Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 437/21.1BEALM |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 03/17/2022 |
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Relator: | DORA LUCAS NETO |
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Descritores: | CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL SUBMISSÃO PROPOSTAS PLATAFORMA ELETRÓNICA JUSTO IMPEDIMENTO PRAZO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE |
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Sumário: | I - A transposição do instituto do justo impedimento, previsto no art. 140.º do CPC, para o domínio da contratação pública justifica-se por respeito pelo núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao direito previsto no art. 20.º da CRP, correspondendo, assim, a uma verdadeira e plena consagração dos princípios da justiça e da razoabilidade, consagrados no art. 8.º do CPA, aplicáveis à contratação pública ao abrigo do art. 1.º-A, n.º 1, do CCP.
II - Nos presentes autos ocorreu uma situação de justo impedimento, que impossibilitou que a Recorrente pudesse ter submetido na plataforma eletrónica em tempo, a sua proposta; III - O facto de a Recorrente não ter comunicado a causa impeditiva ao júri do concurso logo que teve conhecimento da mesma, conforme decorre das normas que regem o instituto do justo impedimento, mas apenas após a data da publicitação da lista dos concorrentes admitidos e em sede de reclamação administrativa, impede a admissibilidade da sua proposta, por extemporânea; IV - Inadmissibilidade essa que poderia não ter ocorrido, segundo um juízo de proporcionalidade, ao abrigo do art. 266.º da CRP, se a “reclamação” e apresentação posterior da proposta pela Recorrente, invocando as circunstâncias já conhecidas e consideradas como uma situação de justo impedimento, tivesse, ainda assim, ocorrido em momento anterior ao da publicitação da lista dos concorrentes admitidos na plataforma eletrónica, o que, no caso, também não sucedeu. |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I. Relatório U…, S.A., vem interpor recurso da sentença proferida a 15.12.2021, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que julgou a ação de contencioso pré-contratual improcedente por entender que «não estão preenchidos os requisitos de que dependeria a admissão da proposta da A. em 5/7/2021 e a consideração de que a mesma foi tempestivamente apresentada em 28/6/2021, ou a anulação do próprio procedimento, pois tal admissão ou anulação do procedimento não encontra abrigo no princípio do justo impedimento e, simultaneamente, tal não se impõe por força dos princípios da concorrência e da igualdade.»
Vejamos, B.O recurso à figura do justo impedimento, como solução doutrinal e jurisprudencial que é – e ainda que tenha hoje assento legal - constitui sempre uma solução a posteriori, e de ultima ratio, oferecida pelo Direito, mobilizável no quadro clássico da interpretação jurídica e de superação de lacunas, uma vez que soluções normativas da ordem jurídica não se limitam às normas específicas para determinada mundividência. C. Todavia, para um operador económico que se vê na situação de impossibilidade de submeter a sua proposta a um procedimento pré-contratual, nomeadamente um concurso público, por razões como as dos autos, está bastante longe de ser evidente que seja essa a devida configuração jurídica da sua situação. D. Efetivamente, por um lado, porque o próprio Direito Administrativo substantivo, seja na sua parte geral, prevista no CPA, seja na regulamentação especial de contratação pública, plasmada no CCP, oferece, dentre os meios de tutela graciosos, a mesma solução para este tipo de problemas: a Reclamação, prevista e regulada nos artigos 184.º e ss. do CPA, e enunciada, novamente, nos artigos 267.º e ss. do CCP, quadro legal abrigo do qual a A. apresentou a sua reclamação, como se encontra expresso no processo administrativo que foi junto aos autos pela Demandada, e que se dá por integralmente reproduzida. E. Assim, a A. mobilizou, em respeito por todas as regras administrativas gerais, e do Código dos Contratos Públicos, em especial, e em observância de todos os prazos por elas exigidos, um meio de tutela gracioso, in casu, a reclamação, para impugnar a inoperabilidade da plataforma, meio de tutela esse que, nos termos conjugados dos artigos 101.º e 59.º, n.º 4, ambos do CPTA, até faz suspender o prazo de impugnação judicial do ato administrativo em causa, um claro incentivo do legislador, aos administrados, para que não se coibam de esgotar os meios graciosos, ainda que os mesmos sejam facultativos. F. Por outro lado, a figura do justo impedimento, mobilizada pelo Tribunal a quo, é um instituto do Direito Adjetivo Civilista, surgindo prevista no CPC, e não uma norma de Direito Administrativo, ou de Contratação Pública, sendo qualquer um dos Códigos – CPA ou CCP – omissos quanto a tal “garantia” dos administrados. Aliás, e pese embora a sua natureza adjetiva, nem no CPTA o mesmo instituto surge previsto autonomamente, sendo apenas um recurso subsidiário e supletivo, nos termos gerais do artigo 1.º do CPTA. Com o devido respeito, que é muito, o instituto foi pensado para a entrega extemporânea de peças processuais, num contexto de processo judicial; ora, o que se aqui discute é, diversamente, um procedimento (administrativo) pré-contratual, sem qualquer natureza judicial, seja da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, seja na Jurisdição Comum, pelo que se não entende como procura o Tribunal a quo responder ao litígio substantivo mobilizando uma norma adjetiva, ainda para mais de cariz supletivo. G. Ora, naquele momento, o operador económico médio, e, no caso, a Autora, não é parte em qualquer processo judicial, é apenas uma entidade a tentar participar num concurso público, e como tal é expectável que utilize os meios de tutela administrativa, ie, a reclamação, tal como fez, como principal referência para guiar a sua atuação e, antes, isso sim, de recorrer, se necessário, aos meios de tutela jurisdicionais, como ora se litiga. H. É, portanto, e por harmonia com os Princípios do Acesso à Justiça e da Boa Fé Processual, ínsitos nos artigos 7.º e 8.º do CPTA, necessário um especial cuidado nas exigências comportamentais pedidas à A., no quadro impugnatório, sob pena de nos depararmos com situações aberrantes, como a que ressalta do Saneador-Sentença, onde se entende que, apesar da A. ter acionado os meios de tutela graciosos tipificados, nomeadamente a reclamação, ainda assim, tal pleno cumprimento do quadro legal administrativo (promovido pelo legislador) não é suficiente, e, aliás, obsta e aniquila a possibilidade de impugnação, porquanto, no entender do Tribunal a quo, a A. teve “falta de diligência”, e deveria, antes, ter optado por um instituto previsto numa norma jus-processual civil. Ou seja, o Tribunal a quo impõe à A. que, para impugnar o procedimento em apreço, devia ter lançado mão da figura do justo impedimento, ao invés da reclamação, reclamação essa que manifesta, reitera-se, na ótica do Tribunal a quo, uma “falta de diligência”, o que, com o devido respeito, que é muito, não pode deixar de configurar um crasso erro no julgamento, nomeadamente na mobilização do quadro legal aplicável ao caso. I. Impor à A. um (pesado) ónus de invocar e cumprir normas processuais civis, num contexto de procedimento administrativo, ignorando as normas próprias do procedimento administrativo, nomeadamente o regime das reclamações - que foi cumprido – é punir a A. por ter privilegiado os meios de tutela graciosos, quando o que deveria ter feito era, na ótica do Tribunal, recorrido a um expediente processual civil, o que não faz qualquer sentido nem tem qualquer respaldo na Lei. J. Na verdade, o que parece resultar da fundamentação da decisão, para justificar tal conservadorismo do Tribunal na aplicação da lei, negando a pretensão da A., é uma aparente sombra de suspeita sobre a A., nomeadamente de que esta possa ter obtido conhecimento das propostas das outras concorrentes, e só depois, em violação aparente do princípio da concorrência, ter elaborado a sua proposta, que ora pretende que seja admitida. Tal não faz qualquer sentido, com o devido respeito. Se não vejamos, K .Prima facie, por um lado, a A. não tem o condão de gerar aqueles erros na plataforma, sendo-lhe alheia a sua gestão e até a escolha a mesma, como veículo para o procedimento, o que só se pode assacar à Demandada. Em boa verdade, resulta claramente da matéria provada que os erros na submissão e na plataforma existiram, e não são uma invenção do A, como está assente nos pontos 6 e 7 da matéria provada. Assim, e partindo desta matéria provada, outra não poderia ter sido a decisão que não fosse a de admitir a proposta da A., uma vez que mesma foi impedida de ser submetida, por erro que não se pode assacar à A., que devidamente, em tempo, e no lugar devido, através de reclamação, foi alardeado, existindo claro erro de julgamento na subsunção dos factos ao Direito. L. Entende o Tribunal a quo, com aparente suporte em doutrina, que, para que não se lesasse a concorrência, o erro deve ser reportado no hiato temporal que medeia o fim prazo para a apresentação de propostas e a publicitação, no dia seguinte, da lista de concorrentes e propostas recebidas, obrigando qualquer concorrente que se veja confrontando com um erro informático, que lhe é alheio, a laborar, madrugada fora, na arguição de um justo impedimento, quando os serviços da Entidade Adjudicante até se encontram encerrados – e, repita-se, tudo isto sem qualquer respaldo na Lei, que prevê, isso sim, os meios graciosos e judiciais devidos no caso, e onde não consta qualquer “justo impedimento”. M.E não se diga que a solução legal crismada não é consentânea com a celeridade que a concorrência exige. Pelo contrário, os prazos procedimentais e processuais já são mais exíguos, exatamente para harmonizar o procedimento pré-contratual com as garantias dos administrados. N.E mesmo que assim não se entendesse, sem embargo e sem prescindir, a A., em tempo próprio, antes do terminus do prazo para a submissão de propostas, alegou o erro que obstava, e obstou, à entrega atempada da proposta, como resulta dos Autos, e pode ser confirmado por prova testemunhal e por declarações de parte, que o Tribunal a quo ignorou, em atropelo dos elementares princípios processuais. Ou seja, a A. denunciou o problema técnico atempadamente, ainda antes do terminus do prazo para a submissão de propostas, e também cumpriu o prazo legal para reclamação à entidade adjudicante. O. Acresce que, e caso assim não se entendesse, sempre se deveria ter atendido ao facto de que, que nos termos do procedimento pré-contratual, todos os elementos da proposta deviam ser enviados em formato digital, e além disso, assinados com assinatura digital qualificada, validada pelos devidos selos temporais. Ora, P. Os documentos enviados pela A. à R., via e-mail, enquanto ficheiros digitais, poderiam sempre ser analisados e assim poderia ser confirmada a hora a que foram gerados. Mas, mais do que isso, ao estarem assinados com assinatura digital qualificada, acresce-lhes uma nova camada de segurança que atesta também a hora a que estes foram assinados – o que permite concluir se estes foram ou não posteriormente alterados. De facto, Q. A assinatura digital qualificada permite atestar a autenticidade da assinatura de um documento digital, bem como confirmar a autoria, integridade, e hora de assinatura de um documento digital. Assim, seria sempre possível confirmar a data em que os documentos foram gerados e assinados digitalmente. R. Ainda assim, se dúvidas restassem sobre a autenticidade dos documentos, poderia sempre o Tribunal sujeitar os documentos enviados por e-mail pela A. à R. a perícias ou outras diligências de prova a realizar em julgamento – algo que foi preterido com a prolação de despacho saneador-sentença. S. Deu como provado o Tribunal a quo, num claro erro de julgamento da matéria de facto, que só houve problemas técnicos entre as 22h00 e as 22h17, e que a A. não alegou nem demonstrou que tentou submeter a proposta entre esse período e as 23h59. Ora, T. Resulta muito claramente do conteúdo da reclamação e da petição inicial, para onde se remete, para os devidos efeitos, que a determinada altura apareceu um erro na plataforma que impedia de todo qualquer acesso. Aliás, tal é dado como provado, no ponto 7. da matéria provada: a partir das 22h23, ocorreu um erro de sistema com a mensagem «Ocorreu um erro inesperado no sistema. Pedimos desculpas pelo incómodo. Para mais informações contacte o suporte técnico: (…) (9h – 19h).». Assim, se há um erro informático, que impede a navegação, a partir das 22:23, é elementar que o último registo de tentativa de submissão seja o das 22:17, dado que, posteriormente, à A. foi negada a utilização da plataforma, como provado ficou. U. Acresce que, de todo o modo, a prova a produzir em julgamento, nomeadamente a prova testemunhal, sempre poderia reforçar a prova documental já apresentada e permitiria esclarecer quaisquer dúvidas sobre que erros que apareceram exatamente, até que horas tentou a A. submeter a sua proposta, e todos os detalhes da factualidade dos autos considerados relevantes para a boa decisão da causa – algo que também foi preterido com o despacho saneador-sentença de que ora se recorre. V. Face ao exposto, e nos termos do artigo 144.º, n.º 2, do CPTA, sempre se dirá que o Saneador-Sentença de que se recorre, ao aplicar o instituto do justo impedimento, previsto no artigo 144.º do CPC, a um procedimento pré-contratual, nomeadamente à impossibilidade de entrega da proposta em tempo útil, motivada por um erro informático, enferma de erro na aplicação do Direito, ao mobilizar uma figura estranha, e ao impor a mesma à A., quanto a A. fez uso, em tempo, dos meios legais aplicáveis, nomeadamente da reclamação graciosa, para invocar o erro informático em apreço. W. Errou o saneador-sentença, também, no julgamento da matéria de facto, quando deu como provado que, a determinado momento, a A. decidiu parar de tentar submeter a proposta, quando, do ponto 7 da matéria provada, o que deveria ter o Tribunal concluído é que, desse mesmo facto, inimputável à A., ficou a mesma impossibilitada de submeter a sua proposta, que ora requer que seja aceite, para os devidos efeitos. X. Erra o saneador sentença, finalmente, na aplicação do Direito, ao entender que viola o princípio da concorrência admitir uma proposta, quando a lista de publicitação já está divulgada, uma vez que essa mesma proposta, com salvaguarda para a concorrência, se encontra “selada” pela assinatura digital qualificada, e não pode ser tida como alterada ou adulterada. Assim, face ao exposto, deve este Venerando Tribunal, atentos os seus poderes previstos no artigo 149.º do CPTA, declarar nulo o Saneador-Sentença e, atenta a matéria de facto e de direito, bem como com recurso aos meios de prova requeridos, e não produzidos, cuja produção se reitera, julgar a presente ação procedente e julgada procedente, por provada, e, em consequência, a) Deve a R. ser condenada a admitir a proposta da Autora, que se junta, considerando-se esta apresentada atempadamente no dia 28 de Junho de 2021, devendo a mesma ser analisada, para os devidos efeitos, designadamente nos termos dos artigos 70.º e 146.º do Código dos Contratos Públicos. Sem embargo e sem prescindir, em alternativa, b) Deve o presente procedimento pré-contratual ser declarado nulo ou ser anulado, porquanto ilegal e atentatório das boas regras de contratação pública, nomeadamente do Princípio da Igualdade de Tratamento e não Discriminação e do Princípio da Concorrência, vertidos no art. 1º A, n.º 1 do CCP, ao não ter sido permitido à ora A., por facto imputável ao R., conexo com a plataforma eletrónica por si escolhida, apresentar a proposta em apreço. (…)».
O RECORRIDO, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P, contra-alegou, tendo concluído como se segue - fls. 762 e ss. do SITAF: Neste tribunal, o DMMP não emitiu pronúncia.
Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, mas com entrega prévia do texto do acórdão aos Mmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o processo à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.
I.1. Questões a apreciar e decidir As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se, em suma, em conhecer dos seguintes erros de julgamento: i) ao aplicar o instituto do justo impedimento, previsto no artigo 140.º do CPC, a um procedimento pré-contratual, nomeadamente à impossibilidade de entrega da proposta em tempo útil, motivada por um erro informático, enferma de erro na aplicação do direito, «ao mobilizar uma figura estranha, e ao impor a mesma à A., quanto a A. fez uso, em tempo, dos meios legais aplicáveis, nomeadamente da reclamação graciosa, para invocar o erro informático em apreço.»; ii) errou o saneador-sentença, também, no julgamento da matéria de facto, quando deu como provado que, a determinado momento, a A. decidiu parar de tentar submeter a proposta, quando, do ponto 7 da matéria provada resulta que A. ficou impossibilitada de submeter a sua proposta; e, por fim iii) erra o saneador sentença na aplicação do direito, ao entender que viola o princípio da concorrência admitir uma proposta quando a lista de publicitação já está divulgada, mesmo que essa proposta se encontre «“selada” pela assinatura digital qualificada, e não pode ser tida como alterada ou adulterada».
II. Fundamentação II.1. De facto A matéria de facto constante da sentença recorrida é aqui transcrita ipsis verbis - cfr. fls. 723 e ss., ref. SITAF: Vejamos. Decorre dos autos que o prazo limite para a entrega das propostas, via plataforma AnoGov, no procedimento em apreço, seria até às 23h59 do dia 28.06.2021 – cfr. facto n.º 2 da matéria de facto supra. A Recorrente tentou submeter a sua proposta entre as 22h00 e as 22h17, desse mesmo dia desse dia 28.06.2021, tendo feito várias tentativas – cfr. factos n.º 6, 10, 12 e 17 da matéria de facto supra. Nesse mesmo dia 28, enviou um e-mail ao suporte técnico da plataforma AnoGov assumindo que, por lapso seu, pediu uma nova chave de acesso, o que provocou o reinício do pedido de registo e à eliminação do utilizador - cfr. factos 7 e 8 da matéria de facto supra. Resulta também da matéria de facto que apenas no dia seguinte, dia 29.06.2021, os serviços da plataforma AnoGov responderam ao e-mail da Recorrente – cfr. facto n.º 10 da matéria de facto supra. Assim, a Recorrente, apenas no dia seguinte ao terminus do prazo para a apresentação das propostas é que ficou a saber que o erro que teria motivado a verificada impossibilidade de submissão da sua proposta se ficou a dever ao facto de ter utilizado carateres especiais como "-~ç" e acentos. Acresce que das peças do procedimento não consta que estes caracteres não deveriam ser utilizados no nome dos ficheiros aquando da submissão da proposta – cfr. facto n.º 3 da matéria de facto supra. O que, aliado ao facto de o art. 33.°, alínea g), da Lei n.° 96/2015, de 17.08, dispor que as plataformas eletrónicas devem disponibilizar, «em local de acesso livre a todos os potenciais interessados, as especificações necessárias exigidas para a realização dos procedimentos de formação dos contratos, designadamente as respeitantes aos requisitos a que os ficheiros que contêm os documentos das propostas, das candidaturas e das soluções devem obedecer», o que também não sucede. Estando em causa caracteres que fazem parte da língua portuguesa, tal erro não pode ser imputado à Recorrente, como bem concluiu a sentença recorrida. Assim como se acompanha o decidido pelo tribunal a quo quando considerou que o facto de o apoio técnico da plataforma AnoGov apenas estar disponível das 09.00 às 19:00 não pode determinar qualquer tipo de exigência quanto à conduta das concorrentes, que comprima o prazo de apresentação das propostas fixado nas peças do procedimento, nem qualquer juízo de censurabilidade, caso as propostas não sejam submetidas naquele hiato de tempo em que o referido apoio técnico está, hipoteticamente, garantido. Onde nos afastamos da decisão recorrida é na consideração de que o exposto não consubstancia um evento absolutamente impeditivo para que a Recorrente pudesse ter submetido a sua proposta no dia 28.06.2021, ao ter considerado que «uma vez que aquela tinha até às 23h59 desse dia para submeter a sua proposta e não alegou a A. nem demonstrou que tentou submetê-la até às 23h59 desse dia e que não conseguiu fazê-lo por um evento que não lhe pode ser imputado a título de culpa.» E isto porque para este tribunal de recurso resulta claro que mesmo que a Recorrente tivesse continuado a tentar submeter a sua proposta até ao limite do tempo que tinha para o efeito, o erro que se revelou numa impossibilidade de submissão, como vimos, a utilização de caracteres que a plataforma AnoGov não reconhecia, apenas foi esclarecido pelos serviços técnicos desta plataforma no dia seguinte. Ou seja, o mais provável é que a Recorrente, mesmo que tivesse continuado a tentar submeter a sua proposta até ao limite do tempo que tinha, reincidisse no mesmo erro, o que levaria a que a impossibilidade de submissão se mantivesse, daí a irrelevância do juízo adotado na decisão recorrida. Importa, pois, realçar, que das peças do procedimento não consta que os caracteres usados pela Recorrente não poderiam ser utilizados – cfr. facto n.º 3 da matéria de facto supra -, ao que acresce o facto de o art. 33.°, alínea g), da Lei n.° 96/2015, de 17.08, dispor que as plataformas eletrónicas devem disponibilizar, «em local de acesso livre a todos os potenciais interessados, as especificações necessárias exigidas para a realização dos procedimentos de formação dos contratos, designadamente as respeitantes aos requisitos a que os ficheiros que contêm os documentos das propostas, das candidaturas e das soluções devem obedecer», o que também não sucedeu. Perante o que, se considera também irrelevante, para este efeito, a circunstância de os serviços da plataforma AnoGov relatarem que a mesma não padecia, naquele período, de quaisquer deficiências técnicas, pois que não foram estas, como vimos, e resulta dos autos, a causa da não submissão da proposta da Recorrente - cfr. factos n.º 5, 10, 12 e 17 da matéria de facto supra. Neste pressuposto, não será de manter a decisão recorrida na parte em que conclui que o evento que impediu a Recorrente de submeter a sua proposta dentro do prazo fixado no procedimento, ocorreu apenas entre as 22h00 e as 22h17 do dia 28.06.2021, último dia do prazo de entrega, pois que o erro que se revelou como impossibilitante da submissão da proposta, a circunstância que relevou para tal impossibilidade, foi a utilização pela Recorrente de determinados caracteres cujo uso seria causa do verificado erro na submissão da proposta, erro esse que apenas foi conhecido no dia seguinte – cfr. factos n.º 10 e 12 da matéria de facto supra – ou seja, no dia 29.06.2021. Assim se concluindo, ao invés, que resulta provado nos autos a ocorrência de uma situação de impossibilidade de submissão oportuna da proposta não imputável à Recorrente, o que consubstancia, de facto, a verificação de um justo impedimento. Insurge-se, porém, a Recorrente contra a aplicação deste instituto de cariz processualista, a um procedimento administrativo pré-contratual, alegando, em suma, que o Código dos Contratos Públicos (CCP) tem regras específicas para estas situações, pelo que serão estas as normas a aplicar em primeira linha e não um instituto cuja aplicação será sempre de natureza supletiva. Mas não tem razão a Recorrente. Vejamos porquê. É entendimento consensual na doutrina (1) e na jurisprudência (2) que a transposição do instituto do justo impedimento para o domínio da contratação pública se sustenta no respeito pelo núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao direito previsto no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), correspondendo, assim, a uma verdadeira e plena consagração dos princípios da justiça e da razoabilidade, consagrados no art. 8.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicáveis à contratação pública ao abrigo do disposto no art. 1.º-A, n.º 1, do CCP. Neste pressuposto, verificada que está uma situação de justo impedimento, que impossibilitou que a Recorrente, sem culpa, não tivesse submetido na plataforma AnoGov, em tempo, a sua proposta – cfr. fundamentação que antecede – o que cumpre decidir é se o facto de a Recorrente não ter comunicado ao júri do concurso, logo que teve conhecimento da causa impeditiva – a 29.06.2021 -, o referido impedimento – cfr. decorre das normas que regem o referido instituto do justo impedimento - art. 140.º do CPC -, mas apenas a 05.07.2021, e em sede de reclamação administrativa, impede a admissibilidade da sua proposta. O tribunal a quo entendeu que sim. A Recorrente entende que não. Vejamos por partes. Dispõe o art. 140.°, n.°s 1 e 2, do CPC, que a parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova e que, ouvida a parte contrária, admitir-se-á o requerente a praticar o ato fora do prazo, se se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou. É certo que, pese embora a requerente, ora Recorrente, se insurja contra a aplicação deste instituto, dúvidas não há que os factos que invoca como justificação da sua não atuação atempada, consubstanciam, como vimos, uma situação de impossibilidade, sem culpa sua, o que apenas a pode beneficiar. Repare-se que a alternativa usada Pela Recorrente, ao ter reclamado dessa impossibilidade, invocando as normas do CCP, revela-se, in casu, desajustada. Na verdade, os invocados art.s 267.º e ss. do CCP, na reclamação que apresentou – cfr. facto n.º 14 da matéria de facto supra – não tem aplicação no caso em apreço pois que, naquela, a Recorrente não está a reagir a nenhuma decisão que tenha sido tomada pelo júri ou pela entidade adjudicante, no âmbito do procedimento de formação do contrato em apreço. Ao invés, a Recorrente, através do requerimento que apresenta a 05.07.2021, pretende impugnar a inoperabilidade da plataforma AnoGov, e não de nenhuma decisão que tivesse sido tomada contra si pela entidade adjudicante ou pelo júri – cfr. alíneas D) e E) das conclusões de recurso -, conforme decorre claramente da reclamação apresentada a 05.07.2021 - e facto n.º 14 da matéria de facto supra. Assim, e secundando, nesta parte, a doutrina que dimana do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.09.2017, P. 01081/16 (3), no qual se sumariou que a dedução do justo impedimento em procedimento administrativo, sendo admissível, impõe a observância de todas as regras previstas no art. 140º do CPC (4), mais resultando da sua fundamentação, com particular interesse para o caso em apreço, o seguinte: «(…) não se vê porque não seja de aplicar o referido n.º 2 do artigo 146º do CPC, que impõe ao requerente o ónus de requerer a prática extemporânea do acto mediante alegação e instrução do pedido com a indicação dos meios de prova dos factos integradores desse justo impedimento logo que cesse a causa impeditiva. Nem se diga que, porque estamos perante um procedimento administrativo, não se aplicam as regras dos processos judiciais, por a estes se aplicarem os princípios do dispositivo e da preclusão, daí a exigência da imediata apresentação da prova. E que, quando aplicada a procedimentos administrativos, as regras do justo impedimento terão de ser interpretadas à luz dos dispositivos do CPA. É que, nos termos alegados está a pretender-se que o juiz regulamente uma situação que o legislador nem expressamente previu, criando também um direito ex novo atendendo a princípios subjacentes ao procedimento administrativo. Ou seja, chama-se à colação no âmbito do procedimento administrativo um instituto regulamentado na lei para um processo judicial, que aquele nem prevê expressamente, nem por remissão, mas depois diz-se que a regulamentação já deve ser diversa face a especificidades próprias do procedimento em causa. Ora, haverá sempre especificidades do procedimento administrativo que poderão justificar a importação do instituto tal e qual, assim como haverá sempre margem para se dizer que outra regulamentação seria mais adequada. E basta atermo-nos, desde logo, ao facto de no âmbito do processo gracioso administrativo qualquer decisão que venha a ser tomada ser ainda susceptível de impugnação contenciosa. Portanto, a própria razão de ser do procedimento administrativo gracioso é uma fase no sentido da definição de uma situação jurídica mas não é a última. Se se chama à colacção no âmbito do procedimento administrativo um regime jurídico apenas previsto no processo civil, também se há-de chamar à colacção a regulamentação para ele prevista. Estar a criar uma regulamentação própria invocando razões de especificidades põe desde logo em causa o recurso a este instituto precisamente por as razões de ser do procedimento administrativo serem diversas das do processo civil. (…)». Assim, o facto de a Recorrente não ter comunicado ao júri do concurso logo que teve conhecimento da causa impeditiva – a 29.06.2021 -, o referido impedimento – cfr. decorre das normas que regem o referido instituto do justo impedimento - art. 140.º do CPC -, mas apenas a 05.07.2021 e após a data da publicitação da lista dos concorrentes admitidos - cfr. factos n.º 13 e 14 da matéria de facto supra, que ocorreu a 30.06.2021 -, em sede de reclamação administrativa, impede a admissibilidade da sua proposta. Inadmissibilidade essa que poderia não ter ocorrido, segundo um juízo de proporcionalidade (5), ao abrigo do art. 266.º da CRP, se a “reclamação” e apresentação posterior da proposta pela Recorrente, invocando as circunstâncias já conhecidas e consideradas como uma situação de justo impedimento, tivesse, ainda assim, ocorrido em momento anterior ao da publicitação da lista dos concorrentes admitidos na plataforma eletrónica, o que, no caso, também não sucedeu- cfr. factos supra. Em face do que, é de manter o decidido na sentença recorrida, embora com distinta fundamentação.
ii) Do erro de julgamento da matéria de facto em que incorreu a sentença recorrida, ao ter dado como provado que, a determinado momento, a A., ora Recorrente, decidiu parar de tentar submeter a proposta, quando, do ponto 7 da matéria provada. Face a todo o exposto, este concreto facto revela-se, face a todo o exposto, absolutamente irrelevante para a decisão do presente recurso, pois que, como se viu, apenas no dia seguinte ao terminus do prazo de apresentação das propostas, a Recorrente terá sido informada de qual o erro que impossibilitou a submissão da sua proposta, pelo que se pode concluir que o resultado teria sido sempre mesmo – a impossibilidade – quer a Recorrente tivesse desistido ou não de submeter a proposta até ao limite do prazo.
iii) Do erro de julgamento de julgamento de direito em que incorreu a sentença recorrida ao ter considerado que viola o princípio da concorrência, admitir uma proposta, quando a lista de publicitação já está divulgada, mesmo que «“selada” pela assinatura digital qualificada, e não pode ser tida como alterada ou adulterada.» O conhecimento deste erro de julgamento fica prejudicado, pela decisão que antecede, pois que o mesmo apenas teria uma valia autónoma caso não se tivesse dado como verificada situação de justo impedimento, como decidiu o tribunal a quo, mas que este tribunal de recurso reverte. Na verdade, verificada que está a situação de justo impedimento, mas incumpridos que foram os seus pressupostos, esta questão fica prejudicada pela procedência da primeira, pois que a situação de justo impedimento, enquanto decorrência, designadamente, do princípio da justiça, constitui um dos casos específicos, que devem ser tidos em conta na ponderação com outros valores e princípios igualmente relevantes para o direito da contratação pública, como o da concorrência e da transparência, em virtude de só assim ser respeitado o valor da justiça material que subjaz à ideia do próprio direito (6).
Ou seja, se a Recorrente tivesse comunicado, em momento oportuno, conforme fundamentação supra na alínea i), a impossibilidade em submeter a sua proposta na plataforma AnoGov e dada aquela por verificada e a inexistência de culpa da Recorrente, a sua proposta seria admitida, ao abrigo do instituto do justo impedimento – cfr. art. 140.º, do CPC.
III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 17.03.2022 Dora Lucas Neto (Relatora) Pedro Nuno Figueiredo Ana Cristina Lameira __________________________ (1) Neste sentido, v. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, pgs. 645 e segs.; MARGARIDA OLAZABAL CABRAL, O Concurso Público nos Contratos Administrativos, Almedina, 1997, pg. 159. |