Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:534/10.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:03/22/2018
Relator:VITAL LOPES
Descritores:REVERSÃO
GERENTE ÚNICO INSCRITO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
FACTOS PROVADOS
Sumário:1. Independentemente da alínea a) ou b) do n.º1 do art.º24.º da LGT ao abrigo da qual se tenha concretizado a reversão, à Administração tributária cabe sempre fazer a prova do exercício efectivo, ou de facto, da gerência do oponente na sociedade devedora originária.
2. Ao juiz é lícito inferir a efectividade da gerência do oponente no contexto em que ele é o único gerente inscrito da SDO e se comprova que esta teve actividade no período a que se reportam as dívidas revertidas.
3. Porém, não pode formar-se um juízo presuntivo quanto à efectividade da gerência partindo do facto de se tratar o oponente do único gerente inscrito da SDO quando constem do probatório factos que manifestamente conflituam com aquela presunção.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1 – RELATÓRIO

A Exma. Representante da Fazenda Pública, recorre da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição deduzida por João ... à execução fiscal n.º... e apensos contra ele revertida e originariamente instaurada contra a sociedade “... & ..., Lda.” por dívidas provenientes de IVA de períodos de 2004, 2005 e 2006, IRC de 2004, 2005 e 2006 e coimas fiscais, tudo perfazendo o valor de 186.741,57 Euros.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo (fls.230).

Nas alegações de recurso, a Recorrente formulou as seguintes «Conclusões:
«
I) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou totalmente procedente a oposição deduzida pelo Oponente, João ..., na qualidade de responsável subsidiário, com o contribuinte n.º ..., no processo de execução fiscal n.º ... e apensos, que foram instaurados contra a devedora originária ... & ... Lda., com o contribuinte n.º ..., e consubstanciam a cobrança coerciva do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), relativo aos anos de 2004 a 2008, no valor de €186.741,57.

II) O pedido foi considerado procedente, com base no facto do Opoente ser parte ilegítima na execução da dívida, sendo certo que não exerceu a gerência, concluindo no sentido do art.204ºnº1 corpo e a alínea b) in fine do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

III) No que concerne à matéria de facto apurada na qual se fundamenta a douta sentença no ponto 4. ficou demonstrado que “Em 17 de dezembro de 2003 o Opoente, João ..., adquiriu as quotas daqueles dois sócios e passou a ser ele [o único sócio e] o gerente da sociedade, por designação exarada na respetiva escritura, pela qual do mesmo passo foi alterado o pacto social, além do mais, com mudança da sede da sociedade para o ..., em Lisboa, mais exatamente para a ... 53 rés-do-chão.”

IV) Desde aquela data (17/12/2003) o Oponente não só aceitou assumir a responsabilidade total pela sociedade, aceitando o exercício da gerência, como também se tornou no seu único sócio, pelo que inclusivamente poderemos considerar que a empresa se tornou numa sociedade unipessoal.

V) Acrescendo o facto de que a empresa estava sediada em ... e passou a estar sediada no ....

VI) Neste sentido e não tendo diligenciado qualquer inativação da sociedade no ordenamento jurídico deve o Oponente ser responsabilizado subsidiariamente pela dívidas fiscais acumuladas precisamente devido à sua inercia.


VII) Com a devida vénia, julgamos que ficou devidamente provado que existe culpa por parte do Oponente ao omitir um comportamento adequado ao cargo que visou aceitar, salientando-se o ato formal pelo qual as sociedades realizam quer a alteração da sua sede, quer a transferência de quotas.

VIII) Portanto não existindo nestes termos quaisquer condições ou circunstâncias excepcionais, anormais ou extraordinárias, mas só e apenas uma inércia total por parte do Oponente pela qual deverá responder.

IX) Concluímos, portanto, que a sentença recorrida, ao assim não entender, apresenta-se ilegal por desconformidade com os preceitos acima assinalados, não merecendo por isso ser confirmada.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o recurso e revogada a douta sentença recorrida, como é de Direito e Justiça».

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto emitiu mui douto parecer em que conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida na ordem jurídica por não sofrer dos vícios que lhe vêm assacados.

Colhidos os vistos legais, e nada mais obstando, cumpre decidir.

2 – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da Recorrente (cf. artigos 634.º, n.º4 e 639.º, n.º1 do CPC),a questão que importa resolver reconduz-se a saber se a sentença incorreu em erro de julgamento, de facto e de direito, ao concluir que a Administração Tributária não fez prova da efectividade da gerência do oponente na sociedade devedora originária no período a que respeitam as dívidas.

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância deixou-se consignado em sede factual:

«(…) É a seguinte a matéria de facto relevante para a decisão que, em face da prova reunida, resulta provada:

1. Os autos principais, com o nº... e apensos, pendentes no Serviço de Finanças de ..., têm como executada principal, devedora originária, a sociedade ... & ..., L.da, com sede na ... 53, rés- do-chão, em Lisboa e visam a cobrança coerciva das seguintes coimas e dívidas tributárias e juros de mora destas:
a) €204 – representativa de coima por infração cometida pela sociedade em 2008; custas de €48 do processo em que foi aquela aplicada, vencendo estas juros de mora desde 5 de novembro de 2008;

b) €3.376,79, proveniente de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas de 2004, com termo de prazo de pagamento a 8 de janeiro de 2009, incluindo juros compensatórios e, de mora, desde esta data;

c) €23.186,27, proveniente de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas de 2005, com termo de prazo de pagamento a 8 de janeiro de 2009, incluindo juros compensatórios e, de mora, desde esta data;

d) €50.304,38, proveniente de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas de 2006, com termo de prazo de pagamento a 12 de janeiro de 2009, incluindo juros compensatórios e, de mora, desde esta data;

e) €1.922,80, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado de janeiro de 2004, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

f) €343,68, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado de janeiro de 2004 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

g) €6.175, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado de abril de 2004, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

h) €1.246,12, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do segundo trimestre de 2004 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

i) €15.398,58, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do terceiro trimestre de 2004, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

j) €1.824,20, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do terceiro trimestre de 2004 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

k) €14.638,05, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do quarto trimestre de 2004, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

l) €1.583,32, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do quarto trimestre de 2004 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

m) €17.745, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado de março de 2006, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

n) €1.765,75, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado de março de 2006 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

o) €8.342,25, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do segundo trimestre de 2006, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

p) €740,52, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do segundo trimestre de 2006 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

q) €6.090, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do terceiro trimestre de 2006, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

r) €479,86, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do terceiro trimestre de 2006 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data;

s) €6.237, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do quarto trimestre de 2006, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data; e

t) €428,56, proveniente de Imposto sobre o Valor Acrescentado do quarto trimestre de 2006 - juros compensatórios -, com termo de prazo de pagamento a 28 de fevereiro de 2009, incluindo juros de mora desde esta data.

2. A sociedade executada foi fundada até 5 de junho de 2001 por Fernão de ... e ... e por Vítor Manuel de ... de ..., tendo sede na aldeia do ..., na freguesia do mesmo nome do concelho de ..., e que mais tarde seria por eles deslocada para uma outra localidade do mesmo concelho.

3. Naquele dia 5 de junho de 2001 o pacto social foi levado ao Registo, pela Conservatória do Registo Comercial de ..., tendo como objeto a «importação, exportação, comercialização, fabrico, distribuição e representação de pastelaria e panificação».

4. Em 17 de dezembro de 2003 o Opoente, João ..., adquiriu as quotas daqueles dois sócios e passou a ser ele [o único sócio e] o gerente da sociedade, por designação exarada na respetiva escritura, pela qual do mesmo passo foi alterado o pacto social, além do mais, com mudança da sede da sociedade para o ..., em Lisboa, mais exatamente para a ... 53 rés -do-chão.

5. As notificações das liquidações de que emergem as dívidas supra-discriminadas foram dirigidas à sociedade executada, via postal, para esta sua sede em Lisboa: as de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, sob registo, mas sem aviso, em dezembro de 2008, as de Imposto sobre o Valor Acrescentado, ou de juros com elas conexos, igualmente pelo seguro do correio, mas em datas específicas desconhecidas.

6. Na sequência de se ter frustrado a efetivação de algum ato executivo, por nenhuns bens encontrar a Administração Tributária à sociedade, nem nenhuns lhe conhecer, foi iniciado meados de abril de 2009 o procedimento enxerto de reversão, nesse contexto tendo sido dirigido ao Opoente ofício de 14 de maio de 2009, com projeto de reversão sobre si dos autos, para poder pronunciar-se sobre essa eventual reversão.

7. E o Opoente pronunciou-se – em termos cujo teor exato não está documentado mas se extraem do despacho de reversão – refutando a reversão por não ter exercido a gerência da sociedade, apesar da nomeação para o cargo, e invocando desconhecer uma qualquer atividade da sociedade, sendo-lhe por isso estranha, desenvolvida no seu desconhecimento e à sua revelia.

8. Todavia, o Órgão de Execução Fiscal, por despacho de 3 de junho de 2009, considerando que as dívidas provinham de declaração da própria sociedade – liquidados pelo sujeito passivo [sic] – e que não havia outro possível responsável subsidiário senão o Opoente, sendo da sua responsabilidade a gerência da sociedade executada, ao abrigo do disposto no art.153ºnº2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e sob invocação do disposto no art.8º do Regime Geral das Infrações Tributárias e nos arts.23º e 24º da Lei Geral Tributária, reverteu a execução na íntegra sobre o Opoente.

9. O Opoente, armador de ferro de profissão, hoje com cerca de 72 anos de idade – e já reformado – e que nos anos de 2003 a 2009 vinha trabalhando esporadicamente, quando era chamado para alguma pequena obra do seu ofício – vivendo com sua mulher, em parte, a expensas das suas quatro filhas – percecionara, ou pelo menos comunicara aos seus familiares, que iria aceder a um emprego certo, na sequência dos contactos que teve com quem lhe preparou a aquisição das quotas sociais da sociedade executada – pessoa desconhecida e diversa dos cessionários, não identificada.

10. O Opoente nunca transmitiu aos seus familiares que iria fazer, ou que tinha feito, o negócio referido no ponto 4., sequer tendo mencionado que iria passar a fazer parte de alguma sociedade e/ou ser seu gerente.

11. O Opoente nunca acedeu ao tal emprego que anunciara, nem nunca teve um qualquer contacto com a sociedade executada, ou com alguma sua atividade, nomeadamente com a respetiva empresa [supondo-a existente algures], jamais chegando a fazer o que quer que fosse no seu âmbito ou em sua repres entação – além das alterações do pacto social exarados na própria escritura de cessão de quotas, mencionados na matéria de facto provada.

12. No decurso da ação inspetiva a que a sociedade executada foi sujeita, relativa aos seus exercícios de 2004, 2005 e 2006, que conduziu à elaboração das liquidações de que emergiriam as dívidas supra-discriminadas, notificado para apresentar documentação, o Opoente respondeu, pelo menos por duas vezes, em 15 de julho de 2008 e em 3 de setembro de 2008 que nunca tinha s ido seu gerente de facto [sic], não tendo conhecimento nem acesso à sociedade e não podendo, por isso, facultar quaisquer documentos a ela respeitantes.

13. Na sequência da decisão do Órgão de Execução Fiscal referida no ponto 8., o Opoente foi citado para os termos da execução a 18 de junho de 2009.

14. Apresentaria a petição, na origem destes autos, no dia 16 de julho de 2009»

E mais se deixou consignado na sentença:

«Não há outros factos provados e, dentre a matéria relevante para a decisão da causa e dos factos alegados, não resultou provado:

1. Que tenha havido engano do Opoente que o houvesse determinado a adquirir a sociedade executada e a passar a figurar como seu gerente.

2. Qual a contrapartida que o Opoente deu, ou recebeu, em razão da cessão das quotas a seu favor e de ter passado a figurar como seu gerente.

3. Caso essa contrapartida – num sentido ou noutro – tenha sido material ou pecuniária, donde proveio ou quem em nome do Opoente a prestou aos cessionários.

4. Quem é que deu azo, com a sua atividade e comportamento, às operações realizadas em nome da sociedade executada e a ela tributadas em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, bem como aos rendimentos a ela imputados, relevantes de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e igualmente a ela tributadas, de que emergiram as dívidas de impostos exequendas, descritas no ponto 1. da matéria de facto provada.

5. Que relação tem ou teve o local da sede da sociedade como essa(s) pessoa(s) aludida(s) no ponto anterior.

6. Que a prática dos atos subjacentes, implicados nas atividades aludidas no ponto 4., tivessem sido protagonizadas, de algum modo, pelo Opoente e que tivesse sido ele a causar ou contribuído para causar a falta de património da sociedade com que o Órgão de Execução Fiscal se deparou na execução.

7. Em que atos do Opoente, ou em que factos, fundou o Órgão de Execução Fiscal a sua decisão de reversão da execução sobre ele, dos quais se extraísse, nomeadamente, terem causado ou contribuído para causar a falta de património da sociedade executada, com que se deparou na execução.

8. Onde, quando e como foi a decisão que aplicou a coima, mencionada na alínea a)
do ponto 1. da matéria de facto provada, notificada à sociedade executada.

Não há outros factos, relevantes para a decisão da causa, que hajam resultado não provados».

Em sede de motivação deixou-se consignado na sentença recorrida:

«A convicção do Tribunal sobre os factos provados sob os pontos 1.-4., 6.-8. e 12.-13. formou-se a partir da análise da prova documental reunida, no que à execução oposta respeita, nos títulos e nos termos, instrução e decisões nelas tomadas, insertos nos documentos que constam do extrato inserto nos autos, por cópia, de fls.20-83, onde se
incluem as diligências do Órgão de Execução Fiscal junto dos serviços de inspeção,
para proporcionarem elementos de identificação/localização da sociedade e dos seus responsáveis. Daí se extraiu, outrossim, o que contende com a constituição da sociedade e da participação do Opoente nela, com que se mostra igualmente instruída a execução extratada, por certidão dos factos do pacto social levados ao Registo Comercial, maxime os respeitantes a quem nomeado para as funções na gerência daquela sociedade, no período aqui relevante, tendo-se ainda cotejado a certidão da escritura de cessão mencionada na matéria de facto, inserta também no extrato da execução, com a da escritura de constituição da sociedade, pedida para instrução dos autos e constante de fls.140-146. O consignado sob o ponto 5. advém do teor das informações e dos extratos de suporte informático da própria Administração Tributária, adrede solicitados, constantes de fls.148-173. O descrito no ponto 14. retirou-se da menção aposta na própria petição inicial. Esta prova serviu de suporte demonstrativo dos factos que nela se contêm, na medida em que não se mostra em si mesma controvertida, e a fidedignidade da documentação permite conferir-lhe o valor probatório que lhe deferem os arts.369ºnº1, 370ºnº1 e 371ºnº1 do Código Civil e, ainda, o art.34ºnº2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Por fim, o único depoimento recolhido serviu de suporte probatório sobre o que consignado ficou nos pontos 9.-11., o qual versou sobre a perceção e expressão do Opoente sobre o tipo de negócio em que ia envolver-se e aquele em que acabou por se envolver, sobre a sua relação com a sociedade de que passou a figurar como gerente, bem como sobre o seu contacto com ela e o que desenvolveu aí nos anos que se seguiram a ter dela passado a ser sócio e gerente designado, bem com sobre quais as razões explicativas para o modo como tudo aconteceu. Versou igualmente sobre a condição do Opoente, sua instrução, condição e circunstâncias de vida materiais e familiares. Pela naturalidade a algum desapego com que foi prestado, e pela natural perplexidade que foi demostrando sobre quanto lhe foi comunicado acerca do teor documental dos autos ao longo do seu depoimento – não obstante a relação familiar em causa, pois a testemunha é genro do Opoente –, o que narrou foi positivamente valorado nos aspetos salientados e tido como correspondendo à verdade, nisso se tendo também presente a razão de ciência, gerada pelo relacionamento familiar, com alguma proximidade até e, ainda, pelo facto de o Opoente e a testemunha serem vizinhos. A testemunha demonstrou ainda conhecimento não só direto como circunstanciado da vida do Opoente e da sua condição, descrevendo um quotidiano e uma condição incompatíveis com a intervenção dele na sociedade, nomeadamente protagonizando nela uma qualquer atividade, muito menos a sua gestão, qualquer que ela fossem uma e outra. Assim, o Tribunal respondeu à matéria de facto ora em causa, da forma plasmada supra, ao abrigo das normas invocadas e, bem assim ao abrigo do disposto no art.396º do Código Civil.

A matéria de facto não provada consignada sob os pontos 1.-5. e 8. desta secção resultou da absoluta ausência de prova sobre ela, a daqueles três primeiros pontos, porque se foi revelando necessária à cabal compreensão de toda a situação subjacente ao processo, rectius: à descrição exata da inserção do Opoente na sociedade executada, mas ele omitiu deliberadamente qualquer prova quanto aos três primeiros pontos e não conseguiu indicar qualquer explicação nem prova, ou indicações para que pudesse ser procurada, sobre a demais matéria, sendo que inexiste outra prova, nos termos do arts.74ºnº1 da Lei Geral Tributária e 342ºnº2 do Código Civil cabendo-lhe fazer prova sobre esses factos; a matéria do ponto 8., porque era também questionada e não foi feita prova sobre ela, a qual incumbia à Fazenda Pública, arts.47º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 65ºn.os1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias e 74ºnº1 da Lei Geral Tributária, posto que se trata da demonstração da exequibilidade/trânsito de uma decisão da Administração Tributária. Já a matéria dos pontos 6.-7. resultou não provada devido à total ausência da sua demonstração, em conjugação com a distribuição do ónus probatório sobre ela, nos termos do citado art.74ºnº1 da Lei Geral Tributária e art.342ºnº1 do Código Civil, cabendo igualmente à Fazenda Pública. Com efeito, a propósito destes factos não está em causa, senão, a questão anterior, hoc sensu, da prova dos requisitos positivos do direito de reverter em concreto, fundado num [invocado] exercício de gerência e, depois, numa [não invocada] culpa do Opoente [na insuficiência patrimonial], seguindo-se a este propósito, in casu, a mesma distribuição do ónus probatório respetivo, mas agora com base no que regime definido no art.24ºnº1 corpo e alíneas da Lei Geral Tributária, sendo aqui a sua alínea a) a aplicável, não a b), tal como reiteradamente é dito neste processo (o Órgão de Execução Fiscal nem sequer refere qual a alínea desse art.24ºnº1 sob a qual exerce a reversão…). Segundo o art.153ºnº2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, na sua conjugação com o disposto nesse art.24ºnº1 resulta que integram o elenco dos requisitos desse direito da Administração Tributária, à cabeça, e para além dos requisitos objetivos da inexistência ou insuficiência de bens do ente coletivo, o exercício das funções de administração ou gerência, ainda que de facto, dessa entidade. Já quanto ao requisito último da culpa dos gestores na insuficiência ou na inadimplência, a lei procede a uma repartição diferenciada dos ónus probatórios, segundo a relação temporal de concomitância ou superveniência que interceda entre o facto que origina a dívida exequenda e o período do exercício do cargo. Mas relativamente ao requisito do exercício do cargo o regime é constante, competindo sempre à Administração Tributária demonstrá-lo no período relevante, como primeiro momento de um fundado exercício do direito de reversão. Ora, quanto a isso, ficou provado o inverso, e como dito, do despacho de reversão apenas consta o teor do Registo, associado a um raciocínio formalmente válido de unicidade de sócio e gerente únicos, mas que se mostra em concreto ser inaplicável, ante as anomalias que se vinham insinuando na situação e ficaram provadas, aliás desde a ação inspetiva, como dão conta os elementos pedidos aos serviços de inspeção. De resto, o art.11º do Código do Registo Comercial, abriga na presunção de verdade do Registo, arts.350ºnº1 do Código Civil, 7º do Código do Registo Predial, aqui supletivamente aplicável, o facto em si da nomeação para o cargo, não o do seu exercício subsequente, neste sentido cfr., por todos, o Ac.TCA de 10I2006, in Antologia de Acórdãos STA e TCA Ano IX nº2 (Janeiro-Março), pág.332-337. Pelo que em relação ao exercício inexiste uma qualquer presunção legal de que tenha mesmo ocorrido e, por assim ser, este requisito do direito de reversão deve igualmente ser afirmado, como genericamente os demais, com base na sua demonstração, por quem exerce o direito de reverter, maxime quando num caso como o presente, em que esse exercício vem sendo sempre refutado pelo único sócio e gerente conhecido como tal a partir do Registo!... Pode – e deve – obtemperar-se que o exercício da administração é passível se ser inferido com segurança de outros factos e elementos, que indiretamente o revelem ou dos quais se extraia tal atividade, art.349º e 351º do Código Civil. Sem dúvida. Mas disso nada consta, tendo resultado antes o seu inverso. Foi este o contexto legal e metodológico na base da resposta à matéria de facto não provada nos pontos ora em apreço».

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A recorrente circunscreve o âmbito do presente recurso à reversão por dívidas tributárias, expressando o seu inconformismo com o entendimento da sentença quanto aos pressupostos da reversão enunciados no art.º24.º da LGT, deixando fora do âmbito do recurso as dívidas provenientes de coimas, em que a oposição procedeu por fundamento diverso, ou seja, por prescrição do procedimento de contra-ordenação subjacente à decisão que aplicou as coimas.

No entender da Recorrente, contrariamente ao decidido, estão reunidos os pressupostos de que depende a reversão por dívidas tributárias no que respeita à gerência e à culpa do oponente/Recorrido. Vejamos.

Em causa, estão dívidas de 2004 e posteriores, sendo aplicável o regime de responsabilidade subsidiária previsto no art.º24.º da Lei Geral Tributária.

Estabelece o n.º1 daquele art.º24.º da LGT:

«1. Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
2 – (…)».

Na repartição do ónus de prova quanto aos pressupostos da responsabilidade subsidiária dos gerentes que decorre desse preceito, (i) incumbe à AT comprovar a alegação de exercício efectivo do cargo e a culpa do revertido na insuficiência do património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado para a satisfação da dívida tributária, quando esta se tenha constituído no período de exercício do cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado após aquele exercício (al. a) do nº 1 do art.º24º da LGT); (ii) incumbe à AT comprovar a alegação de exercício efectivo do cargo e incumbe ao revertido comprovar que não lhe é imputável a falta de pagamento das dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do cargo (al. b) do nº 1 do art.º24º da LGT).

Independentemente da alínea do n.º1 do art.º24.º da LGT ao abrigo da qual se tenha concretizado a reversão, à Administração tributária cabe sempre fazer a prova do exercício efectivo, ou de facto, da gerência do oponente na sociedade devedora originária.

Resulta desse normativo que a responsabilidade subsidiária é atribuída em função do exercício do cargo de gerente e reportada ao período do respectivo exercício. Ou seja, a gerência de facto, real e efectiva, constitui requisito da responsabilidade subsidiária dos gerentes, não bastando, portanto, a mera titularidade do cargo, ou o que se designa por gerência nominal ou de direito.

Ora, é sobre a Administração tributária, enquanto titular do direito de reversão, que recai o ónus de demonstrar os pressupostos que lhe permitem reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária e, nomeadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência, de acordo com a regra geral de direito probatório segundo a qual, àquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito que alega – cf. artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 74º, nº 1, da LGT.

Fazendo apelo à doutrina vertida no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 28/02/2007, proferido no proc.º01132/06, resulta claramente explicado nesse Acórdão (embora referenciado ao regime do art.º13.º do CPT, mas transponível para os autos) que “No regime do Código de Processo Tributário relativo à responsabilidade subsidiária do gerente pela dívida fiscal da sociedade, a única presunção legal de que beneficia a Fazenda Pública respeita à culpa pela insuficiência do património social.”
”Não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efectivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário”, pelo que, “competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência”.

Na mesma linha de entendimento e já no domínio do regime de responsabilidade subsidiária dos gerentes comtemplado na LGT, deixou-se consignado no Acórdão do STA, de 02/03/2011, proferido no proc.º0944/10, o seguinte:
«Na verdade, há presunções legais e presunções judiciais (arts. 350.º e 351.º do CC).
As presunções legais são as que estão previstas na própria lei.
As presunções judiciais, também denominadas naturais ou de facto, simples ou de experiência são «as que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos hauridos através da observação (empírica) dos factos». (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 486; Em sentido idêntico, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 215-216, e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume I, 2.ª edição, página 289.).
De facto, não há qualquer norma legal que estabeleça uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente que ela se presume a partir da gerência de direito.
No entanto, como se refere no acórdão deste STA de 10/12/2008, no recurso n.º 861/08, «o facto de não existir uma presunção legal sobre esta matéria, não tem como corolário que o Tribunal com poderes para fixar a matéria de facto, no exercício dos seus poderes de cognição nessa área, não possa utilizar as presunções judiciais que entender, com base nas regras da experiência comum.
E, eventualmente, com base na prova de que o revertido tinha a qualidade de gerente de direito e demais circunstâncias do caso, nomeadamente as posições assumidas no processo e provas produzidas ou não pela revertida e pela Fazenda Pública, o Tribunal que julga a matéria de facto pode concluir que um gerente de direito exerceu a gerência de facto, se entender que isso, nas circunstâncias do caso, há uma probabilidade forte (certeza jurídica) de essa gerência ter ocorrido e não haver razões para duvidar que ela tenha acontecido. (Sobre esta «certeza» a que conduz a prova, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 191-192.).
Mas, se o Tribunal chegar a esta conclusão, será com base num juízo de facto, baseado nas regras da experiência comum e não em qualquer norma legal.
Isto é, se o Tribunal fizer tal juízo, será com base numa presunção judicial e não com base numa presunção legal.»
Todavia, ainda que não seja possível partir-se do pressuposto de que com a mera prova da titularidade da qualidade de gerente que a revertida tinha não se pode presumir a gerência de facto, é possível efectuar tal presunção se o Tribunal, à face das regras da experiência, entender que há uma forte probabilidade de esse exercício da gerência de facto ter ocorrido.
Mas, por outro lado, na ponderação da adequação ou não de uma tal presunção em cada caso concreto, nunca há num processo judicial apenas a ter em conta o facto de a revertida ter a qualidade de direito, pois há necessariamente outros elementos que, abstractamente, podem influir esse juízo de facto, como, por exemplo, o que as partes alegaram ou não e a prova que apresentaram ou deixaram de apresentar».

Na linha doutrinária daqueles arestos, veio a formar-se jurisprudência no sentido de que sendo o revertido/oponente o único gerente inscrito da sociedade devedora originária, ao juiz era lícito inferir o exercício efectivo dessa gerência do conjunto da prova, usando as regras da experiência e fazendo juízos correntes de possibilidade, pese embora não pudesse ser retirado mecânica e automaticamente do facto de ter sido designado gerente, na falta de presunção legal.

E uma das situações em que resultava lícito ao juiz inferir o exercício efectivo da gerência com base na gerência nominal era quando resultasse provado que no período das dívidas era ele o único gerente nomeado da sociedade e sem a assinatura do qual a sociedade não se podia obrigar e que a sociedade se manteve em actividade no período em causa – vd. Acórdão do TCAN, de 21/02/2008, tirado no proc.º00445/06.2BEPNF e a contrario o mais recente Acórdão deste TCAS, de 27/10/2016, tirado no proc.º07665/14.

Todavia, no caso dos autos, a questão assume contornos diversos pois apesar de resultar demonstrado ter sido o oponente o único gerente inscrito no período das dívidas, na sentença foram dados como «provados» e «não provados» outros factos alegados pelas partes que conflituam com um juízo presuntivo quanto à efectividade da gerência.

Com efeito, deu a sentença como provado no ponto 9. que “O Opoente, armador de ferro de profissão, hoje com cerca de 72 anos de idade – e já reformado – e que nos anos de 2003 a 2009 vinha trabalhando esporadicamente, quando era chamado para alguma pequena obra do seu ofício – vivendo com sua mulher, em parte, a expensas das suas quatro filhas – percecionara, ou pelo menos comunicara aos seus familiares, que iria aceder a um emprego certo, na sequência dos contactos que teve com quem lhe preparou a aquisição das quotas sociais da sociedade executada – pessoa desconhecida e diversa dos cessionários, não identificada. Mais adiante, no ponto 11., deu por assente que: “O Opoente nunca acedeu ao tal emprego que anunciara, nem nunca teve um qualquer contacto com a sociedade executada, ou com alguma sua atividade, nomeadamente com a respetiva empresa [supondo-a existente algures], jamais chegando a fazer o que quer que fosse no seu âmbito ou em sua repres entação – além das alterações do pacto social exarados na própria escritura de cessão de quotas, mencionados na matéria de facto provada”.

Por outro lado, a sentença julgou «não provado» no ponto 4 “Quem é que deu azo, com a sua atividade e comportamento, às operações realizadas em nome da sociedade executada e a ela tributadas em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, bem como aos rendimentos a ela imputados, relevantes de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e igualmente a ela tributadas, de que emergiram as dívidas de impostos exequendas, descritas no ponto 1. da matéria de facto provada. E, no ponto 6, “Que a prática dos atos subjacentes, implicados nas atividades aludidas no ponto 4., tivessem sido protagonizadas, de algum modo, pelo Opoente…”.

Ora, não pode formar-se um juízo presuntivo quanto à efectividade da gerência partindo do facto de se tratar o oponente do único gerente inscrito quando ele alega e demonstra que nenhum contacto manteve com a sociedade após a cessão das quotas e sua nomeação para o cargo de gerente; e, por outro lado, não logra a Fazenda Pública, ora Recorrente, demonstrar, por qualquer meio de prova, a imputabilidade ao oponente de qualquer facto praticado em representação da sociedade executada, com relevância fiscal ou comercial, ou de que tenham resultado as dívidas exequendas.

Salienta-se que a matéria de facto não foi impugnada pela Recorrente nos termos do art.º640.º do CPC, o que nos impede de proceder à sua alteração.

Acresce que não se pode abstrair do facto de o oponente já em sede de procedimento de reversão, e a sentença disso se deu conta e valorou, afirmara que “nunca exerceu a gerência…desconhecendo em absoluto que esta tenha tido qualquer actividade no período em que esteve nomeado gerente… se alguém utilizou a sociedade para exercer qualquer actividade nesse período, fê-lo à revelia e sem conhecimento do ora notificado” (cf. informação executiva a fls.57 dos autos).

Em tal contexto factual, impunha-se à Fazenda Pública, como parte onerada com a prova, maior empenho probatório na demonstração da efectividade da gerência do oponente, esforço probatório que não empreendeu e, como assim, contra si tem de ser valorada a falta de prova quanto à efectividade da gerência, sendo o oponente parte ilegítima na execução, o que determina a procedência da oposição.

A sentença não merece censura, tendo feito acertado julgamento de facto e de direito.

O recurso não merece provimento.


5 - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Condena-se a Recorrente em custas.

Lisboa, 22 de Março de 2018



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Vital Lopes




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Joaquim Condesso




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Anabela Russo