Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10708/13
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:01/29/2015
Relator:PEDRO MARHÃO MARQUES
Descritores:OPOSIÇÃO À AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE; LIGAÇÃO EFECTIVA À COMUNIDADE NACIONAL; ÓNUS DA PROVA
Sumário:i) Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional.

ii) O ónus da prova para efeitos do disposto no artigo 9.º, al. a), da Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade rege-se pelo disposto na lei geral, designadamente nos artigos 342.º e 343.º do C. Civil.

iii) A prova da ligação efectiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, intimamente conexionada com a vida privada do interessado, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do requerente do pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. O que é consentâneo com as exigências de instrução do procedimento administrativo que recaem sobre o requerente do pedido de aquisição da nacionalidade.

iv) Não demonstra a existência de uma ligação efectiva à comunidade portuguesa, a interessada que assenta o pedido de aquisição da nacionalidade na circunstância de ser filha de pai que, no ano de 2006, adquiriu a nacionalidade portuguesa
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do TAC de Lisboa veio interpor recurso jurisdicional da sentença daquele tribunal, datada de 25.01.2013, que julgou improcedente a acção especial de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, por si intentada contra Irina ……………, de nacionalidade caboverdiana, natural de Nossa ………………….., ………, Cabo Verde, e residente na Rua ……….., nº66, 2ºEsq., ……….

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

1ª - À luz do artigo 4°, n°s l e 2, alínea a), do Código de Processo Civil, as acções de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa devem ser consideradas como acções de simples apreciação negativa, pois que as mesmas são destinadas à demonstração (e consequente declaração judicial) da inexistência de ligação à comunidade nacional;

2ª - Consequentemente, e de harmonia com o disposto no artigo 343°, n°1, do Código Civil, a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga competia à Requerida, ora Recorrida, fazer;

3ª- Aliás, perante uma acção que é consequência de uma pretensão inicialmente formulada junto da Conservatória dos Registos Centrais pela interessada em obter a nacionalidade portuguesa, sempre a esta caberia, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos de tal pretensão;

4ª - A redacção do artigo 2° da Lei n°37/81, de 3 de Outubro, mantida pela Lei n°2/2006, de 17 de Abril, continua a estabelecer que o(a) estrangeiro(a) filho(a) de nacional português pode adquirir, em determinadas circunstâncias, a nacionalidade portuguesa, mediante declaração;

5ª - Todavia, enquanto o artigo 9°, na sua redacção anterior, estabelecia que constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, designadamente, a "não comprovação pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional” na sua redacção actual estabelece o mesmo normativo que constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, entre outros factores, a "inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”.

6ª - Por outro lado, estatui o n°l do artigo 57° do Decreto-Lei n°237-A/2006, de 14 de Dezembro, que "Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n°2 do artigo anterior" (sublinhado nosso);

7ª - E face ao comando ínsito no citado artigo 343°, n° 1, do Código Civil - estando em causa uma acção que resulta de uma pretensão por ela própria formulada junto da Conservatória dos Registos Centrais - não pode a Requerida, perante as regras gerais do ónus da prova, eximir-se a tal pronúncia;

8ª - O facto de a Recorrida ser filha de pai que adquiriu a nacionalidade portuguesa, no recente ano de 2006, não é suficiente para se entender que a mesma já possuí os requisitos necessários - ligação efectiva à comunidade portuguesa - para adquirir essa mesma nacionalidade, tanto mais que não contestou, nem juntou quaisquer provas documentais ou outras da sua ligação efectiva à comunidade portuguesa como lhe cabia, por força da inversão do ónus da prova;

9ª- Para adquirir a nacionalidade portuguesa são necessários, para além da menoridade/incapacidade e da filiação, outros requisitos, nomeadamente, uma ligação efectiva, um sentimento de unidade com a comunidade nacional, em termos de comunhão da mesma consciência nacional, impondo a lei uma ligação efectiva, já existente, devendo, assim, verificar-se uma forte e duradoura afinidade com a matriz dos portugueses, considerados estes como uma comunidade política e socialmente organizada;

10ª - Ora, no caso dos autos, nada disso acontece, já que a Requerida, hoje de maioridade, para além do mais, sempre viveu em Cabo Verde, comunidade nacional onde nasceu e cresceu, na qual se integra e se encontra inserida, e, naturalmente, com a qual se identifica;

11ª - Não basta, assim, verificar-se no caso concreto o requisito objectivo da Requerida ser filha de cidadão português, para se considerar que existe, imediata e automaticamente, ligação efectiva à comunidade nacional portuguesa, como parece resultar da Sentença.

12ª - Por tudo quanto foi dito e conforme melhor resulta dos autos, a douta Decisão recorrida fez um inadequado julgamento, de facto e de direito, tendo violado as disposições legais e os princípios de direito contidos no artigo 9°, al. a) da Lei n°37/81, na redacção dada pela Lei n°2/2006, de 17 de Abril, no artigo 56°, n°l, al. a) do Decreto-Lei n°237-A/2006, de 14 de Dezembro e no artigo 343°, n°l, do Código Civil;

13ª - Assim, mal decidiu o Tribunal Administrativo Círculo de Lisboa ao julgar improcedente a oposição deduzida pelo Ministério Público à aquisição da nacionalidade da Recorrida e ao ordenar o prosseguimento do processo conducente ao registo respectivo, pelo que, dando-se provimento ao presente recurso, deve aquela revogada e substituída por outra em que se declare a procedência da presente acção.

Pelo exposto, ao darem provimento ao recurso, revogando a douta decisão, far-se-á a esperada e costumada JUSTIÇA!».


A Recorrida, Irina ………………, não apresentou contra-alegações.


Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

I. 2. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao ter considerado como não verificado o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa previsto no art. 9.º, al. a), da Lei da Nacionalidade (inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional).


II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

A) A Ré nasceu a 2 de Novembro de 1991 em Nossa ………., …….., Cabo Verde (Certidão de Registo de Nascimento n.°……../17-12-1991, junto a fls. 13 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);

B) Tem nacionalidade caboverdiana (Certificado de Nacionalidade n°……./………. da Conservatória dos Registos Centrais de Cabo Verde, junto a fls. 18 dos autos do processo físico);

C) Reside habitualmente na cidade de São …….., São ……., Fogo, Cabo Verde (Auto de Declarações de Aquisição de Nacionalidade junto a fls. 11-12 dos autos do processo físico);

D) O seu pai, João …….., adquiriu a nacionalidade portuguesa nos termos do art.°7° da Lei n.°37/81, de 3 de Outubro, conforme Averbamento ao Assento de Nascimento n.° …… da Conservatória dos Registos Centrais, junto a fls. 16-17 dos autos do processo físico;

E) Em 14 de Outubro de 2009, na Secção Consular da Embaixada de Portugal na cidade da Praia, Cabo Verde, os pais da Ré vieram, em nome dela, na qualidade de seus representantes legais, declarar a vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa para a Ré [Auto de Declarações para Aquisição de Nacionalidade" referida supra em C)];

F) Ao abrigo do art.°2° da referida Lei n.°37/81);

G) Para os fins do disposto no art.°9° da Lei n.°37/81, na redacção da Lei Orgânica n°2/2006, de 17 de Abril, a mãe, sendo também procuradora do pai da Ré, declarou:

- "Que tem ligação efectiva à comunidade portuguesa uma vez que é educada segundo os hábitos e costumes da comunidade portuguesa, falando e escrevendo a língua portuguesa.

- Que não praticou qualquer acto punível com pena de prisão igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;

Para a prova das alíneas anteriores apresenta os seguintes documentos:

• Registo de nascimento;

• Assento de nascimento do pai;

• Certidão de nacionalidade;

• Registo criminal de Portugal;

• Declaração da Escola Secundária Académica do Fogo;

• Bilhete de identidade;

..." - Auto de Declarações cit.;

H) Tudo documentos juntos com a petição inicial, conforme fls. 13 a 25 dos autos do processo físico, cujos teores se dão por reproduzidos;

I) Não se pronunciou quanto ao disposto na al. c) do art.°9° da Lei n.° 37/81 (cfr. o Auto de Declarações cit.);

J) Não obstante ter sido notificado para o fazer (fls. 46 e 47 dos autos do processo físico);

K) Com base em tal declaração foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais o Processo n.°48729/09-NACA (Despacho de 12 de Agosto de 2010, junto a fls. 48 a 50 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);

L) Cuja certidão foi mandada remeter ao Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, sob invocação do art.°10° da Lei n.°37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei Orgânica n.°2/2006, de 17 de Abril (Despacho cit.).

Não foram consignados factos não provados, nem autonomamente exarada a fundamentação da decisão da matéria de facto.



II.2. De direito

Vem questionada no recurso a decisão do Mmo. Juiz do TAC de Lisboa que julgou a presente acção de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa improcedente, por nesta se ter entendido que a Requerida e ora Recorrida beneficiava de uma presunção legal consubstanciada no facto de ser filha de cidadão que adquiriu a nacionalidade portuguesa e de ter declarado querer ser português. Ou seja, segundo o entendimento sufragado na sentença recorrida, tal constitui indício bastante da existência da ligação à comunidade portuguesa, dispensando a prova da existência dessa ligação, cabendo sim ao Ministério Público, na acção de oposição, vir a provar a inexistência daquela.

É contra esta posição que o Recorrente se insurge pugnando que à luz do artigo 4.º, n.ºs l e 2, alínea a), do CPC (na redacção aplicável), as acções de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa devem ser consideradas como acções de simples apreciação negativa, pois que as mesmas são destinadas à demonstração (e consequente declaração judicial) da inexistência de ligação à comunidade nacional (conclusão 1.ª do recurso), sendo que de harmonia com o disposto no artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil, a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga competia à Requerida, a ora Recorrida, o que não logrou fazer (idem, conclusão 2.ª). Mais conclui o Recorrente que “perante uma acção que é consequência de uma pretensão inicialmente formulada junto da Conservatória dos Registos Centrais pela interessada em obter a nacionalidade portuguesa, sempre a esta caberia, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos de tal pretensão” (cfr. conclusão 3.ª).

E, podemos já adiantar, a posição sustentada pelo Recorrente é a acertada. Vejamos porquê.

Começando por traçar o quadro normativo de referência, temos que no art. 2.° da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (redacção que foi mantida pela Lei n.º 2/2006, sendo que a Lei n.º 43/2013, de 3 de Julho apenas veio alterar o art. 6.º, n.º 7, no que tange à concessão de nacionalidade por naturalização), prevê-se o seguinte:

Os filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquiri-la, mediante declaração”.

Por outro lado, no art. 9.°, na redacção anterior, estabelecia-se que:

Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

a) A não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional;

b) A prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.”

E a redacção actual é esta:

Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

a) A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional;

b) A condenação, com trânsito cm julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.

No art. 56.°, n.º 2, do actual Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, prevê-se o seguinte:

2- Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou da adopção:

a) A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional;

b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igualou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.”

Por fim, no art. 57.°, n.° 1, deste diploma, dispõe-se que:

Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior.”

Conforme se retira da leitura destes preceitos, antes exigia-se que o interessado comprovasse a sua ligação efectiva à comunidade nacional, sendo fundamento da oposição a “não comprovação” dessa ligação efectiva. Agora, não se faz menção a essa “não comprovação”, mas tão-só à “inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”, devendo ser feita ao Ministério Público a participação de factos susceptíveis de fundamentarem a oposição.

A verdade é que o interessado terá de “pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional”, crendo-se que será a partir dessa pronúncia que o conservador poderá aquilatar da existência/inexistência de ligação à comunidade nacional e, no caso de se indiciar a inexistência, comunicá-la ao Ministério Público para instauração da acção de oposição.

A oposição à aquisição de nacionalidade, no que tange à falta de ligação efectiva à comunidade nacional (que é o que está em causa no presente processo) continua a derivar da existência de um requerimento feito por alguém que pretende adquirir a nacionalidade portuguesa, considerando que lhe assiste esse direito e devendo pronunciar-se sobre a existência daquela ligação. A constatação, face às explicações dadas, de que as razões aduzidas serão insuficientes para se concluir pela ligação à comunidade nacional, levará à comunicação ao Ministério Público para a instauração do processo de oposição (como no caso sucedeu)

A acção destinada à declaração da inexistência da ligação à comunidade portuguesa continua, pois, a configurar-se, como uma acção de simples apreciação negativa. Neste sentido concluiu, entre outros, o acórdão deste TCAS de 17.05.2012, proc. n.º 8726/12, ou, para citar o mais recente, o acórdão de 20.11.2014, proc. n.º 10824/14. Como se escreveu neste último aresto, em tese que subscrevemos integralmente: “(…) neste recurso a questão essencial reporta-se ao ónus da prova em sede do previsto no artigo 9º/a) da atual Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade (DL 237-A/2006) [o que aqui também ocorre]. // Face ao teor das normas citadas, não temos a mínima dúvida de que este processo contencioso é uma ação declarativa de simples apreciação negativa (artigo 10º/3/a) do NCPC), por isso sujeita ao imposto no artigo 343º/1 do CC, que dispõe sabiamente que nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (cfr., sobre esta importante matéria, P. LIMA/A. VARELA, C.C.Anot., I, notas aos artigos 342º e 343º; MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, V, 2011, capítulo VII; RITA LYNCE DE FARIA, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa, Lex, 2001). // Note-se, aliás, que aqui o autor, MP, não está a invocar nenhum direito (seu, substantivo), na terminologia do artigo 342º/1 do CC. // A aplicação do artigo 343º/1 do CC é ainda mais justificada pelo facto óbvio de que a tese contrária exigiria normalmente do MP uma prova verdadeiramente impossível, sobretudo por causa da impossibilidade jurídica e constitucional de o MP invadir a vida privada e social do interessado. A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do interessado no pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Exigir neste contexto a aplicação do artigo 342º/1 do CC, além de ilegal, seria irracional ou ilógico”.

Concluindo-se no acórdão que temos vindo de transcrever: “Portanto, interpretando as leis como manda o artigo 9º do CC, conclui-se que decorre do artigo 343º/1 do CC, das 2 normas referidas da LN e das 4 normas referidas do RN que, nas ações de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa com fundamento na al. a) do artigo 9º da LN, é o réu quem tem o ónus de provar a factualidade integrante da pretensão que o interessado quis fazer valer junto das autoridades administrativas portuguesas”.

Temos, assim, como seguro para nós que a lei não alterou o figurino da oposição à aquisição da nacionalidade como acção de simples apreciação negativa, destinada à demonstração da inexistência de ligação à comunidade nacional, com as consequências daí advindas.

Ora, de acordo com o disposto no art. 343.º, n.º 1 do C. Civil, nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (v. supra).

Como muito sugestivamente concluiu este TCA Sul no acórdão de 2.10.2008, proc. n.º 4125/08, em consideração que aqui se sufraga na íntegra: “De qualquer modo, pelo facto de estarmos perante uma acção que é consequência de uma pretensão, junto dos Registos Centrais, por parte do interessado, que aí manifesta a sua intenção de adquirir a nacionalidade portuguesa, também lhe cabe, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos da sua pretensão.

Ou como mais recentemente se refere no acórdão deste TCA Sul de 6.11.2014, proc. n.º 11025/14, adoptando idêntico discurso fundamentador a propósito do ónus da prova: “O artigo 9.º/a) da Lei da Nacionalidade estabelece um fundamento (negativo) de oposição à aquisição da nacionalidade, mas nada prevê quanto ao ónus da prova de tal facto, que terá que ser encontrado por aplicação das regras gerais, concretamente, do disposto no artigo 343.º/1 do CCiv, uma vez que está em causa uma ação de simples apreciação na qual se justifica que seja atribuído ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, dada a dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar factos negativos (que, no caso, são também factos pessoais do réu). // Este regime de ónus da prova em sede do processo judicial é consentâneo com as exigências de instrução do procedimento administrativo que recaem sobre o requerente do pedido de aquisição da nacionalidade, cuja “pronúncia” sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional não pode indiciar a falta dessa ligação, sob pena de recair sobre o Conservador dos Registos Centrais o dever de participar tal facto ao Ministério Público e sobre este o dever de intentar ação de oposição à aquisição de nacionalidade (n.ºs 1, 7 e 8 do artigo 57º do Regulamento da Nacionalidade).

Donde, ao entender que a Recorrida beneficiava de uma presunção iuris tantum que lhe assegurava a existência de ligação efectiva à comunidade nacional por ser filha de cidadão que adquiriu a nacionalidade portuguesa, fazendo recair o ónus probatório – da prova de factos negativos - no Ministério Público, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, razão pela qual não pode ser mantida.

Acresce que, salvo o devido respeito, não se alcança como alicerçar o argumento tirado pelo Mmo. Juiz a quo – que, aliás, não deixa de reconhecer que a consequência do regime proposto é susceptível de redundar numa prova diabólica –, quando afirma que “o Ministério Público dispõe de mais meios para se desincumbir melhor do ónus que lhe toca do que o Réu do ónus da prova da ligação efectiva à comunidade portuguesa”. Com efeito, a prova da ligação efectiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, intimamente conexionada com a vida privada do interessado, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do requerente do pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. E como se disse no citado acórdão deste TCAS de 17.05.2012: “Não pode nunca a Conservadora dos Registos Centrais ou o Estado reunir tal prova, salvo se lançarem mão a uma verdadeira investigação policial, que certamente violaria o direito constitucionalmente protegido à reserva da intimidade da vida privada e familiar (cf. artigo 26º da CRP).”

A sentença recorrida acabou, assim e erradamente, por imputar ao Estado, através do Ministério Público, o ónus da prova dos factos impeditivos do direito da ora Recorrida, mas não exigiu a esta a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga.

Posto isto, de regresso ao caso concreto, perante o probatório fixado e ao que aqui importa, verifica-se que a ora Recorrida assenta o pedido de nacionalidade, formulado ao abrigo do art. 2.º da Lei da Nacionalidade, na circunstância de ser filha de pai que, no ano de 2006, adquiriu a nacionalidade portuguesa. Mas tal é manifestamente insuficiente para assegurar a existência de uma ligação efectiva à comunidade portuguesa.

A jurisprudência tem vindo, ao longo dos anos, a defender que a ligação efectiva à comunidade nacional há-de ser aferida por todo um conjunto de factores, inter alia, como o domicílio, a língua, as relações familiares e de amizade, a integração social e económico-profissional, um conhecimento mínimo da História e da Geografia do País, ou seja, de tudo aquilo em que se possa radicar um sentimento de pertença. Isto em ordem a expressar um sentimento de pertença perene à Comunidade Portuguesa (neste sentido o ac. deste TCAS de 13.11.2008, proc. n.º 3697/08). Exige-se, entendemos nós, a verificação de elos consistentes de natureza económica, profissional, social e cultural, de modo a corporizarem um sentimento de pertença efectiva à comunidade portuguesa, manifestados de forma mais ou menos prolongada e não através de actos isolados ou escassos.

Com especial aplicação no caso em apreço, especificou já o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 14.12.2006, proc. n.º 06B4329, que:

Não resulta da lei, para os casos de pretensão de aquisição da cidadania portuguesa por filho menor de quem a adquiriu, a desvinculação de algumas das suas exigências.

Apesar do interesse da família nuclear da unidade de nacionalidade de pais e filhos, a lei não o arvorou em elemento suficiente ou particularmente relevante para a aquisição da nacionalidade por estrangeiros filhos de quem tenha adquirido a cidadania portuguesa.

Não define a lei o que deve entender-se por ligação efectiva à comunidade nacional. Mas ela tem a ver com a identificação, por parte do interessado, com a comunidade nacional, como realidade complexa em que se incluem factores objectivos de coesão social.

Donde, reiterando o já afirmado, a ligação efectiva à comunidade nacional portuguesa envolve factores vários, designadamente o domicílio, a língua falada e escrita, os aspectos culturais, sociais, familiares, económicos, profissionais e outros, reveladores de um sentimento de pertença à comunidade portuguesa, em Portugal ou no estrangeiro. Necessário é pois que se possa concluir que se encontra estruturada e arreigada no âmago do candidato a caminhada para adquirir a nacionalidade portuguesa.

Ora, face aos elementos constantes dos autos e na ausência de outros, entende-se que se pode concluir pela inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional.

Com efeito, a interessada não instruiu o seu pedido – nem agora o fez no decurso da presente acção – com elementos que permitam demonstrar minimamente qualquer traço de afinidade com os usos, costumes, tradição e história do povo português. Apenas se sabe, com relevo para a apreciação do seu pedido que é filha de cidadão que adquiriu a nacionalidade portuguesa e que falará a língua portuguesa; mas tal não basta.

Tudo visto, temos que não vem minimamente demonstrada qualquer afinidade com os usos, costumes, tradição e história do povo português, sendo que a circunstância de ser filha de cidadão que adquiriu a nacionalidade portuguesa não representa, por si só – qual conditio sine qua non – o preenchimento do requisito da ligação efectiva à comunidade portuguesa.

Como se acabou de dizer, a circunstância de ser filha de progenitor a quem foi atribuída a nacionalidade portuguesa não pode ser arvorado em elemento bastante de ligação à comunidade portuguesa. Caso contrário, bastaria invocar esse singelo fundamento para que a nacionalidade fosse automaticamente concedida, fundamento esse não acolhido pelo legislador. Neste ponto, necessário é ter presente que, sendo o texto ou a letra da lei o ponto de partida da interpretação – esta parte de um elemento determinado que é a sua fonte e procura exprimir a regra que é o seu conteúdo (cfr. Baptista Machado in Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1987, p. 182 e 189) – é também um elemento irremovível da interpretação jurídica. É nessa medida que o art. 9.º, n.º 2, do C. Civil consagra que: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”; ou seja, presumindo, sempre, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir-se de modo lógico e em termos adequados. Donde, não tendo sido erigido pelo legislador que a circunstância de se ser filho de progenitor a quem foi atribuída a nacionalidade portuguesa constituiria elemento bastante de ligação à comunidade portuguesa, não pode o intérprete-aplicador, sob pena de incorrer em interpretação correctiva, adoptar semelhante solução normativa.

Impor-se-ia, portanto, que ora Recorrida trouxesse ao processo outros elementos que pudessem fundar o direito à aquisição da nacionalidade portuguesa, na sequência do requerido junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal na cidade da Praia, Cabo Verde. O que, apesar de para tanto instada, não fez.



III. Conclusões

Sumariando:

i) Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional.

ii) O ónus da prova para efeitos do disposto no artigo 9.º, al. a), da Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade rege-se pelo disposto na lei geral, designadamente nos artigos 342.º e 343.º do C. Civil.

iii) A prova da ligação efectiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, intimamente conexionada com a vida privada do interessado, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do requerente do pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. O que é consentâneo com as exigências de instrução do procedimento administrativo que recaem sobre o requerente do pedido de aquisição da nacionalidade.

iv) Não demonstra a existência de uma ligação efectiva à comunidade portuguesa, a interessada que assenta o pedido de aquisição da nacionalidade na circunstância de ser filha de pai que, no ano de 2006, adquiriu a nacionalidade portuguesa.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

- Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida; e

- Julgar procedente a presente oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, determinando, em consequência, o arquivamento do respectivo processo na Conservatória dos Registos Centrais.

Custas pela Recorrida, não sendo por esta devido o pagamento da taxa de justiça neste TCAS uma vez que não contra-alegou.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2015



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Pedro Marchão Marques


____________________________
Paulo Gouveia


____________________________
Cristina Santos


Voto de Vencido:

Salvo o devido respeito pela tese que obteve vencimento, entendemos que na acção para oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa incumbe ao Ministério Público o ónus da prova da existência dos factos impeditivos do direito [aquisição da nacionalidade] que o interessado quis fazer valer [artºs.342°, n° 2 e 343° do Cód. Civil], conforme acórdão deste TCAS proferido no rec. n°11308/14 de 10.JUL.2014 de que fomos relatora, pelos fundamentos sucintamente fixados nas conclusões sumariadas do acórdão do STA de 19.06.2014, proferido no rec. n° 103/14, como segue:
”(…).
1. De acordo com a redacção inicial da Lei 37/81 "o estrangeiro casado com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do casamento" (art.° 3.°/l) sendo fundamento de oposição a essa aquisição "a manifesta inexistência de qualquer ligação efectiva à comunidade nacional" [art.° 9.°, al.a a)].
2. A jurisprudência considerou que, tendo em conta os princípios gerais do ónus da prova inscritos no art.° 342.° do CC e os termos daquelas normas, cabia ao VI.P. - na acção a propor a coberto do disposto nos art.°s 10.° daquela Lei e 56.° do DL 237-A/2006 - provar que o interessado não tinha qualquer ligação a Portugal.
3. Todavia, o legislador, resolveu alterar a redacção dessas normas pelo que, a partir da entrada em vigor da Lei 25/94, de 19/08, só o estrangeiro casado com português ''há mais de três anos" é que podia adquirir a nacionalidade por essa via, passando a ser fundamento de oposição "a não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional". O que significa que a partir de então cabia ao pretendente da nacionalidade o ónus da prova da sua ligação efectiva a Portugal.
4. No entanto, a partir da entrada em vigor da Lei 2/2006 passou a constituir fundamento de oposição à aquisição de nacionalidade "a inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional" (nova redacção da al.a a) do art.° 9.°) a qual, como decorria da Exposição de Motivos dessa Lei, tinha de ser provada pelo M.P.
5. Não se pode concluir que aquela ligação não existe se apenas tiver sido provado que a Requerente, natural e residente no Brasil, casou, em 1991, com um cidadão português nascido e residente no Brasil, de quem tem dois filhos com nacionalidade portuguesa e que, em 2009 (isto é, 18 anos depois), manifestou vontade de ser cidadã nacional tendo nessa declaração afirmado que frequentava a comunidade portuguesa no Brasil e participava activamente nos seus eventos. (..)".
Neste sentido, julgaria improcedente o recurso, confirmando a sentença proferida.
Lisboa, 29JAN.2015
Cristina dos Santos.