Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:73/22.5BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/21/2022
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PUBLICAÇÃO DE ARTIGO
IMPRENSA PRIVADA (ON-LINE)
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO
Sumário:I - Preenche o tipo de infracção disciplinar previsto e punido no artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada (on-line) de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros actuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
II - Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (cfr. artigo 26º, nº 1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (cfr. artigo 79º, nº 2 da CRP).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO
1. A “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” interpôs recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto acórdão de 26-5-2020, proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional que, no âmbito do Processo Disciplinar nº 6…-1…/20, a condenou pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelos nºs 1 e 4 do artigo 112º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLFPF), na multa de € 30.600,00 (trinta mil e seiscentos euros), sendo entidade recorrida no referido recurso a Federação Portuguesa de Futebol.
2. O Tribunal Arbitral do Desporto, por acórdão datado de 28-12-2021, decidiu, por maioria, julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
3. Inconformada com a decisão arbitral, veio a “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” apresentar recurso de apelação para este TCA Sul, tendo concluído a sua alegação nos seguintes termos:
(…)
2. O aresto recorrido desconsidera todo um conjunto de factualidade relevante para os presentes autos e que se consubstancia nos factos que permitem a contextualização das declarações proferidas e que legitimam o discurso da recorrente.
3. Conforme melhor resulta do alegado em sede de alegações, não resultou provado que seja a recorrente a autora da publicação em causa, resultando, nomeadamente, dos depoimentos a que supra se fez referência e do depoimento da testemunha R… que o autor da dita publicação é o Sport Lisboa e Benfica e não a recorrente.
4. Pelo que, sempre deveria ter sido dado como provado que “O Sport Lisboa e Benfica é o proprietário do site www.slbenfica.pt” e que “O Sport Lisboa e Benfica é o responsável pela publicação da newsletter em causa nos presentes autos”.
5. Inexiste em sede de matéria de facto quaisquer indícios que possam ser utilizados para imputar tais declarações à recorrente.
6. Atenta a prova documental constante dos autos, designadamente, as peças noticiosas juntas aos autos, as hiperligações constantes dos articulados e as decisões do Conselho de Justiça juntas aos autos e/ou referenciadas nas peças processuais, a matéria de facto melhor identificada em sede de alegações deveria ter sido dada como provada.
7. Conforme melhor se detalhou em sede de alegações, a recorrente agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão, tal como definidas pela Jurisprudência Nacional e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
8. A interpretação normativa que a recorrida pretende ver consagrada nos autos – e que resulta do aresto recorrido – encontra-se datada no tempo e completamente ultrapassada nomeadamente em face da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo motivado mais de duzentas e cinquenta condenações do Estado Português.
9. A recorrida pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
10. O Conselho de Disciplina não é imune ao erro ou às más decisões, sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre essas situações, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam.
11. Nomeadamente, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam, ao invés de os branquear e ocultar atrás de sanções disciplinares.
12. De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante, desde o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao Supremo Tribunal de Justiça (no caso Português), pelo facto de os visados serem figuras públicas e exercerem funções públicas, devem possuir uma maior margem de tolerância face à crítica dessas mesmas funções públicas.
13. Sendo, inclusive, admitida a crítica contundente, violenta, irónica, etc.
14. As opiniões vertidas nas publicações em causa encontram respaldo na opinião pública, tendo sido objecto de discussão pública, nomeadamente em sede de Órgãos de Comunicação Social.
15. Não se peticiona os Tribunais que conheçam da bondade das decisões do Conselho de Justiça que não a que se impugna nos presentes autos, mas apenas que reconheça a sua existência factual e, bem assim, a discussão pública que as mesmas motivaram, enquanto motivadoras das declarações proferidas pela recorrente – com referência textual nas comunicações objecto dos autos.
16. Conforme decorre da matéria invocada em sede de alegações, a recorrente agiu dentro dos limites da liberdade de expressão, nos termos em que tal direito é configurado pela Jurisprudência Nacional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
17. Por seu turno, conforme melhor se detalhou em sede de alegações, a interpretação efectuada pela recorrente dos nºs 1 e 4 do artigo 112º do RDLPFP viola os artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH, que faz parte integrante do ordenamento jurídico português por via do artigo 8º da CRP.
18. Devendo tal inconstitucionalidade ser declarada”.
4. A Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegação, na qual concluiu do seguinte modo:
1. O presente recurso, interposto pela Sport Lisboa e Benfica – Futebol SAD, tem por objecto o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto proferido em 28 de Dezembro de 2021, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de sancionar a recorrente pela prática de infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 112º, nºs 1 e 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RD da LPFP), tendo-lhe aplicado uma multa de € 30.600,00.
2. Entende a recorrente que o tribunal a quo andou mal ao confirmar a sanção aplicada porquanto, na sua opinião: (i) as declarações em crise não são da sua autoria; (ii) verifica-se a inclusão de matéria de facto conclusiva no âmbito da matéria de facto dada como provada; (iii) Os factos sub judice não têm qualquer relevância disciplinar porquanto a recorrente apenas exerceu a sua liberdade de expressão; (iv) as declarações proferidas foram-no ao abrigo da liberdade de expressão, não obstante considerar que inexistem quaisquer factos que suportem a imputação subjectiva do ilícito à recorrente, alega ainda a inconstitucionalidade do normativo pelo qual foi sancionada por violação os artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, sendo por isso inconstitucional;
3. Porém, o acórdão recorrido não é passível de qualquer censura, conforme se passa a demonstrar;
4. Entende a recorrente que o facto provado nº 8 do acórdão recorrido consubstancia matéria conclusiva e de direito, pelo que tem de ser expurgado, não assistindo razão à recorrente, porquanto mesmo que existam passagens desta matéria dada como provada que se possam considerar conclusivas – o que se admite por dever de patrocínio –, sempre se dirá que mesmo com o expurgo desses segmentos a decisão não se considerará prejudicada, sendo que, mesmo sem a alegada parte conclusiva, a matéria de facto dada como provada nos autos sustenta, igualmente, a punição da recorrente no âmbito do processo disciplinar, pelo que a decisão não sai minimamente prejudicada.
5. As declarações devem ser imputadas à recorrente, porquanto foram divulgadas num sítio da internet onde a mesma comunica os assuntos de interesse para os seus adeptos e público em geral, sendo que, qualquer indivíduo que aceda àquele site, sabe e espera estar a visitar uma página oficial daquela SAD, bem como sabe e espera que os conteúdos ali difundidos sejam informações oficiais, sendo tal presunção perfeitamente admissível;
6. Resultando assim claro que não foi produzida prova que permita afastar a conclusão plasmada no acórdão do Conselho de Disciplina e no Tribunal a quo de que as declarações sub judice foram publicadas no site oficial da Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD, pelo que a recorrente é responsável pelos mesmos e por isso deve ser responsabilizada disciplinarmente – sendo que, da prova documental e testemunhal produzida nos autos, essa conclusão sai reforçada, porquanto, ao contrário que alega a recorrente, não estamos perante qualquer responsabilidade objectiva, pelo que, também improcederá a invocada inconstitucionalidade do artigo 112º, nºs 1 e 4 do RDLPFP, porquanto, sendo a recorrente responsável por produzir e difundir as referidas declarações, não há qualquer violação dos princípios da culpa, presunção de inocência, responsabilidade pessoal e responsabilização objectiva – artigos 1º e 32º, nºs 2, 3 e 10, 37º e 38º, todos da CRP.
Prosseguindo,
7. Ora, desde logo, cabe chamar à colação que o bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
8. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
9. Assim, quando analisado o artigo 112º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstracto, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
10. Por outro lado, não se pode olvidar que a recorrente tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
11. A recorrente tem, designadamente, o dever de “manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e rectidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19º, nºs 1 e 2, do RDLPFP18); “usar de correcção, moderação e respeito relativamente a outros promotores de espectáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes), sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espectáculo desportivo” (artigo 35º, nº 1, alínea h) do RD da LPFP); de “zelar por que dirigentes, técnicos, jogadores, pessoal de apoio, ou representantes dos clubes ajam de acordo com os preceitos das alíneas h) e i)” (artigo 35º, nº 1, alínea h) do RC da LPFP); de “incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de (…) intolerância nas competições” (Regulamento de Prevenção da Violência da Liga Portugal); e de manter comportamento de urbanidade e correcção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51º, nº 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
12. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir publica e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correcção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
13. Quando uma pessoa (singular ou colectiva), qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, nomeadamente, as deontológicas, disciplinares e sancionatórias.
14. Com efeito, para que a recorrente seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112º, nºs 1 e 4, ambos do RD da LPFP é essencial indagar se as declarações respectivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem, dos órgão federativos e respectivos titulares.
15. Não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspectiva do direito penal.
16. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos 180º e 181º do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a protecção das competições desportivas, da ética e do fair play.
17. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (artigo 112º do RD da LPFP) são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspectiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
18. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto factor de realização do valor da ética desportiva.
19. A recorrente sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma actuação dos árbitros visados e do Conselho de Arbitragem da recorrida, a que não presidiram critérios de isenção, objectividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
20. Com efeito as declarações da recorrente não se limitam a remeter para a discordância com as decisões dos agentes de arbitragem ou com a actuação do Conselho de Arbitragem da recorrida, referindo e deixando a entender claramente que tais decisões e erros são premeditados, parciais conscientes e com o intuito de beneficiar outro(s) competidor(es), a Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD, remetendo expressamente para uma actuação delituosa dos visados.
21. Para além de imputar a tal órgão federativo e aos agentes de arbitragem visados, a prática de actos ilegais, as expressões sub judice encerram em si um juízo de valor sobre os visados que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no desporto, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
22. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da recorrente à actuação dos agentes de arbitragem e dos órgãos federativos, já a imputação
desonrosa não o é, e aquelas expressões usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respectiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
23. Não se nega que expressões como a usada pela recorrente são corriqueiramente usadas no meio do desporto em geral e do futebol em particular.
24. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são susceptíveis de afectar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afectar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de parcialidade por parte do Conselho de Arbitragem ou de agentes de arbitragem identificados, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que as decisões do Conselho de Arbitragem e os alegados erros de arbitragem, são intencionais, parciais e premeditados e prejudicar a recorrente em benefício de outro competidor. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
25. O facto de os visados serem figuras públicas, sob maior escrutínio não pode legitimar que tudo se diga, não os destituindo do direito à honra e consideração, sob pena de se negar a protecção da honra das figuras públicas, conforme sufragou já o Tribunal da Relação.
26. Não se tratará nesta sede do legítimo exercício do direito à liberdade de expressão, este deverá ser harmonizado com outro direito fundamental, o direito ao bom nome e à reputação, na esteira do que entende a melhor doutrina do Professor Gomes Canotilho e também do Professor Jorge Miranda, que alerta que deve ter-se em consideração o direito geral de personalidade, bem como a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa nesta matéria (acórdão de 26-03-2014 - RP201403262163/10.8TAPVZ.P1), onde se afirma que deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível, razão pela qual, afirmamos nós, se é legítimo o direito de crítica por parte do arguido, já a imputação desonrosa não o é, como se verificou nos presentes autos.
27. Em apreço nas declarações em crise, estão afirmações imputadas aos agentes de arbitragem em questão e ao Conselho de Arbitragem, designadamente de que “fechava os olhos”, “não quiseram ver”, “subserviência”, “com todas as câmaras ao seu dispor não conseguiu ver”, “compadrio, consolidação de um ambiente de pressões e ameaças”, “conivência”, “nomeação perfeita e a mentira da fonte da Federação” ou “tudo ser feito para a exemplo do que acontece há décadas se influenciar e desvirtuar a verdade desportiva”, inculcando a ideia de que os visados pelas declarações decidem com base em critérios que não a imparcialidade, objectividade e isenção.
28. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
29. É aliás de salientar que as declarações dos agentes desportivos têm grande relevância e podem fomentar fenómenos de intolerância e violência no mundo do desporto em geral e no futebol em particular, sendo um assunto de grande relevância social e de grande importância na consciencialização dos diversos “actores” desportivos, sobre a sua acrescida responsabilidade junto das massas que notoriamente influenciam.
30. Não se verifica também qualquer outra inconstitucionalidade na interpretação do artigo 112º do RD da LPFP, como aliás se alegou em sede de alegações e que aqui se dá por reproduzido, referindo-se desde já, que a referida norma foi aprovada em assembleia geral da LPFP, onde esteve presente a recorrente, que em concreto aprovou a referida norma, sendo que, nos encontramos no campo da auto-regulação, com que a recorrente se conformou.
31. Com efeito, a recorrida não entende – ao contrário do que habilmente pretende a recorrente fazer crer – que as SAD´s e os agentes desportivos não podem exercer a crítica no âmbito do exercício do direito à liberdade de expressão. O que a recorrida entende – e devidamente respaldada em variada doutrina e jurisprudência – é que tal exercício da liberdade de expressão não é ilimitado, não podendo comprimir desproporcionalmente o direito ao bom nome e reputação – artigo 26º da CRP – pelas declarações proferidas.
32. O artigo 10º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem dispõe que o exercício da liberdade de expressão implica deveres e responsabilidades com restrições desenhadas, entre outras, pela protecção da honra e dos direitos de outrem.
33. Assim, na ponderação dos interesses em conflito – direito à liberdade de expressão e crítica da recorrente e direito ao bom nome e consideração social dos árbitros visados pelas declarações e do Conselho de Arbitragem da recorrida e seus membros – as declarações em causa, o seu conteúdo, não representam um meio razoavelmente proporcionado à prossecução da finalidade visada porquanto facilmente se extrai que a recorrente produziu e difundiu as declarações em crise, querendo dizer e dizendo que os árbitros visados pelas declarações e do Conselho de Arbitragem da recorrida e seus membros, no exercício das suas funções, actuaram no sentido de prosseguir interesses particulares, próprios ou de terceiros e não com a isenção, seriedade e honestidade a que estão adstritos, tendo em conta as funções que desempenham.
34. Neste sentido, o direito à liberdade de expressão não pode ser interpretado sem ter sempre em consideração o direito geral de personalidade consignado no artigo 26º da CRP e, em especial, a tutela do bom nome, da reputação, da imagem, da palavra e da intimidade da vida privada.
35. Pelo que, não existe qualquer violação do disposto nos artigos 8º, 37º e 38º da CRP e 10º da CEDH, na interpretação que a recorrida faz e fez do artigo 112º do RD da LPFP devendo improceder a alegada inconstitucionalidade”.
5. O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado para os termos e efeitos do disposto no artigo 146º do CPTA, não emitiu parecer.
6. Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão aos Exmºs Juízes Adjuntos, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. OBJECTO DO RECURSO
7. As questões suscitadas pelo recorrente, delimitadas pelas conclusões da alegação do recurso, traduzem-se em apreciar se o acórdão recorrido:
a) Desconsiderou todo um conjunto de factualidade relevante para os presentes autos, nomeadamente que não resultou provado que seja a recorrente a autora da publicação em causa, por o autor da dita publicação ser o Sport Lisboa e Benfica e não a recorrente, inexistindo em sede de matéria de facto quaisquer indícios que possam ser utilizados para imputar tais declarações à recorrente (conclusões 2. a 6. da alegação da recorrente);
b) Enferma de erro de julgamento ao ter considerado que as afirmações constantes da publicação “Nota à Comunicação Social”, publicadas no sítio oficial da arguida (https://www.slbenfica.pt/), em 9-2-2020 – cfr. pontos 1. a 6. da matéria de facto infra –, eram idóneas a colocar em causa a honra, o bom nome e a reputação dos árbitros e do VAR, bem como a integridade da competição desportiva, configurando um ilícito disciplinar p. e p. pelo artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela LPFP (RD_LPFP), aprovado em Assembleia-Geral, em 27-6-2011, na versão dada pela sua última alteração, bem como ao não ter considerado inconstitucional a norma em causa, por violação dos artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa – por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa – e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH (conclusões 7. a 18. da alegação da recorrente).

III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
8. A decisão arbitral recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
1. A demandante “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, através da publicação “Nota à Comunicação Social” no seu sítio oficial da arguida (https://www.slbenfica.pt/), em 09.02.2020, com o título «ARBITRAGEM E VAR AO SERVIÇO DA COMPETITIVIDADE DO FUTEBOL PORTUGUÊS”?» e subtítulo: “A verdade desportiva foi ontem claramente desvirtuada com diversas decisões da equipa de arbitragem e do VAR com influência directa no jogo e no resultado”, proferiu declarações sobre a arbitragem, tendo como referência o jogo oficialmente identificado sob o nº 12002, entre a “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD” e a “Sport Lisboa e Benfica – Futebol SAD”, relativo à 20ª jornada da Liga NOS, realizado no Estádio do Dragão, no dia 08.02.2020.
2. Concretamente produziu as seguintes declarações:
A verdade desportiva foi ontem claramente desvirtuada com diversas decisões da equipa de arbitragem e do VAR com influência directa no jogo e no resultado. Uma actuação que merece a mais veemente das denúncias, nas mais diversas instâncias porque o que se passou é tão amplo e grave que nada melhor do que ser acompanhado de um minucioso guião com as imagens e os factos que provam de forma inequívoca o que afirmamos. Vamos apenas aos principais momentos suportados nas imagens de vídeo colocadas no nosso site e na BTV: 1- Começou logo aos 4 minutos, uma clara agressão de Marega a Taarabt (com perda de dentes inclusive para o jogador do Benfica) passou totalmente incólume, nem merecendo um amarelo, num lance que marcou logo de início o que seria este jogo; 2 – Mas seria a meio da primeira parte e já com o jogo empatado que a dualidade de critérios atingiria o seu auge. Aos 27 minutos uma entrada de O… sobre R…, a cortar contra-ataque, e aos 33 minutos uma entrada de A… sobre An… não mereceram qualquer amarelo. Pelo contrário, nessa altura do jogo todo o meio-campo do Benfica viria a ser amarelado, inclusive W… num lance em que nem sequer tocou no adversário e que naturalmente será objecto de pedido de despenalização”.
3. E ainda:
Consequência prática destes erros o condicionamento bem cedo da actuação da equipa do Benfica, ao mesmo tempo que fechava os olhos às sucessivas entradas faltosas dos jogadores do FCP. 3. Mas o pior estava guardado para o minuto 35. A marcação de uma grande penalidade a favor do FCP por árbitro e VAR que não quiseram ver o que todas as imagens mostram. A falta nítida de S…, qua agarra a camisola e empurra Ferro” […]. Uma imagem que exemplifica a total subserviência e um fechar de olhos inexplicáveis sobre o que estava à vista de todos. A brutal agressão a soco de P… a T… de frente para o árbitro, com este a ver, e que nem ele nem o VAR assinalam. Lance para clara expulsão”.
4. Acrescentando:
É que importa realçar que a gravidade das situações que rodearam este jogo vão muito para além dos principais erros que aconteceram dentro das quatro linhas. Começou logo pelas nomeações para árbitro e VAR que são incompreensíveis. Basta ver o historial de A… em jogos do FCP, depois da invasão do centro de treinos de árbitros da Maia, onde ele foi um dos principais visados. Como também é difícil de entender a nomeação de T… para VAR, depois da recente polémica sobre a alegada agressão com uma moeda de cinco cêntimos. T… que, com todas as câmaras ao seu dispor, não conseguiu ver as agressões de M… e P… e a falta de S… sobre F…. Estas escolhas e as suas actuações devem a todos fazer-nos reflectir. Muito se falou sobre a importância deste jogo e o que ele poderia representar no fim de um ciclo de anos e anos de domínio, compadrio, consolidação de um ambiente de pressões e ameaças tão bem ilustradas nos lamentáveis insufláveis ontem exibidos em via pública. A conivência e passividade perante tudo o que se passou antes, durante e após o jogo, o fechar de olhos às agressões, os erros com directa influência no resultado, a nomeação perfeita e a mentira da fonte da Federação denunciam e colocam a nu a tentativa desesperada de tudo ser feito para a exemplo do que acontece há décadas se influenciar e desvirtuar a verdade desportiva”.
5. Concluindo com o seguinte:
«E uma questão óbvia se levanta: será que o que aconteceu ontem foi uma arbitragem e um VAR ao serviço de uma pretensa “competitividade do futebol português que tantos pugnaram ao longo desta semana e assim beneficiando o FCP?. Assim, face ao histórico das constantes insinuações, ameaças, coacções, pressões e suspeitas sobre as equipas de arbitragem, como pudemos constatar ainda esta semana, por parte de diversos responsáveis do FCP e em nome da preservação da verdade desportiva, apelamos à Liga Portugal e à Federação Portuguesa de Futebol (FPF) que tomem as medidas adequadas e diligenciem no sentido de nomearem árbitros estrangeiros internacionais para todos os jogos do SLB e FCP até ao final da época”.
6. As declarações transcritas nos factos anteriores tiveram repercussão na comunicação social, nomeadamente em jornais desportivos nacionais como “A Bola”, “O Record” e “O Jogo” (edições de 10.02.2020) e em sítios da comunicação em geral, como o sítio do Record, do Observador, da TSF e do Notícias ao Minuto, entre a generalidade dos órgãos de comunicação social.
A publicação Nota à Comunicação Social no sítio da Internet https://www.slbenfica.pt em
09.02.2020, intitulada «ARBITRAGEM E VAR AO SERVIÇO “DA COMPETITIVIDADE DO FUTEBOL PORTUGUÊS”?» é da responsabilidade da “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” e publicada no site oficial que utiliza para as suas comunicações oficiais – o do clube.
7. Nessa “Nota” a “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” efectou declarações dirigidas a dirigentes e à equipa de arbitragem (Árbitro: A…; Assistente 1: R…; Assistente 2: P…; 4º Árbitro: M…; VAR: T…; AVAR: A….
8. A demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o conteúdo
das declarações divulgadas pelos sítios da internet e imprensa privada por si explorados, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem mencionados, afectando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que consubstancia comportamento previsto e punido pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo, o qual não se absteve, porém, de concretizar.
9. A demandante “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, à data dos factos, tinha antecedentes disciplinares, sendo reincidente quanto ao mesmo ilícito disciplinar.

B – DE DIREITO
9. As duas questões a que cumpre dar resposta no presente recurso jurisdicional não são novas e já foram objecto de pronúncia em várias decisões, quer deste TCA Sul, quer do STA.
10. A primeira delas, consiste em saber se pode ser imputada à aqui recorrente “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD” a responsabilidade pela autoria da publicação em causa, por o mesmo ser o Sport Lisboa e Benfica e não a recorrente, inexistindo em sede de matéria de facto quaisquer indícios que possam ser utilizados para imputar tais declarações à recorrente.
Desde já se adianta não assistir razão à recorrente.
11. Com efeito, dispõe o artigo 112º, nº 1 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, norma pela qual a recorrente foi disciplinarmente punida, que “o clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respectivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de actos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC”.
12. Porém, nos termos do nº 4 do normativo em causa, “o clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, directamente ou por interposta pessoa”.
13. Ora, tal como resulta da matéria de facto dada como assente, provou-se que a demandante “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, através duma denominada “Nota à Comunicação Social”, publicada no seu sítio oficial (https://www.slbenfica.pt/), em 9-2-2020, com o título “ARBITRAGEM E VAR AO SERVIÇO DA COMPETITIVIDADE DO FUTEBOL PORTUGUÊS?” e subtítulo “A verdade desportiva foi ontem claramente desvirtuada com diversas decisões da equipa de arbitragem e do VAR com influência directa no jogo e no resultado”, proferiu declarações sobre a arbitragem, tendo como referência o jogo oficialmente identificado sob o nº 12002, entre a “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD” e a “Sport Lisboa e Benfica – Futebol SAD”, relativo à 20ª jornada da Liga NOS, realizado no Estádio do Dragão, no dia 8-2-2020, as quais tiveram repercussão na comunicação social, nomeadamente em jornais desportivos nacionais como “A Bola”, “O Record” e “O Jogo” (edições de 10-2-2020) e em sítios da comunicação em geral, como o sítio do Record, do Observador, da TSF e do Notícias ao Minuto, entre a generalidade dos órgãos de comunicação social.
14. Mais se provou que a publicação da denominada “Nota à Comunicação Social” no sítio da Internet https://www.slbenfica.pt em 9-2-2020, foi da responsabilidade da “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, dado que foi publicada no site oficial que aquela utiliza para as suas comunicações oficiais – o do clube –, sendo que na mesma foram emitidas declarações dirigidas a dirigentes e à equipa de arbitragem – árbitro: A…; árbitro assistente 1: R…; árbitro assistente 2: P…; 4º árbitro: M…; VAR: T…; AVAR: A… –, tanto bastando para considerar tais factos imputáveis à recorrente, de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, independentemente do depoimento da testemunha inquirida em sede de instrução, o qual, perante o alcance de tal norma, jamais seria idóneo a isentar a recorrente da prática da infracção que lhe foi imputada.
15. Por conseguinte, não se vislumbra a necessidade de alterar a matéria de facto dada como assente, com o que improcedem as conclusões 2. a 6. da alegação da recorrente.
16. Também a segunda questão a que cumpre dar resposta – a de determinar se as afirmações constantes da publicação “Nota à Comunicação Social”, publicadas no sítio oficial da arguida (https://www.slbenfica.pt/), em 9-2-2020, reproduzidas nos pontos 1. a 6. da matéria de facto supra elencada, eram idóneas a colocar em causa a honra, o bom nome e a reputação dos árbitros e do VAR, bem como a integridade da competição desportiva, configurando um ilícito disciplinar p. e p. pelo artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela LPFP, bem como se tal norma deveria ter sido considerada inconstitucional, por violação dos artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH – foi já apreciada várias vezes por este TCA Sul, designadamente, nos acórdãos de 16-1-2020 (processo nº 154/19.2BCLSB) e de 13-2-2020, (processo nº 155/19.0BCLSB), respectivamente, sempre com resposta afirmativa.
17. Com efeito, como se pode ler no sumário do primeiro dos acórdãos referido – o de 16-1-2020, proferido no âmbito do processo nº 154/19.2BCLSB – aí se fixou o seguinte entendimento:
1. O cometimento do tipo de ilícito disciplinar de difamação p. e p. no artigo 112º, nº 1 do RDLPFP, tal como o ilícito penal correspondente, consiste no uso de expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias e, do ponto de vista do elemento subjectivo exige que o agente a tenha consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, sempre tendo em linha de conta o meio social e cultural em que os factos se inserem e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem” ou seja, o recurso ao conceito jurídico de “ homem médio” e “bom pai de família”.
2. O tipo de ilícito difamatório exige que as palavras ou expressões usadas não tenham outro sentido que não seja o de ofender; dito de outro modo, que inequívoca e em primeira linha as palavras ou expressões usadas visem gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do visado. (…)”.
18. Sobre este aresto recaiu, em sede de recurso de revista, o acórdão do STA, de 4-6-2020, que confirmou o entendimento expresso no acórdão do TCA Sul, nos seguintes termos:
I – Preenche o tipo de infracção disciplinar previsto e punido nos artigos 19º e 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros actuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º, nº 1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79º, nº 2 da CRP)”.
19. Idêntico entendimento tem vindo a ser sufragado pelo STA, nos acórdãos de 2-7-2020, proferido no âmbito do processo nº 139/19.9BCLSB, e de 9-12-2021, proferido no âmbito do processo nº 19/21.8BCLSB, onde se concluiu que “I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artigos 19º e 112º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha. II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.
20. No acórdão do TCA Sul, de 2-6-2021, proferido no âmbito do processo nº 26/21.0BCLSB, é feita uma recensão da jurisprudência do TEDH, a propósito da temática a que se vem aludindo, nos seguintes termos:
Por seu turno, também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), tem colocado especial enfoque na circunstância de que o direito à liberdade de expressão deve ser apreciado em equilíbrio com os direitos ao bom nome, à reputação e à imagem, visando a salvaguarda de uma sociedade democrática e considerando a envolvência de cada caso concreto, numa óptica de proporcionalidade.
Para o efeito, remete-se para a publicação deste Tribunal Europeu denominada “Guide sur l’article 10 de la Convention européenne des droits de l’homme. Liberté d’expression. Conseil de l’Europe/Cour européenne des droits de l’homme. Première édition – 31 mars 2020” (disponível para consulta em https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_10_FRA.pdf), da qual consta uma elucidativa e vasta resenha da respectiva jurisprudência sobre a matéria em causa (cfr. análise e resenha jurisprudencial referida no acórdão deste TCA Sul, de 1-10-2020, proferido no âmbito do processo nº 63/20), ali se salientando, a título de exemplo, a necessidade de distinguir um juízo de valor gratuito e ofensivo, de um juízo de valor alicerçado em factos e proferido no âmbito de um debate de ideias, remetendo-se para o acórdão Lopes Gomes da Silva c. Portugal, processo nº 37698/97, de 28-9-2000, ou para o acórdão nº 733/06, Lombardo e outros c. Malta, de 24-7-2007, ou ainda para o acórdão de 31-10-2007, proferido no âmbito do processo nº 25968/02, Dyuldin e Kislov c. Rússia.
De entre as afirmações que foram consideradas pelo TEDH como cabendo ainda na liberdade de expressão vd., a título de exemplo, embora todas devam ser respectivamente contextualizadas, o apelidar de um titular de um órgão de um clube futebolístico de “patrão dos árbitros” (cfr. acórdão do TEDH Colaço Mestre e SIC – Sociedade Independente de Comunicação, SA c. Portugal, proferido no âmbito do processo nº 11182/03 e nº 11319/03, de 26-4-2007), a afirmação de que os dirigentes de dois clubes de futebol cometeram um crime de abuso de confiança fiscal (cfr. acórdão Público – Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, proferido no âmbito do processo nº 39324/07, de 7-12-2010), a afirmação de que o presidente de um clube de futebol era “o campeão nacional dos arguidos” e um “inimigo figadal” da selecção” (cfr. acórdão do TEDH, Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, proferido no âmbito do processo nº 33287/10, de 23-10-2013), entre outras.
O TEDH, por exemplo, no acórdão nº 43924/02, de 23-1-2007, proferido no processo Almeida Azevedo c. Portugal, “(…) 23. (…) lembra que, de acordo com a sua jurisprudência constante, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 10º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa». Os Estados Contratantes gozam de uma certa margem de apreciação para determinar se existe uma tal necessidade, mas esta margem anda de par com um controlo europeu que incide tanto na lei como nas decisões que a aplicam, mesmo quando estas emanam de uma jurisdição independente (vide Lopes Gomes da Silva c. Portugal, nº 37698/97, acima referido, § 30). (…) 28. Ao examinar, come se deve, o contexto do caso, bem como o conjunto das circunstâncias em que as expressões ofensivas foram proferidas, o Tribunal observa antes de mais que o debate em questão relevava claramente do interesse geral. (…) os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político que actua na sua qualidade de figura pública do que de um simples particular. O primeiro expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, tanto pelos seus adversários políticos como pelos jornalistas e a massa dos cidadãos, e deve mostrar uma maior tolerância, sobretudo quando ele próprio faz declarações públicas que podem ser objecto de crítica (Jerusalem c. Autriche, no P. 26958/95, § 38, TEDH 2001-II). (…)”.
Por fim, no acórdão nº 53139/11, de 4-10-2016, proferido no processo Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, em que o TEDH condenou Portugal, no texto do acórdão, enuncia-se “(…) que quem participa de um debate em que se discutem assuntos de interesse geral, é-lhe permitido recorrer a algum grau de exagero ou de provocação ou, noutras palavra, de fazer declarações um tanto imoderadas” (vd. também o acórdão de 13-1-2015, proferido no processo nº 34447/05, Marian Maciejewski c. Poland, § 79, , assim como as demais referências)”.
21. Cumpre agora, e considerando o quadro jurídico fixado, analisar o caso concreto e aferir se as circunstâncias apuradas e descritas na matéria de facto que resultou provada na decisão recorrida, preenchem a infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do RDLPFP.
22. O normativo em questão dispõe o seguinte:
1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respectivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de actos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.
(…)
3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, directamente ou por interposta pessoa".
23. Da simples leitura deste facto, e considerando a doutrina que dimana da jurisprudência do STA e do TEDH, designadamente, a supra-citada e transcrita, não restam dúvidas de que o exercício do direito da recorrente à crítica e à indignação colidiu com os direitos ao bom nome, honra e reputação dos árbitros e do VAR e da integridade da competição desportiva, tal como a mesma se encontra gizada, muito em particular, quanto à arbitragem.
24. No caso em apreço, o excesso de linguagem e as ilações sobre a actuação quer do árbitro, quer do VAR, surge intencionalmente direccionada a ilações sobre a falta de imparcialidade dos mesmos, dando a entender que agiriam sempre em benefício do mesmo clube, sem que as mesmas estivessem ancoradas num substrato factual que as demonstrasse com evidência, sendo, por esse motivo, desonrosas, achincalhantes e ofensivas dos árbitros e VAR visados, e das organizações desportivas que com tal situação pactuariam.
25. Acresce que, tais afirmações, embora surjam na sequência de um jogo concreto, foram escritas no dia seguinte ao mesmo, não se podendo dizer que foram proferidas no “calor do jogo” ou no respaldo do resultado do mesmo, razão pela qual não se pode concluir que as mesmas estão enquadradas num determinado contexto de jogo, ou temporada de jogos, e nem que, por via das mesmas, apenas se discute o que se julga ter sido erradamente percepcionado pelos árbitros, ou que estas remetem para uma legítima apreciação das arbitragens, à luz de concretas jogadas e de determinados jogos.
26. As afirmações veiculadas na aludida “nota à imprensa” visam, claramente, difamar ou ofender, quer toda a equipa de arbitragem, quer os elementos que compunham o VAR, bem como de igual modo também a organização e gestão da arbitragem no seu todo, tal como a mesma está gizada.
27. Como se deixou expresso no citado acórdão deste TCA Sul, de 2-6-2021, proferido no âmbito do processo nº 26/21.0BCLSB, “com isto não se pretende dizer que os árbitros e a organizações desportivas não possam ser criticados: efectivamente podem, desde que a crítica cumpra a tríplice exigência de necessidade, adequação e proporcionalidade, através da qual encontraria respaldo no artigo 37º da CRP. Contrariamente, e concluindo, no caso em apreço foi feita uma crítica gratuita, que teve em vista afectar as qualidades pessoais – “in casu”, a imputada competência direccionada para beneficiar sempre o mesmo clube – do árbitro visado e identificado: o VAR B... – não estando em causa, assim, uma mera crítica – que, desde que respeitando o tríplice limite identificado supra, pode ser contundente e feroz –, mas sim de declarações caluniosas e difamatórias, não ancoradas em factos concretos, ultrapassando, face a todo o exposto e no contexto em que foi escrita, a mera crítica a concretas decisões tomadas pelo VAR B...”.
28. Consequentemente, também não merece censura o decidido no acórdão do TAD, no tocante ao cometimento da infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
29. Finalmente, resta apreciar se se verifica, como sustenta a recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 112º do RDLPFP.
30. Mais uma vez se afirma a falta de novidade da questão que ora nos é colocada, na medida em que sobre a mesma já se pronunciou o STA, no seu acórdão de 4-6-2020, proferido no âmbito do processo nº 154/19.2BECLSB, razão pela qual nos limitaremos, por com ele concordar, a transcrever o que consta dos seus fundamentos, no tocante à questão em causa. Aí se escreveu o seguinte:
O acórdão recorrido, na linha do que decidiu o Tribunal Arbitral do Desporto, assentou a sua conclusão na liberdade de expressão e de informação garantida pelo artigo 37º da Constituição, afirmando que «considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação, seja em que domínio for, no caso dos autos, erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se autocensurarem».
O texto publicado no jornal electrónico da recorrida, como vimos, não se limitou a apontar erros de apreciação, ou de arbitragem, na medida em que acusou os árbitros de terem actuado com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. E como se afirmou a propósito do abuso de liberdade de imprensa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Dezembro de 2002, proferido na Revista nº 3553/02, da 7ª Secção, «o simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral».
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objectivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo nº 1 do artigo 26º da Constituição.
O disposto nos artigos 19º e 112º do RDLPFP não é, por isso inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e à reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respectivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. artigo 112º, nº 4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de Fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e rectidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do nº 2 do artigo 79º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido neste autos, sobre «(...) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.
31. Por conseguinte, improcedem também as conclusões 7. a 18. da alegação da recorrente e, com elas, o presente recurso jurisdicional.
32. Sumariando:
i) Preenche o tipo de infracção disciplinar previsto e punido no artigo 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada (on-line) de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros actuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
ii) Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (cfr. artigo 26º, nº 1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (cfr. artigo 79º, nº 2 da CRP).

IV. DECISÃO
33. Nestes termos, e pelo exposto, acordam os juízes da secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando deste modo a decisão recorrida.
34. Custas pelo recorrente (cfr. artigos 77º, nº 4 da Lei nº 74/2013, de 6/9; 2º, nºs 2, 4, 5, Anexo I, da Portaria nº 301/2015, de 22/9; 527º, nºs 1 e 2 do CPCivil; 7º, nº 2 e 12º, nº 2 do RCP, e 189º, nº 2 do CPTA).
Lisboa, 21 de Abril de 2022
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Dora Lucas Neto – 1ª adjunta)
(Pedro Figueiredo – 2º adjunto)