Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2340/07.9 BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:AÇÃO DE INSPEÇÃO
ATOS PREPARATÓRIOS
CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
Sumário:I. O RCPIT prevê a prévia preparação do procedimento inspetivo, a realização, por parte da AT, de atos preparatórios daquele procedimento.

II. Os atos preparatórios distinguem-se dos atos de materiais do procedimento inspetivo, pelo que a data da sua ocorrência não é a pertinente para efeitos de contagem do período de suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação.

Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

M. – H. I., SA (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 30.06.2022, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e a dos respetivos juros compensatórios, referentes ao exercício de 2002.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“A. O presente recurso é interposto da douta sentença de fls. do Tribunal Tributário de Lisboa, proferida no processo de impugnação judicial n.º 2340/07.9BELRS, apresentada contra a liquidação adicional do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) referente ao ano de 2002, no montante de € 547.039,23 (quinhentos e quarenta e sete mil, trinta e nove euros e vinte e três cêntimos), a qual decidiu, salvo o devido respeito, mal, no sentido da improcedência daquela impugnação, e consequente declaração de legalidade da liquidação que constitui o seu objeto.

B. Salvo o devido respeito, considera a Recorrente que a Mma Juiz a quo claudicou na aplicação do Direito à matéria de facto que tomou como assente nos presentes autos, recaindo numa situação de manifesto erro de julgamento, designadamente quanto ao vício invocado pela Recorrente respeitante à caducidade da liquidação, sendo sobre esta matéria que o presente Recurso se debruçará.

C. Ora, não obstante, a douta sentença recorrida ter dissertado de forma correta e devida a matéria de Direito, sustentando-se de doutrina e jurisprudência que a Recorrente também, acompanha, não procedeu à correta e devida aplicação do direito aos factos que tomou como assentes nos presentes autos. Senão vejamos,

D. Considerou a sentença recorrida, no ponto 11 da matéria de facto que deu como assente, que as diligências levadas a cabo pela Recorrida, em momento anterior à data de 13.10.2006, por via das quais, esta «tinha notificado os administradores da Impugnante para prestarem esclarecimentos relativamente ao exercício de 2002, tinha notificado vários clientes da Impugnante para prestarem declarações sobre as operações praticadas pela empresa no exercício de 2002, tinha instaurado diversos processos de derrogação do sigilo bancário, no âmbito de diversas operações realizadas pela Impugnante com alguns clientes durante o exercício de 2002 e realizado várias reuniões com administradores da Impugnante e clientes desta relativamente ao exercício de 2002 (prova documental fls. 1 e seguintes dos autos informáticos)»,

E. ... consubstanciavam meros atos preparatórios da ação de inspeção tributária externa, albergados no artigo 44.º do RGIT, e não como verdadeiros atos materiais da mesma, conforme defendeu a Recorrente, o que a levou a concluir e a determinar que: «estando em causa uma liquidação de IRC no ano de 2002, e, estando o decurso do prazo de caducidade suspenso entre 13/10/2006 e 21/03/2007, por via da inspeção externa, a notificação da liquidação, em 31/05/2007, ocorreu antes de se completar o prazo de caducidade de 4 anos previsto no artigo 45º, n.º 1 da LGT.»

F. Ora, não pode a Recorrente concordar e aceitar tal entendimento por manifestamente contrário à realidade.

G. Mais se diga que não critica, e até defende, a Recorrente que a ação de inspeção tributária levada a cabo pela Recorrida, se tratou de um procedimento de inspeção externo, incidente sobre o IRC do exercício de 2002, entende, contudo, a Recorrente que não terá a Mma Juiz a quo, face aos elementos carreados para os autos, determinado com sensatez e de forma correta, o momento em que tal procedimento se terá iniciado, o qual teve repercussões, claramente, na decisão que é aqui colocada em causa.

H. Na verdade, compulsando a matéria de facto que recordámos no ponto 11 destas alegações e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, constata-se que, sem embargo, de os administradores terem assinado a nota de diligência que daria conta do início formal da ação inspetiva (ponto 4 da matéria assente), no dia 13.10.2006, os serviços de inspeção haviam já efetuado, em momento muito anterior, relativamente ao exercício de 2002, e às operações aqui em causa, as seguintes diligências:

a). Diversas notificações solicitando o envio de documentos relacionados com o exercício de 2002;

b). Notificação aos administradores da empresa, tendo em vista prestarem diversos esclarecimentos relativamente ao exercício de 2002;

c). Notificação a clientes da impugnante, que tendo adquirido frações autónomas foram chamados para prestar declarações sobre as operações praticadas pela empresa no exercício de 2002;

d). Instauração de diversos processos para derrogação do sigilo bancário, no âmbito de diversas operações realizadas pela empresa com alguns clientes durante o exercício de 2002;

e). Diversas reuniões realizadas pelos responsáveis dos serviços de inspeção tributária com os administradores da empresa tendo por pano de fundo as operações realizadas no exercício de 2002;

f). Diversas audições de clientes da empresa relativamente a operações realizadas durante o exercício de 2002.

I. Diligências estas que foram consideradas e enquadradas, pela Mma Juiz a quo, como meros atos preparatórios do procedimento inspetivo, encaixilhadas na previsão do artigo 44.º do RCIPTA, tendo, por essa razão, determinado o início do procedimento inspetivo no dia 13.10.2006, altura em que os administradores da Recorrente assinaram a nota de diligências que daria conta do início formal daquele procedimento,

J. ... e não, como seria de esperar pela correta aplicação do Direito e na sequência do cariz e intuito investigatório que as mesmas têm, como atos materiais da inspeção e que encontram previsão nos artigos 2.º, n.º 2, 29.º, 55.º e 56.º e 57.º todos do RCPITA.

K. Com efeito, as diligências levadas a cabo pela Administração Tributária em momento anterior à assinatura dos administradores da Recorrente da nota de diligências que daria conta do início formal da ação inspetiva, pretendiam aqueles serviços proceder:

a) à confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários; (cfr. artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do RCPITA);

b) A indagação de factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários; (cfr. artigo 2.º, n.º 2 alínea b) do RCPITA);

c) Tomar declarações dos sujeitos passivos, membros dos corpos sociais, técnicos oficiais de contas, revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas, sempre que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributários; (cfr. alínea g) do artigo 29.º do RCPITA);

d) bem como, a realização de ações de averiguação ou investigação de que a administração tributária seja legalmente incumbida, (cfr. alínea I) do artigo 29.º do RCPITA),

L. ... tudo atos que pretendiam dar início à investigação inerente à realidade tributária da aqui Recorrente, referente ao IRC do exercício de 2002, que consubstanciam atos materiais do procedimento de inspeção, bem como, e consequentemente, permitem, antecipar de facto a data de início do procedimento inspetivo a uma data anterior à da assinatura da nota de diligências, em 13.10.2006. Pois, vejamos,

M. Das diligências levadas a cabo pela Administração Tributária anterior a esta data foi, a título de exemplo, a tomada de declarações por parte dos administradores da Recorrente e de Clientes seus, bem como a instauração de diversos processos para derrogação do sigilo bancário, no âmbito de diversas operações realizadas pela empresa recorrida com alguns clientes durante o exercício de 2002, a qual, por razões óbvias, não pode ser considerada como um ato meramente preparatório do procedimento inspetivo, mormente, porque, na sua substância está toda uma atividade averiguadora da situação económica e tributária do contribuinte, destinada à obtenção de elementos que não estavam à sua disposição, realizadas com um objetivo manifestamente investigatório.

N. Diga-se em abono da verdade que face à vasta documentação recolhida nesta fase e ao tero das diligências efetuadas, poderemos concluir que a sua inclusão na ação de inspeção constitui prática corrente da AT.

O. E tendo toda esta atividade de averiguação e de investigação ocorrido em momento anterior à assinatura pelos administradores da nota de diligências, que daria conta do início formal do procedimento inspetivo, em 13.10.2006, deve aquele ser considerado como a data do início efetivo do procedimento inspetivo e consequentemente ser tido em consideração para efeitos de contagem do prazo de 6 meses de suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação.

P. E, pergunta-se, então, quando é que o procedimento de inspeção se iniciou de facto?

Q. Não obstante, poder ter havido outras diligências anteriores, a Recorrente considera que o procedimento inspetivo teve o seu início efetivo e material em 19 de julho de 2006, em virtude desta ser a data em que foram efetuadas diversas diligências cuja prova foi carreada para os autos e que mencionam expressamente esta data, e as quais devem ser consideradas no âmbito do processo de inspeção (Vd. notificações constantes do Anexo A), como sejam: a notificação de comparência dos administradores da Recorrente e, a alguns dos seus clientes, para prestarem declarações.

R. Declarações estas que foram solicitadas pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa com um único propósito: investigar a situação tributária da Recorrente nos exercícios de 2002 e 2003.

S. Assim, face a estas características, é manifesto que estas constituem atos materiais do procedimento inspetivo, os quais ocorreram no dia 19.07.2006.

T. Deste modo, e dando-se a esta data (19.07.2006) o início material do procedimento inspetivo e o seu término em 21.03.2007, é manifesto que teve aquele a duração de 245 dias. Ou seja, mais do que seis meses.

U. Assim sendo, atendendo a que a ação de inspeção durou mais do que 6 meses, cessou a suspensão da contagem do prazo de caducidade, retomando-se novamente a contagem desde o seu início.

V. Ora, é consabido, que o tributo em causa é o IRC, e o direito à sua liquidação caduca se a mesma não for devidamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, de acordo com o disposto no artigo 45º. nº.1 da LGT.

W. No caso em apreço, constatamos que, se por virtude do início da ação de inspeção, a contagem do prazo de caducidade se suspendeu em 19 de julho de 2006 (data do início substancial/material da ação de inspeção - face às diligências levadas a cabo pela Administração Tributária, que consubstanciam atos materiais do procedimento inspetivo) a sua contagem só poderia ter sido retomada em 21 de março de 2007 (data da notificação do Relatório, de acordo com o disposto nos artigos 60º. e 62º. do RCPIT, com indicação da fixação do valor tributável), tudo nos termos do disposto no artigo 46º. da LGT, se tal ação inspetiva tivesse durado menos de 6 meses, o que como vimos não aconteceu.

X. Deste modo, o prazo de caducidade nunca poderia ultrapassar a data de 31 de dezembro de 2006, ou seja, quatro anos.

Y. Ora, como resulta dos autos, a Recorrente apenas tomou conhecimento do ato de liquidação do IRC do ano de 2002, em 31 de maio de 2007.

Z. E, nesta data, o direito à liquidação do IRC aqui em causa estava, obviamente, caducado.

AA. Assim, decorrido o prazo previsto nos artigos 45º. e 46º. da LGT e artigo 93º do CIRC, o direito à liquidação do IRC do ano de 2002, caducou em 31 de dezembro de 2006, tornando- se o imposto, consequentemente, inexigível a partir daquela data.

BB. Sendo, deste modo, a liquidação de IRC do exercício de 2002 colocada em crise nos presentes autos, ilegal, por não exigível e por se encontrar caduca.

CC. Não tendo sido esta a ponderação feita na sentença recorrida, deve a mesma ser revogada, por vício de erro de julgamento, face à incorreta aplicação do direito aos factos, conforme acima explanado.

Em face do exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida no sentido da procedência da impugnação judicial apresentada contra o ato liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) referente ao ano de 2002, e a sua, consequente, revogação e anulação, por ilegal.

Assim se fazendo a verdadeira e costumada

Justiça”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos quais, por decisão sumária de 20.03.2023, o mesmo se declarou incompetente em razão da hierarquia, ordenando a sua remessa a este TCAS.

Neste TCAS, o Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, dado que está caducado o direito à liquidação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. As liquidações impugnadas tiveram como base o Relatório Final da acção inspectiva realizada à Impugnante do qual consta designadamente o seguinte: (prova documental cfr. fls 125 e seguintes do processo administrativo)

Imagem: original nos autos

Imagens: Originais nos autos

Imagens: Originais nos autos

2. O Relatório de Inspecção Tributária mencionado no facto provado anterior foi notificado à Impugnante a 21 de Março de 2007 (prova documental documento nº6 junto com a petição inicial).

3. Anteriormente, a Impugnante tinha sido notificada por carta aviso datada de 27 de Setembro de 2006 com o seguinte teor: (prova documental documento nº1 junto com a petição inicial)

Imagem: Original nos autos

4. A 13 de Outubro de 2006, os administradores da Impugnante assinaram a nota de diligência dando conta do início da acção inspectiva (prova documental documento nº2 junto com a petição inicial).

5. A 21 de Fevereiro de 2007, os administradores da Impugnante assinaram a nota de diligência dando conta do fim da acção inspectiva (prova documental documento nº3 junto com a petição inicial).

6. A 28 de Fevereiro de 2007, a Impugnante foi notificada para querendo exercer o direito de audição relativamente ao projecto do relatório final (prova documental documento nº4 junto com a petição inicial).

7. A Impugnante exerceu o seu direito de audição a 9 de Março de 2007 (prova documental documento nº5 junto com a petição inicial).

8. A Impugnante solicitou a revisão do imposto apurado (prova documental documento nº7 junto com a p.i.).

9. No âmbito do procedimento de revisão os peritos não chegaram a acordo (prova documental documento nº8 junto com a p.i).

10. As liquidações impugnadas foram notificadas à Impugnante a 31 de Maio de 2007 (acordo e processo administrativo).

11. A Entidade Demandada, antes de 13 de Outubro de 2006, tinha notificado os administradores da Impugnante para prestarem esclarecimentos relativamente ao exercício de 2002, tinha notificado vários clientes da Impugnante para prestarem declarações sobre as operações praticadas pela empresa no exercício de 2002, tinha instaurado diversos processos de derrogação do sigilo bancário, no âmbito de diversas operações realizadas pela Impugnante com alguns clientes durante o exercício de 2002 e realizado várias reuniões com administradores da Impugnante e clientes desta relativamente ao exercício de 2002 (prova documental fls 1 e seguintes dos autos informático).

12. O administrador da Impugnante prestou os seguintes esclarecimentos à Entidade Demandada (prova documental documento nº9)

Imagem: Original nos autos

Imagem: orgiginal nos autos

13. A presente impugnação judicial deu entrada no Tribunal a 22 de Agosto de 2007 (cfr. prova documental fls 1 e seguintes dos autos em suporte informático)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se detecta a alegação de factos essenciais relevantes para a decisão da causa que devam ser considerados como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Para convicção do Tribunal, na delimitação da matéria de facto supra provada, foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente e no seu conjunto. Designadamente nos documentos não impugnados juntos aos autos, referidos nos “factos provados”, com remissão para as folhas do processo onde se encontram, bem como à posição das partes sobre a matéria alegada. Os depoimentos das testemunhas arroladas não foram tidos em consideração na medida em que as testemunhas não revelaram conhecimento directo de factos relevantes para a apreciação do presente litígio”.


II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração.(1)

Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação do facto 4, transcrito em II.A:

4. A 13 de outubro de 2006, os administradores da Impugnante assinaram a ordem de serviço, emitida a 26.09.2006, dando conta do início da ação inspetiva (cfr. documento n.º 2 junto com a petição inicial).

II.E. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

14. A Administração Tributária remeteu à Impugnante e a V. S., na qualidade de administrador da Impugnante, ofícios, solicitando a comparência para reunião a 19.07.2006, para prestação de esclarecimentos sobre a atividade exercida nos anos de 2002 e 2003, ao abrigo do disposto nos art.º 9.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT) e 59.º da Lei Geral Tributária (LGT), referindo estar-se no decurso de preparação prévia de ação inspetiva e informando que a falta de comparência determinaria o desencadear de procedimentos respeitantes à realização da ação inspetiva externa (cfr. Anexo A junto com a petição inicial).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento, quanto à caducidade do direito à liquidação

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, se encontra caducado o direito à liquidação, dado discordar que a ação inspetiva se tenha iniciado com a assinatura da ordem de serviço.

Vejamos então.

O direito de a administração tributária (AT) liquidar impostos não pode ser exercido a todo o tempo, estando limitado pelo respetivo prazo de caducidade.
Como referido por Saldanha Sanches, (2) “[o] principal limite temporal para a exigibilidade das obrigações fiscais e para a atribuição de responsabilidade ao contribuinte coincide com o fim do poder de aplicação da lei a um certo facto tributário: a caducidade do poder de liquidar”.

A caducidade do direito à liquidação, prevista no art.º 45.º da Lei Geral Tributária (LGT), implica que a AT só possa proceder à liquidação dos tributos num determinado prazo.

Assim, nos termos desta disposição legal (redação à época, a que correspondem futuras menções):

“1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.

2 - Nos casos de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo ou de utilização de métodos indiretos por motivo da aplicação à situação tributária do sujeito passivo dos indicadores objetivos da atividade previstos na presente lei, o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.

(…) 4 - O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, exceto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efetuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respetivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário”.

É ainda de ter em consideração o disposto no art.º 46.º do mesmo diploma, relativo a causas de suspensão da caducidade, nos termos do qual, na redação então em vigor:

“1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo do seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação”.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

No caso, o prazo de caducidade a ter em conta é o de quatro anos, contado a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário, ou seja, contado a partir de 31.12.2002, dado estarmos perante um IRC, imposto periódico.

Ou seja, na falta de quaisquer causas de suspensão de tal prazo, o mesmo completar-se-ia a 31.12.2006.

Cumpre, então, para aferir da existência de eventuais causas de suspensão, atentar na factualidade assente:

a) Antes de 13.10.2006, foram feitas notificações pela AT aos administradores da Impugnante e a vários clientes, para prestação de esclarecimentos sobre operações ocorridas em 2002, tendo sido realizadas reuniões a esse propósito, e foram instaurados procedimentos de derrogação de sigilo bancário;

b) Foi emitida, a 26.09.2006, a ordem de serviço n.º OI200605649 de âmbito parcial, abrangendo IRC e IVA, tendo, nessa sequência, sido remetida à Recorrente carta aviso;

c) Os representantes da Impugnante assinaram a mencionada ordem de serviço a 13.10.2006;

d) Os representantes da Impugnante assinaram a nota de diligência, dando conta do fim dos atos de inspeção, a 21.02.2007;

e) Foi elaborado o relatório de inspeção tributária (RIT), notificado à Impugnante a 21.03.2007;

f) As liquidações impugnadas, emitidas após procedimento de revisão (cfr. art.º 91.º e ss. da LGT), foram notificadas à Impugnante a 31.05.2007.

Considerando esta factualidade, que não é controvertida, o Tribunal a quo considerou que o prazo de caducidade do direito à liquidação esteve suspenso entre 13.10.2006 e 21.03.2007, pelo que a notificação da liquidação a 31.05.2007 foi, por via disso, feita dentro daquele prazo.

Desde já se adiante que se acolhe o entendimento do Tribunal a quo.

Explicitemos, então.

Nos termos do art.º 51.º, n.º 1, do então Regime Complementar do Procedimento De Inspeção Tributária (RCPIT), “[d]a ordem de serviço ou de despacho que determinou o procedimento de inspeção, será, no início deste, entregue uma cópia ao sujeito passivo ou obrigado tributário”.

Como é jurisprudência consolidada, é este o momento em que se considera iniciado o procedimento inspetivo, estando o mesmo terminado com a notificação do RIT.

Assim, vejam-se, ilustrativamente:

¾ Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0914/13):

“[É] também sabido que o procedimento de inspecção externa se inicia com a assinatura, pelo sujeito passivo ou obrigado tributário, da ordem de serviço ou do despacho que a determinou, devendo ser-lhe entregue uma cópia (art.º 51.º n.ºs 1 e 2 do RCPIT)”;

¾ Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12.10.2016 (Processo: 0879/15):

“(…) [A] notificação do início da inspecção a considerar designadamente para determinar o termo do prazo da inspecção, com relevância para efeitos da contagem do prazo da caducidade, a nosso ver, não pode ser outra senão a prevista no art. 51.º, mesmo na redacção deste artigo anterior à da Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto, ou seja, aquela que «marca, formalmente, o início do procedimento externo de inspecção» (…)”.;

¾ Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.10.2016 (Processo: 01364/15):

“[O] artigo 46º, nº 1, da LGT, que rege em matéria da suspensão do decurso do prazo de caducidade, consagra expressamente que a duração da inspecção externa se conta a partir da notificação da ordem de serviço.

Com efeito, esta norma prevê, na primeira parte, que o decurso do prazo de caducidade se suspende «com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da inspecção externa» e determina, na segunda parte, que a suspensão cessa, e o prazo conta-se desde o seu início «caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação». Ora, a notificação a que a norma alude na segunda parte, sem qualquer especificação, não pode deixar de ser aquela a que se refere na primeira parte.

De resto, a única relação que se pode estabelecer entre o que dispõe o artigo 36º, nº 2, do RCPIT e a disciplina contida na segunda parte do artigo 46º, nº 1, da LGT, é a de que, em ambos os casos, a lei assinala um espaço temporal de seis meses com referência à duração do procedimento de inspecção. É que, na norma do RCPIT, esse prazo visa disciplinar o próprio procedimento de inspecção, que «deve ser concluído no prazo máximo de seis meses» e na norma da LGT, a ultrapassagem desse marco de seis meses produz efeitos no decurso do prazo da caducidade do direito de liquidar os tributos, fazendo cessar a suspensão e determinando que o prazo de caducidade se conte desde o início”.

¾ Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07.09.2022 (Processo: 01109/10.8BEALM):

“Para efeitos do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 46.º da Lei Geral Tributária deve entender-se que a duração da inspeção externa ultrapassa o prazo de seis meses quando a notificação ao contribuinte do relatório de inspeção for efetuada para além daquele prazo”.

Discorda a Recorrente do entendimento do Tribunal a quo, porquanto considera que os atos praticados antes do início, que reputa de formal, da ação inspetiva, com a assinatura da ordem de serviço, foram verdadeiros atos de inspeção e não atos preparatórios.

Nos termos do art.º 44.º do RCPIT, o procedimento de inspeção é previamente preparado, programado e planeado (n.º 1), sendo que essa preparação prévia abrange toda a informação disponível sobre o obrigado tributário, incluindo informações prestadas ao abrigo dos deveres de cooperação (n.º 2).

Logo, a circunstância de serem recolhidas informações ao abrigo do dever de cooperação não descarateriza os atos como sendo atos preparatórios.

Refere-se, a este propósito, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0914/13):

“Distinguindo a lei (art.º 44.º do RCPIT) entre preparação prévia (recolha de toda a informação disponível sobre o sujeito passivo ou obrigado tributário em causa, incluindo o processo individual arquivado nos termos legais na DGI, as informações prestadas ao abrigo dos deveres de cooperação e indicadores económicos e financeiros da actividade), e programação e planeamento (estes compreendem a sequência das diligências da inspecção tendo em conta o prazo para a sua realização e a previsível evolução do procedimento), no caso vertente (…) as questionadas diligências [os referidos pedidos (…) traduzem-se em meros actos preparatórios do procedimento de inspecção inseridos, ainda, em fase prévia do procedimento inspectivo (…) e foram operados, ao abrigo do acima mencionado princípio da colaboração (…) porque os serviços da AT devem reunir os elementos que possibilitem o apuramento da verdade tributária, em sede de inspecção.

Com tais solicitações a AT não faz mais do que recolher preparatoriamente elementos e informação, (elementos que podem, até, não ser obtidos, por eventual não colaboração dos solicitados) não procedendo, ainda, a qualquer análise ou apreciação desses elementos pedidos. (…)

Não estamos, portanto, em face de actos materiais do procedimento externo de inspecção (que visem e impliquem, desde logo, a directa observação da realidade tributária do sujeito passivo, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias ou a prevenção das infracções tributárias – cfr. o n.º 2 do art.º 2º do RCPIT) ou que se substanciem em exame de documentos, consulta de sistemas informáticos (cfr. as als. b) e al. c) do n.º 1 do art.º 29.º do mesmo diploma), recolha de documentos que possa subsumir-se na previsão dos art.ºs 55.º e 56.º, também do RCPIT), a inventariação de bens ou, ainda, a tomada de declarações (nos preditos termos) a sujeitos passivos e outros intervenientes”.

Aliás, do que se extrai do RIT e da demais factualidade assente, designadamente do facto 11., foi que houve uma ação de fiscalização de Mútuos Duvidosos – 2002, da qual resultou ter sido constatada a existência de omissões de valores declarados, o que levou à notificação da Impugnante e terceiros, ao abrigo do dever de colaboração, para prestarem esclarecimentos.

Estes pedidos de esclarecimento foram feitos num contexto de planeamento (como, aliás, refere a própria AT no ofício remetido à Recorrente e ao seu administrador), sendo que, como decorre do RIT, da reunião de 19.07.2006 (reputada pela Recorrente como o início da ação inspetiva), nada de concreto resultou, tendo os representantes da Impugnante solicitado nova reunião para setembro do mesmo ano. Nesta, foi pelos mesmos referido aguardar a instauração da inspeção externa. Ou seja, não se vislumbra se não um pedido de colaboração, que nem obteve resposta e do qual não resultaram quaisquer esclarecimentos.

Quanto à derrogação do sigilo bancário, a única valorada em sede de RIT respeita ao administrador V. S. e foi autorizada por despacho de 04.12.2006, já depois do início do procedimento inspetivo.

Não decorre, ademais, provado nos autos que tais elementos previamente recolhidos tenham sido objeto de qualquer análise ou apreciação anterior ao início de inspeção, impedindo a sua qualificação como atos materiais de procedimento inspetivo [cfr. o já citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0914/13)], atento o disposto no art.º 2.º do RCPIT.

Assim, o que de facto ocorreu, considerando os elementos constantes dos autos, foram atos preparatórios e não atos de inspeção, como o próprio RCPIT admite, motivados, como resulta do RIT, por informações colhidas em sede de ação de fiscalização anterior e ao abrigo do que o art.º 44.º, n.º 2, do RCPIT admite – caso contrário, tratar-se-ia de letra morta o contido nesta disposição legal.

Daí que a ordem de serviço tenha sido apenas emitida em finais de setembro de 2006, tendo a ação de inspeção tido o seu início em outubro, como já referido.

Como tal, tratando-se, no caso em concreto e face à prova produzida, de atos preparatórios, foi em 13.10.2006 que se iniciou o procedimento inspetivo, tendo o prazo de caducidade ficado suspenso até 21.03.2007, ou seja, pouco mais de 5 meses. Logo, as liquidações, que foram emitidas e notificadas cerca de 2 meses depois, foram-no dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação.

Assim, não assiste razão à Recorrente.

Vencida a Recorrente é a mesma responsável pelas custas (art.º 527.º do CPC).

Cumpre, no entanto, atento o valor dos autos, considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP).

Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, tendo a conduta processual das partes e a circunstância de ser apenas uma a questão em causa, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Jorge Cortês)

(Patrícia Manuel Pires)
















1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
2) Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 259.