Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:901/13.6BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:03/10/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:REVERSÃO
GERÊNCIA DE FACTO
Sumário:I. O exercício efetivo de funções de gestão é um dos pressupostos da responsabilidade tributária subsidiária dos gestores.

II. Cabe à AT o ónus da prova do exercício efetivo de funções de gerente por parte do revertido.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 16.10.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada procedente a oposição apresentada por S… (doravante Recorrida ou Oponente), ao processo de execução fiscal (PEF) n.º 11……../01…… e apensos, que o Serviço de Finanças (SF) de Olhão lhe moveu, por reversão de dívidas de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), atinentes ao ano de 2010, e de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) – retenções na fonte, do ano de 2011, da devedora originária P…, Lda.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1 – A, aliás douta sentença recorrida, enferma de erro de julgamento ao não dar como provado os factos de a oponente dar ordens aos empregados do café, proceder às encomendas de café e ter participado na contratação de dois técnicos de contas.

2 – Versão dos factos disponível a partir do depoimento de I…, cuja fiabilidade não é posta em causa pelos factores expressos na sentença que auxiliaram o juiz recorrido a desvalorizá-la, e, é confirmada pela imparcialidade da testemunha ao relatar factos que tanto lhe são favoráveis como à oponente.

3 – Por outro lado, ofende preceitos do direito substantivo, como sejam as disposições do art. 24 da LGT e dos arts. 252, 259, 260 e 261 do CSC.

4 – Pois, aqueles factos bem como a assinatura de cheques são actos que se subsumem integralmente à noção de gerência de facto.

5 – Porque dessa forma se vincula e viabiliza a actividade económica da empresa, que supõe necessariamente o estabelecimento de relações jurídicas com terceiros.

6 – Pelo que, mal se concebe não os interpretar como exercício efectivo da gerência.

7 - Suporte bastante para a legal efectivação da responsabilidade subsidiária do oponente.

8 – Por outro lado, tal como vem sendo jurisprudencialmente decidido, provada a gerência de direito, como no caso acontece, infere-se a gerência de facto, por presunção judicial.

9 – Ora, face aos dados de facto emergentes do material produzido, independentemente de terem ou não resultado por impulso da parte sobre que pesava o ónus de as produzir, quer por impulso da parte contrária, quer por iniciativa do tribunal, (art. 413 CPC), parece-se-nos, que essa presunção não foi abalada.

10 – Daí vem que, na hipótese sub judice, se verifica o requisito do efectivo exercício das funções de gerente, legalmente exigido à responsabilização subsidiária.

11 – Assente o qual, é claro que não podia ser julgada procedente a oposição em causa.

Assim, pelo exposto, e, principalmente, pelo que será suprido pelo Douto Tribunal, deve ser revogada a sentença recorrida, como é de JUSTIÇA”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto?

b) Há erro de julgamento, em virtude de se poder concluir que a Recorrida foi efetiva gestora da devedora originária?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“ 1.

Em 23 de Maio de 2013, o Processo de Execução Fiscal n.º 11……/01….. e outros, instaurado no Serviço de Finanças de Olhão contra P…, Lda., reverteu contra S… – cfr. fls.105 e 102 dos autos.


2.

Em causa está a cobrança de € 5.252,76, relativos a IRS de 2011 e IVA do último trimestre de 2010, cujas datas limites de pagamento ocorreram em 15 e 20 de Fevereiro de 2011 – cfr. fls. 106 dos autos.

3.

Desde 27 de Março de 2009 que a sociedade P…, Lda., se obrigava através da intervenção de um gerente, sendo a gerência constituída por S… e I… – cfr. fls. 53-54 dos autos.

4.

Era I… quem:

a) Determinava a compra da matéria-prima para o fabrico do pão e dos bolos;

b) Tomava todas as decisões referentes à actividade comercial, designadamente as de contratar fornecedores (que eram seus conhecidos há mais de duas décadas e que, por esse motivo, lhe davam crédito de quinze a trinta dias, o que permitia que o pagamento fosse efectuado com o produto da venda);

cfr. o depoimento das testemunhas.


5.

S…:

a) Em 24 de Março de 2011, entregou a S…– R…, SA, três cheques, com as datas de 30 de Julho de 2011, 30 de Agosto de 2011 e 30 de Setembro de 2011, para pagar o material que I… pretendia utilizar na construção de uma fábrica num pavilhão que este escolhera na zona industrial – cfr. fls. 82 e 135 dos autos e o depoimento das testemunhas;

b) Em 15 de Agosto de 2011, iniciou funções como Operador de Supermercado de 2.ª – cfr. fls. 157 dos autos;

c) Em 31 de Outubro de 2011, apresentou, na esquadra da PSP de Olhão, queixa contra I… por “violência psicológica/emocional” e “violência económica” contra si e as duas filhas menores – cfr. fls. 150-156 dos autos;

d) Deduziu, contra I…, procedimento cautelar de arrolamento no 3.º juízo do Tribunal Judicial de Olhão, que correu termos sob o n.º …/… – cfr. fls. 16 dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se provou que:


A.

I… tenha proibido S… de entrar nos estabelecimentos comerciais explorados pela sociedade devedora originária.

B.

I… tenha mudado a fechadura dos estabelecimentos comerciais explorados pela sociedade devedora originária.

C.

Em 2011, S… recebeu remunerações pagas pela sociedade devedora originária”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.

Quanto aos factos 4 e 5 do probatório, o Tribunal formou a sua convicção a partir do depoimento das testemunhas.

Inicialmente, num primeiro depoimento que durou cerca de dez minutos, a testemunha I… declarou que a ideia de formar a empresa foi sua e da Oponente, tendo sido também de ambos a ideia de contratar o primeiro contabilista, irmão da Oponente, e que a responsabilidade pelos pagamentos se encontrava dividida, cabendo à testemunha pagar aos funcionários e à Oponente pagar aos fornecedores, às Finanças e à Segurança Social, estando as tarefas divididas para não cair tudo em cima da testemunha que trabalhava na empresa de noite e de dia, daqui decorrendo que o exercício da gerência era partilhado.

Chamado para ser ouvido pela segunda vez, cerca de uma hora depois, a testemunha esclareceu que para abrir uma fábrica na zona industrial adquiriu material de construção para construir divisões num pavilhão arrendado. Questionado sobre quem tinha escolhido o pavilhão, respondeu instintivamente que tinha sido ele, corrigindo de imediato a resposta para imputar a escolha quer à testemunha quer à Oponente, passando a declarar, por vezes de forma algo forçada, que foram sempre ambos que trataram das encomendas com o fornecedor. Declarou ainda que a Oponente passou os cheques para pagar o material contra a entrega deste.

Mais informou que, no início da actividade empresarial, os fornecedores o conheciam por trabalhar na área há 25 anos, ao contrário da Oponente que era trabalhadora em supermercado - para onde regressou após a separação da testemunha, com quem tinha duas filhas -, sendo ele quem negociava os pedidos de matéria-prima e fazia os preços, conseguindo assim boas condições (crédito a quinze / trinta dias) por já ter uma relação comercial anterior, o que permitia que o pagamento da matéria-prima fosse efectuado com o resultado da venda do produto final.

Esclareceu que era a testemunha quem dizia à Oponente para efectuar o pagamento de certa quantia a determinado fornecedor em data que também lhe comunicava, sendo que, inicialmente, era a testemunha quem tratava dos pagamentos à Segurança Social, tendo passado a mandar a Oponente realizar tais pagamentos por o serviço da sociedade ter aumentado e não ter disponibilidade para continuar a fazer essa tarefa. À pergunta “A padaria conseguia estar em funcionamento sem a D. S…?” respondeu inequivocamente que “Conseguia”, tendo logo de seguida respondido à questão “E a padaria conseguia estar em funcionamento sem o senhor?” com “Sem mim, não”, tendo alguns segundos depois acrescentado que era o responsável pela produção. Referiu-se ao padeiro como “o meu funcionário”. Tudo indiciário, para o tribunal, de que era a testemunha I… quem conduzia os destinos da sociedade devedora originária.

A testemunha, que imputara inicialmente o fecho dos estabelecimentos ao facto de a Oponente tirar dinheiro da caixa do estabelecimento que ficava sito junto ao largo da feira, disse que, afinal, o primeiro estabelecimento a fechar fora o que ficava junto à igreja, que tinha a zona de fabrico onde a testemunha trabalhava, acrescentando então, face à dúvida do tribunal quanto aos motivos, que a testemunha também ia a esse estabelecimento tirar dinheiro do caixa. A testemunha declarou ainda que a Oponente apresentou queixa na polícia contra ele, por agressão.

Em sede de acareação, a testemunha C… reagiu com expressão de surpresa e incredulidade à afirmação de que o negócio relativo à aquisição do material para o pavilhão industrial fora realizado na padaria com a presença das duas testemunhas e da Oponente, tendo corrigido que a conversa ocorrera por telefone, apenas com a testemunha I…, a quem foi também entregue o material. O tribunal considerou a reacção de C… genuína por não ser de fácil simulação num tão curto espaço de tempo (décimas de segundo), pois que a testemunha não sabia o rumo que a conversa ia tomar por o assunto não ter sido abordado anteriormente.

A final, sistematizando o que foi declarado, I… assentiu que era ele quem dizia à Oponente a quantia que devia ser paga, em que dia e a que fornecedor, não devendo o pagamento ser efectuado noutros montantes ou a outras pessoas; e que no dia do pagamento ele até poderia não estar presente, sendo a Oponente quem efectuava o pagamento, pegando na carteira e preenchendo um cheque de acordo com aquelas instruções, assinando-o e entregando-o ao representante do fornecedor que lhe fora previamente indicado.

A circunstância de o relacionamento da testemunha I… com a Oponente ser anormal, por referência a um quadro de sã convivência pessoal ou social, e o modo como o depoimento foi prestado, inicialmente co-responsabilizando sempre a Oponente pela gestão mas, depois, a espaços, assumindo que era a testemunha quem tinha o domínio sobre o negócio, o que corrigia posteriormente para dividir as responsabilidades da gestão, e o modo desgarrado e não circunstanciado como declarou que a Oponente tirava dinheiro da caixa ou fazia encomendas de café (a estas apenas se referindo após instâncias da Senhora Representante da Fazenda Pública na fase final da acareação), fez com que o tribunal não valorasse por inteiro o depoimento desta testemunha, formando a convicção de que a Oponente não tinha o efectivo poder de decidir os destinos da sociedade, fazendo apenas aquilo que a testemunha , que sobre ela tinha um ascendente, lhe indicava que devia ser feito.

Quanto aos factos não provados, os pontos A e B, alegados nos artigos 12.º a 15.º da Petição Inicial, foram objecto de testemunhos contraditórios, não tendo o tribunal formado convicção sobre a sua verificação. E para prova do ponto C, alegado no artigo 10.º da Contestação, a Fazenda juntou os documentos de fls. 89-94 que, todavia, respeitam aos anos de 2009 e 2010, quando o período em causa nos autos respeita a 15 e 20 de Fevereiro de 2011”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na decisão proferida sobre a matéria de facto, na medida em que devia ter dado como provado os factos de a Oponente dar ordens aos empregados do café e proceder às encomendas de café, atento o depoimento de I…, e de ter participado na contratação de dois técnicos de contas.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram apenas em parte cumpridos, pelo que se irá proceder à apreciação do requerido no segmento em que os mesmos foram respeitados. Quanto ao facto de a Recorrida ter participado na contratação de dois técnicos de contas, os mencionados ónus não foram cumpridos, rejeitando-se, desde já, o recurso nessa parte.

Refira-se ainda que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito.

Feito este introito, cumpre apreciar o requerido:

¾ Factos atinentes ao café:

Considera a Recorrente, como mencionado, que, face ao depoimento de I…, ficou provado que a Oponente dava ordens aos empregados do café e procedia às encomendas de café.

Antes de mais, refira-se que, na apreciação do requerido, há que fazer uma caraterização do depoimento em causa, caraterização essa, aliás, já adequadamente efetuada pelo Tribunal a quo, conforme resulta transcrito em II.C.

Posto isto, desse depoimento, que se dividiu em três momentos (dois momentos de inquirição e um terceiro de acareação), decorre, desde logo, que a testemunha começou por ter uma necessidade, diremos até forçada, de incluir a Recorrida enquanto decisora em todos os aspetos relacionados com o depoimento.

No entanto, consoante esse mesmo depoimento ia decorrendo, verificou-se que o depoente já ia alterando o que tinha dito, sobretudo quando não inquirido diretamente sobre um determinado assunto, mas abordando-o, por surgir a propósito.

Uma dessas situações foi, justamente, a relacionada com as encomendas a fornecedores, que a testemunha começou por dizer que eram todas tratadas pela Recorrida, percebendo-se, afinal, que essas encomendas eram feitas pela testemunha e que a Recorrida se limitava a pagá-las, de acordo com ordens dadas pela testemunha.

Ora, quanto às encomendas de café, abordadas en passant no final do depoimento, a testemunha refere de forma lacónica que era a Recorrida quem encomendava café, sem explanar sequer essa afirmação e quando já tinha afirmado, de forma detalhada, como ele próprio lidava com os fornecedores.

Como tal, não se considera que, face exclusivamente ao depoimento de I…, tal se considere provado.

Por outro lado, o depoimento da testemunha C…, irmão da oponente e que chegou a trabalhar como contabilista da sociedade devedora originária, vai em sentido distinto, ou seja, no sentido de que quem negociou os contratos de café foi I….

Face ao descrito, não se considera que resultou provado tal facto.

Improcede, pois, o requerido nesta parte.

Quanto à parte relativa ao facto de a Recorrida dar ordens aos empregados do café, também aqui não se concorda com a Recorrente.

Com efeito, a testemunha I… afirmou, desde o primeiro momento, que a gestão do pessoal era feita por si, tendo, aliás, chegado a dizer que dava ordens ao pessoal do café (esclareça-se, do estabelecimento onde a Recorrida era funcionária). É certo que disse, laconicamente mais uma vez, que a Oponente dava ordens aos empregados do café, não se esclarecendo minimamente que ordens e em que termos. Assim sendo, considera-se que a prova produzida não é de molde a dar como provado o facto em causa.

Como tal, também nesta parte se indefere o requerido.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que ficou demonstrado que a Recorrida era gerente de facto da sociedade devedora originária.

In casu, a dívida revertida respeita aos anos de 2010 e 2011.

No que concerne à responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores de sociedades pelas dívidas tributárias, somos remetidos para o art.º 24.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), nos termos do qual:

“1. Os administradores (…) e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento”.

À semelhança do que já decorria do art.º 13.º do CPT, o art.º 24.º, n.º 1, da LGT determina que a simples gestão de facto é suficiente para acionar a responsabilidade em causa, não sendo, por outro lado, suficiente a mera gerência ou administração de direito.

O art.º 24.º da LGT demarca duas situações, nas duas alíneas do seu n.º 1.

A primeira, correspondente à sua al. a), refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções quer no momento de ocorrência do facto tributário, quer após este momento, mas antes do término do prazo de pagamento da dívida tributária, sendo esta responsabilidade pelo depauperamento do património social, de molde a torná-lo insuficiente para responder pelas dívidas em causa. A culpa exigida aos gerentes ou administradores, nesta situação, é uma culpa efetiva — culpa por o património da sociedade se ter tornado insuficiente. Não há qualquer presunção de culpa, o que nos remete para o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que cabe à administração tributária (AT) alegar e provar a culpa dos gerentes ou administradores.

A segunda, constante da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, refere­-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções no período no qual ocorre o fim do prazo de pagamento ou entrega do montante correspondente à dívida tributária. No art.º 24.º, n.º 1, al. b), da LGT, presume-se que a falta de pagamento da obrigação tributária é imputável ao gestor. Assim, atentando na al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, o momento relevante a considerar é o do termo do prazo para pagamento voluntário. Esta presunção de culpa é ilidível, cabendo ao gestor revertido o ónus de a ilidir.

In casu, o despacho de reversão proferido foi-o ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, ou seja, considerando os potenciais responsáveis à data do término do prazo para pagamento voluntário.

Como se referiu anteriormente, o regime da responsabilidade tributária tem subjacente o exercício efetivo de funções por parte do gestor.

Trata-se do ponto de partida de aplicação do regime, sendo que, depois de demonstrada a gestão de facto [cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06)], aplicar-se­-á, num segundo momento, a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Cabe à AT, desde logo e em primeira linha, o ónus da alegação e prova da efetiva gerência ou administração por parte dos revertidos.

Essa prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelos potenciais revertidos, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.

Durante vários anos, prevaleceu o entendimento de que, demonstrada que fosse a gestão de direito, a AT beneficiaria de uma presunção de gestão de facto, cabendo, segundo este entendimento, ao revertido demonstrar não ter exercido efetivamente as referidas funções.

Na sequência do Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06), operou-se uma alteração jurisprudencial, no sentido de que “… [a] presunção judicial não tem existência prévia, é um juízo casuístico que o julgador retira da prova produzida num concreto processo quando a aprecia e valora. (...) Ninguém beneficia de uma presunção judicial, porque ela não está, à partida, estabelecida, resultando só do raciocínio do juiz, feito em cada caso que lhe é submetido. (...) Do que se trata é de censurar a aplicação que fez de um regime legal, afirmando a existência de uma presunção judicial e retirando, maquinalmente, de um facto conhecido, outro, desconhecido, como se houvesse uma presunção legal, que não há; e afirmando a inversão do ónus da prova, quando tal inversão não ocorre, no caso, na falta de presunção legal”.

Como tal, continua o referido Acórdão do Pleno:

“Quando, em casos como os tratados pelos arestos aqui em apreciação, a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência.

(…) [N]ada a dispensa de provar os demais factos, designadamente, que o revertido geriu a sociedade principal devedora. Deste modo, provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização(sublinhado nosso).

Face a este entendimento, unânime na jurisprudência atual, a que se adere, decorre, como referido, que cabe, em primeira linha, à AT alegar e demonstrar que o revertido exerceu, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, efetivas funções de gerência, entendidas como funções de gestão e representação da sociedade. (cfr., para as sociedades por quotas, os art.ºs 192.º e 252.º do Código das Sociedades Comerciais).

O mesmo resulta da interpretação do art.º 11.º do Código do Registo Comercial (CRCom).

Com efeito, nos termos desta disposição legal, “[o] registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida”.

Atentando na finalidade inerente ao registo comercial e, nesse seguimento, chamando à colação o art.º 1.º do CRCom, do seu n.º 1 resulta que “[o] registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

Sendo certo que é legalmente obrigatória a inscrição da nomeação dos membros dos órgãos de administração de sociedades comerciais, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. m), do CRCom., da leitura conjunta das disposições legais referidas resulta que as mesmas visam dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto(3). Assim, e no que ao registo da nomeação de uma determinada pessoa como gerente de uma determinada sociedade a presunção que decorre do art.º 11.º do CRCom é uma presunção da gestão de direito (“situação jurídica”), e não da de facto.

Portanto, também por esta via, não se pode extrair da gerência de direito a gerência de facto.

Posto este enquadramento, cumpre apreciar o caso em concreto.

Desde já se adiante que não assiste razão à Recorrente.

Assim, é certo que ficou provada a emissão dos cheques pré-datados, em 24.03.2011, pela Recorrida [cfr. facto 5.a)]. No entanto, ficou igualmente provado que todas as decisões relativas a fornecedores eram tomadas por I… [cfr. facto 4.b)], facto, aliás, nunca posto em causa.

Ora, a entrega de meios de pagamento tem de ser analisada no contexto em que se integra.

Num contexto como o dos autos, em que as decisões de gestão estavam efetivamente concentradas numa outra pessoa, não se pode configurar como ato de gestão.

É um mero ato material de cumprimento do que é ordenado por quem tomava todas as decisões referentes à atividade.

Logo, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

Por outro lado, como hoje é pacífico, não se pode extrair, sem mais, da gestão de direito a gestão de facto, nos termos já referidos. Daí que não se possa, isoladamente, apelar ao regime legal atinente às sociedades por quotas, como feito pela Recorrente, sem atender à exigência do exercício efetivo de funções, decorrente do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Ademais, no caso, a prova produzida nunca permitiria a conclusão extraída pela Recorrente, dado que da mesma resulta que não era a Oponente quem exercia as efetivas funções de gerente da devedora originária.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 10 de março de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)


_______________________
(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
(3) V. a este respeito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2019 (Processo: 357/09.8BELRS), bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11.03.2010 (Processo: 00349/05.6BEBRG).