudou do sistema de inventário intermitente para o sistema de inventário permanente (cfr. depoimento da testemunha M...);

C - Em finais de 2003/início de 2004, no âmbito da reestruturação da Impugnante, esta adquiriu e implementou um novo sistema informático (PHC) (cfr. depoimento das testemunhas de C..., G..., e D...);

D - Com a implementação do sistema informático referido em C), cada produto passou a ser especificado e referenciado por subcategorias (cfr. depoimento das testemunhas C... e G...);

E - Do sistema informático referido em C) consta o registo do preço de custo e de venda de cada tipo de produto (cfr. depoimento das testemunhas C..., G... e D...);

F - No ano de 2004, tendo por base suporte documental com, designadamente, a identificação do produto e seu valor, foram registadas na contabilidade da Impugnante quebras no valor de € 198.894,39 e sobras no valor de € 156.525,06, tendo a diferença entre estes dois valores (€ 41.869,33) sido contabilizada como custo extraordinário desse ano (cfr. documentos de fls. 43 a 179 e 246 dos autos e documentos de fls. 373 a 415 do processo administrativo apenso; facto confirmado pela testemunha M...) ;

G - Em virtude da introdução do sistema informático mencionado em C), efectuou-se uma desagregação da referência original de certos bens, tendo-se registado como quebras o valor antes registado com aquela referência original, tendo estas quebras como contrapartida o registo em sobras dos mesmos produtos, nas várias referências resultantes da referida desagregação (cfr. depoimento das testemunhas C... e D...);

H - As quebras contabilizadas pela Impugnante como custo, no valor de € 41.869,33, tiveram como origem produtos partidos, danificados desactualizados ou fora do período de validade, bem como a remessa aos clientes de produtos diferentes dos encomendados (cfr. depoimento das testemunhas C..., G..., D... e M...);

I - Os produtos contabilizados em quebras no exercício de 2004, por se encontrarem danificados, desactualizados ou fora do período de validade, foram colocados no armazém da Impugnante situado no Laranjeiro (cfr. depoimento das testemunhas C... e G...);

J - Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º ..., os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa efectuaram uma acção de inspecção à Impugnante, relativa ao IRC e IVA do ano de 2004 (cfr. relatório de inspecção de fls. 44 a 47 dos autos e fls. 200 a 203 do processo administrativo apenso);

K - Da acção de inspecção referida em J) resultou um relatório de inspecção, datado de 31.07.2006, do qual consta, para o que aqui importa, o seguinte:

“(…)

(…)”

(cfr. relatório de inspecção de fls. 44 a 47 dos autos e fls. 200 a 203 do processo administrativo apenso);

L - Sobre o relatório de inspecção mencionado na alínea K) supra foi proferido parecer pelo Chefe de Equipa de Inspecção, do qual consta o seguinte:

(…)” (cfr. documento de fls. 35 dos autos e fls. 185 do processo administrativo apenso);

M - Sobre o relatório de inspecção referido em K) e na sequência do parecer mencionado em L) supra, o Director de Finanças de Lisboa proferiu, em 22.08.2006, despacho de concordância com o teor dos mencionados relatório de inspecção e parecer, constando do mesmo o seguinte:

(…)” (cfr. documento de fls. 35 dos autos e fls. 185 do processo administrativo apenso);

N - Durante o período de inspecção, os Serviços de Inspecção Tributária não efectuaram qualquer contagem física às existências da Impugnante, nem visitaram o armazém da Impugnante situado no Laranjeiro (facto que resulta do teor do relatório de inspecção e que foi admitido pelo próprio inspector responsável pela acção de inspecção, no depoimento que prestou nos autos; cfr. também depoimento das testemunhas C..., D... e M...);

O - A Impugnante apresentou, junto dos serviços da Administração Tributária, pedido de revisão das correcções efectuadas por métodos indirectos, constantes do relatório referido em K), ao abrigo do artigo 91.º da LGT, no âmbito da qual os peritos do sujeito passivo e da Administração Tributária não chegaram a acordo, tendo o Director de Finanças de Lisboa fixado a matéria tributável, mantendo os valores fixados no relatório mencionado (cfr. documentos de fls. 636 a 651 do processo administrativo apenso)

P - Em consequência das correcções efectuadas pelos Serviços de Inspecção mencionadas supra, foi emitida pela Administração Tributária, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º ..., relativa ao ano de 2004, no montante de € 12.337,67, bem como a liquidação dos respectivos juros compensatórios, com o n.º …, no valor de € 868,03, ambas com data limite de pagamento voluntário fixada em 31.01.2007 (cfr. documentos de fls. 41 e 42 dos autos);

Q - Tendo em vista a suspensão da cobrança, entre outros, do tributo mencionado em P) supra, a Impugnante apresentou a garantia bancária n.º …, emitida em 02.07.2007, pelo Banco …, S.A., a favor do Serviço de Finanças de …, garantindo o valor total de € 65.135,63 (cfr. documentos de fls. 199 dos autos).

Factos não provados

Não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão.

Motivação

Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e do processo administrativo apenso, não impugnados, e no depoimento das testemunhas C..., G..., D..., M... e M..., conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

Quanto ao facto dado como provado em B) do probatório, o mesmo foi confirmado pela testemunha M..., técnica oficial de contas da Impugnante no exercício em causa, e que confirmou que o inventário permanente foi implementado em 2004, havendo até lá inventário intermitente.

No que concerne aos factos dados como provados nas alíneas C), D) e E) do probatório, tais factos resultam dos testemunhos de C..., director técnico da Impugnante, há 18 anos ao seu serviço, G..., técnico comercial, funcionário da Impugnante desde 2003, e D..., gestor da Impugnante, em 2004, para efeitos de implementação da reestruturação, todos coerentes e congruentes, revelando conhecimento directo dos factos, tendo todos confirmado a implementação de novo sistema informático, que esteve operacional a partir de 01 de Janeiro de 2004, bem como a nova especificação e referenciação dos produtos.

Sendo também peremptórias as referidas testemunhas ao afirmar que o referido sistema informático permite ter acesso ao registo do preço de custo e de venda de cada tipo de produto.

Nos factos dado como provados em G) e H) da factualidade assente, foram valorados os depoimentos das testemunhas ai identificadas, que, com a razão de ciência supra referida, de forma congruente e segura, e tendo um conhecimento directo dos referidos factos, confirmaram tais factos, tendo explicado com algum pormenor a origem das quebras contabilizadas.

Quanto ao facto assente em I) do probatório, o mesmo resulta do depoimento das testemunhas C... e G..., que, tendo um conhecimento directo, confirmaram expressamente que os produtos contabilizados em quebras no exercício de 2004 por se encontrarem danificados ou desactualizados foram colocados no armazém da Impugnante situado no Laranjeiro, porquanto já não se destinavam à venda.

2.2. De direito

Está em causa no presente recurso a sentença do TT de Lisboa que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pela S..., Lda., anulou a liquidação adicional de IVA (e juros compensatórios) respeitante ao ano de 2004.

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Ora, lidas as conclusões das alegações de recurso, e seguindo a ordem aí observada, resulta claro que há que apreciar se, como defende a Recorrente:

(i) - a sentença fez “errada interpretação do art.º 80º do CIVA, dos artigos 73º e 74º n.º 1 da Lei Geral Tributária e dos artigos 342º n.º 1, e 350º do Código Civil”;

(ii) - e, bem assim, se os depoimentos prestados se afiguram “concertados e comprometidos ab initio com a tese da Impugnante”, não se revelando, portanto, idóneos para provar o alegado.

Vejamos, então, começando pela segunda questão que autonomizámos supra.

Desde já se deve dizer que esta singela afirmação dificilmente esclarece o Tribunal sobre a concreta discordância da Recorrente com a matéria de facto, já que, não impugnando concreta e autonomamente qualquer facto dado como provado, deixa antever que a Recorrente se insurge contra a consideração da prova testemunhal em si mesma, por, no caso, ela se ter revelado concertada e comprometida com a tese da Impugnante.

Analisando esta primeira questão, faremos uso, a propósito, daquilo que se escreveu no acórdão deste TCA, de 26/01/17, no recurso nº 6853/13, onde se lê o seguinte:

“(…)

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr.artº.607, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág.566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).

Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor (cfr.artºs.596, nº.1 e 607, nºs.2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123, nº.2, do C.P.P.Tributário).

O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica. O erro de julgamento, de direito ou de facto, somente pode ser banido pela via do recurso e, verificando-se, tem por consequência a revogação da decisão recorrida. A decisão é errada ou por padecer de “error in procedendo”, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento aplicável, ou de “error in iudicando”, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado. A decisão é injusta quando resulta de uma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos, que lhe são confiados (cfr. ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 11/6/2013, proc.5618/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/4/2014, proc.7396/14; Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.130; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 9ª. edição, 2009, pág.72).

Ainda no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr.artº.685-B, nº.1, do C.P.Civil, “ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 20/12/2012, proc.4855/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/7/2013, proc.6505/13; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181).

Tal ónus rigoroso ainda se pode considerar mais vincado no actual artº.640, nº.1, do C.P.Civil, na redacção resultante da Lei 41/2013, de 26/6 (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6531/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 14/11/2013, proc.5555/12; ac.T.C.A. Sul-2ª.Secção, 10/04/2014, proc.7396/14).

Por outro lado, no que concretamente diz respeito à produção de prova testemunhal, refira-se que se a decisão do julgador estiver devidamente fundamentada e for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/4/2013, proc.6280/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 7/5/2013, proc.6418/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/7/2013, proc.6505/13)”.

No caso concreto, não pode deixar de estar votado ao insucesso o fundamento do recurso em análise devido a manifesta falta de cumprimento do ónus mencionado supra, desde logo, quanto aos concretos meios probatórios (essencialmente relativos à prova testemunhal produzida, segundo defende o apelante, portanto, as passagens da gravação áudio em que se funda), constantes do processo e que, na opinião da Recorrente, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela sentença recorrida.

A isto acresce que não vêm minimamente densificadas as alusões que nos remetem para a falta de idoneidade dos testemunhos prestados. (depoimentos “concertados e comprometidos ab initio com a tese da Impugnante”)

Concluindo, improcede este primeiro esteio do recurso.


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Passemos, agora, à segunda questão que nos ocupa: saber se a sentença fez “errada interpretação do art.º 80º do CIVA, dos artigos 73º e 74º n.º 1 da Lei Geral Tributária e dos artigos 342º n.º 1, e 350º do Código Civil”.

Detalhando a posição da Recorrente, pode dizer se que, em seu entendimento, foi legal o apuramento do IVA com recurso ao disposto no artigo 80º do CIVA, já que a “impugnante contabilizou o valor de 41.869.33, a título de quebras de existências, tendo-se verificado no decurso da acção inspectiva externa efectuada que para as mesmas não existia facturação que titulasse as respectivas vendas e que as mesmas também não se encontravam nas instalações daquela”. No caso, e com base no artigo 80º do CIVA, “presumiu-se a transmissão dos bens encontrados em falta, com a consequente liquidação do correspondente imposto”.

Evidencia a Fazenda Pública que “tratando-se de uma presunção juris tantum, apenas ilidível perante prova em contrário, isto é, mediante prova de que os bens não foram efectivamente objecto de transmissão, a impugnante não logrou, (…), apresentar prova suficientemente demonstrativa de ter procedido à destruição, inutilização, obsolescência ou deterioração daquelas existências”, considerando-se que a sua contabilidade “não permite demonstrar com efectividade qual o destino dado aos bens, posto que a organização contabilística por aquela implementada é reveladora de descontrolo na área das existências/inventários, como a própria reconhece quando se refere a situações como inventariação incorrecta dos bens; incorrecto envio de produtos ao cliente final (o que desencadeia uma alteração no produto em causa enquanto o produto não regressa), de bens com defeito de fabrico, de bens inutilizados por mau acondicionamento no transporte, bens que se tornam obsoletos, etc”.

Por conseguinte, e em suma, para a Recorrente “não logrando (leia-se, a Impugnante, ora Recorrida) carrear para os autos a prova contrária necessária e imprescindível para ilidir a presunção legal de que a Administração Fiscal beneficia, nos termos do art.º 80º do CIVA, sempre a questão decidenda deveria ter sido decidida contra a impugnante”.

Vejamos, então, o que se nos oferece dizer a este propósito, deixando nota, em síntese, daquele que foi o discurso argumentativo seguido na sentença recorrida.

Assim, escreveu o Mmo. Juiz a quo que:

“(…)

Efectivamente, a Administração Tributária limitou-se a deduzir as alegadas discrepâncias desconsiderando os documentos de registo de quebras, como se eles não existissem, mas sem, na verdade, os pôr em causa e sem afastar a presunção de veracidade das operações contabilísticas que sustentam.

Como tal, e perante esta contradição do relatório de inspecção, não se verifica estarem reunidos os pressupostos do artigo 80.º do Código do IVA.

Diga-se, de resto, que ainda que a Administração Tributária tivesse demonstrado estarem preenchidos os pressupostos do recurso a presunção constante do artigo 80.º do Código do IVA, sempre teria que se concluir ter a Impugnante ilidido a referida presunção, face à prova efectuada nos autos, mais concretamente da factualidade assente em F), G), H) e I) do probatório.

De facto, da prova produzida, maxime testemunhal, foram no sentido de que as referidas quebras de inventário correspondem a produtos partidos, danificados, desactualizados ou fora do período de validade, bem como a produtos remetidos por engano aos clientes (diferentes dos encomendados).

Como tal, a impugnante logrou ilidir a presunção constante do então artigo 80.º do Código do IVA.

Vejamos, então.

Importa ter presente que a liquidação de IVA sindicada decorreu da aplicação ao caso do disposto no artigo 80º do CIVA (actual artigo 86º), o qual dispunha nos termos seguintes:

Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrarem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrarem em qualquer desses locais” (sublinhado nosso).

Como referem F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, “O disposto neste artigo poderá considerar-se como uma consequência directa da inventariação que eventualmente tenha sido efectuada nos termos do artigo anterior, conduzindo à existência de bens não documentados nem registados e que se presume terem sido adquiridos pelo sujeito passivo. Também como resultado dessa inventariação poderá verificar-se a falta de bens face ao registo dos livros. Em ambos os casos o legislador admite por um lado, uma presunção juris tantum de aquisição daqueles bens e, por outro, a transmissão dos bens encontrados em falta, motivando, neste caso, a liquidação do correspondente imposto” -cfr. Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, Anotado e Comentado, de, 4ª edição, pág. 813 e 814.

Também a este propósito, F. Duarte Neves, salienta que “Este artigo estabelece que se presumem como transmitidos os bens não encontrados em qualquer dos locais em que o contribuinte exerça a sua actividade, salvo prova em contrário. O regime consagrado neste artigo pode considerar-se como uma consequência directa da inventariação de bens, sendo que o legislador presume a transmissão dos bens não encontrados no local onde é normalmente exercida a actividade do sujeito passivo, comportando a liquidação do respectivo IVA. Trata-se de uma presunção juris tantum que pode ser ilidida mediante prova (por qualquer meio legalmente admissível) de que os bens não foram transmitidos” – cfr. Código do IVA Comentado e Anotado, edição Vida Económica, 2010, p. 628-629.

Temos, pois, que a AT pode presumir como transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade. Por conseguinte, a presunção de transmissão decorre da verificação do facto de os bens não se encontrarem em locais relacionados com o exercício da actividade

Trata-se, nos termos que decorrem do artigo 73º da LGT, de uma presunção ilidível pelo sujeito passivo, ou seja, este pode demonstrar que não foram transmitidos os bens que não se encontrem nos apontados locais.

Ora, focando a atenção no relatório de inspecção temos que a IVA liquidado adicionalmente resultou das seguintes considerações:

- a sociedade registou, em 2004, custos extraordinários de € 41.869,33, respeitantes a quebras/ falhas inventário;

- segundo o RIT, o referido valor é resultante de falhas verificadas quando foi efectuada a contagem física dos artigos;

- foi considerada a margem bruta sobre o custo das mercadorias vendidas e matérias consumidas (CMVMC) de 0,5509;

- o valor de venda para as falhas foi presumido e fixado em € 64.935,14, o que resultou da operação correspondente a € 41.869,33 x 0,5509;

- a este valor, de € 64.935,14, foi aplicada a taxa de IVA de 19%, daí resultando o montante de IVA de € 12.337,68.

Ora, como está bom de ver, a Recorrente não tem a menor razão no que alega, sendo claro que a liquidação adicional de IVA nunca se poderia manter nos termos em que foi efectuada, como bem decidiu a sentença recorrida.

Com efeito, ressalta de imediato que a discrepância subjacente ao artigo 80º do CIVA pressupõe a inventariação dos bens, para daí se concluir que faltam (fisicamente) bens em face dos registos contabilísticos. Esta decorrência directa da inventariação de bens era, aliás, absolutamente clara no artigo 79º,1 do CIVA, em vigor à data dos factos, nos termos do qual se dispunha que “Sempre que necessário, poderão os funcionários encarregados da fiscalização proceder à inventariação das existências físicas de qualquer estabelecimento”.

Ora, no caso concreto, tal situação não se verifica, pois não vem evidenciada qualquer discrepância entre a inventariação física dos bens (que a AT não fez) e os registos contabilísticos que permita à AT concluir que faltam (fisicamente) bens e daí extrapolar para presumir a sua transmissão.

Pelo contrário, o que se verifica é que a impugnante, ao proceder ao registo de um custo extraordinário, como se verificou, cuidou de espelhar na contabilidade que aquele montante de € 41.869,33 respeita a bens que, em resultado de quebras ou falhas, não foram transmitidos.

Por conseguinte, a presunção que decorre do artigo 80º do CIVA nunca aqui poderia operar, sendo até, do nosso ponto de vista, contraditório o raciocínio seguido pelo relatório de inspecção.

Mas mesmo que assim não se entendesse e se, por hipótese, se admitisse que estavam preenchidos os pressupostos para aplicar o artigo 80º do CIVA, ainda assim a correcção operada (e a subsequente liquidação adicional) nunca se poderia manter, por ser evidente que a Impugnante tinha ilidido a presunção mediante a prova do seu contrário.

É que, como a matéria de facto mostra à saciedade, a impugnante demonstrou que os “As quebras contabilizadas pela Impugnante como custo, no valor de € 41.869,33, tiveram como origem produtos partidos, danificados desactualizados ou fora do período de validade, bem como a remessa aos clientes de produtos diferentes dos encomendados” e, bem assim, que “Os produtos contabilizados em quebras no exercício de 2004, por se encontrarem danificados, desactualizados ou fora do período de validade, foram colocados no armazém da Impugnante situado no Laranjeiro”, tal como resulta dos pontos H) e I) da matéria de facto. Trata-se de factualidade, como já antes dissemos, não posta em causa pela Fazenda Pública, no âmbito do presente recurso jurisdicional.

De notar, também, que, como disso dá conta a sentença, em sede de fiscalização ao sujeito passivo, não há registo de os serviços de inspecção terem procedido a qualquer inventariação, nem tão-pouco de se terem deslocado ao armazém sito no Laranjeiro onde se encontravam os bens contabilizados em quebras/falhas – lê-se na sentença que “dos autos não resulta que os Serviços de Inspecção Tributária tenham verificado, in loco, quaisquer discrepâncias. Tal como se deixa assenta em N) do probatório, resulta provado nos autos que nenhuma contagem física foi efectuada pelos Serviços de Inspecção Tributária às existências da Impugnante durante o período de inspecção (nem elaborado termo de inventário), facto que, de resto, foi admitido pelo próprio inspector responsável pela acção de inspecção no depoimento prestado nos autos. Admitindo também o mesmo não ter visitado o armazém da Impugnante situado no Laranjeiro, local onde, segundo alega a Impugnante e se deu como provado em I) do probatório, se encontravam os bens inutilizados ou danificados contabilizados em quebras”.

Por conseguinte, se em sede de fiscalização, por qualquer razão não revelada no relatório, os competentes serviços de inspecção não cuidaram de saber sobre a localização e destino dos bens em causa, essa é uma opção que apenas respeita à AT e que não pode, naturalmente, reverter contra o sujeito passivo.

Em suma, e sem necessidade de nos alongarmos dada a evidente falta de razão da Fazenda Pública, conclui-se como na sentença, ou seja, pela ilegalidade da liquidação de IVA impugnada (e respectivos juros compensatórios), emitida com fundamento no artigo 80º do CIVA.

E não se colocando qualquer outra questão a este Tribunal, devem julgar-se improcedentes todas as conclusões da alegação de recurso, negando provimento ao recurso e, em consequência, deve manter-se a sentença recorrida.


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3 - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 09/02/17


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(Catarina Almeida e Sousa)

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(Barbara Tavares Teles)

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(Pereira Gameiro)