Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:198/14.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/30/2022
Relator:VITAL LOPES
Descritores:NULIDADE PROCESSUAL
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
CONVOLAÇÃO
REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
Sumário:I - O erro na forma do processo afere-se pelo ajustamento do meio processual ao pedido que se pretende fazer valer, sendo que na interpretação do pedido o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a adoptar uma posição de grande flexibilidade quando se possa intuir que a verdadeira pretensão de tutela jurídica é diversa da formulada, mas nela está implícita.
II - Questão diferente é a de saber se na petição inicial foram alegados fundamentos susceptíveis de viabilizar a pretensão formulada em juízo, matéria que se situa no âmbito da viabilidade do pedido (da sua procedência ou fracasso) e já não no âmbito da propriedade ou adequação do meio processual.
III- A convolação prevista no art.º 98/4 do CPPT só é de ordenar caso se conclua cumulativamente pela adequação dos fundamentos e tempestividade aferidos à forma de processo julgada própria (no caso, a oposição à execução fiscal).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO

J…, veio interpor o presente recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que na verificação do erro na forma do processo e constatada ineptidão da P.I., anulou todo o processo e absolveu a Fazenda Pública da instância.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
«
A) O presente recurso vem interposto da douta sentença do Tribunal a quo que julgou nula a impugnação judicial apresentada pelo ora Recorrente, a qual tem por objeto a apreciação jurisdicional da legalidade da liquidação n.º ....810 e apensos, no valor de € 1.007.489,60, referente a IVA, a IRS e a IRC dos exercícios fiscais de 2003 a 2007.

B) O ora Recorrente não pode concordar coma referida decisão, visto que a mesma assenta em pressupostos de facto e de direito decorrentes de que não era lícito ao Recorrente apresentar a impugnação judicial do indeferimento da reclamação graciosa nos termos e com os fundamentos em que o fez.

C) O Tribunal a quo julgou a impugnação nula com o fundamento de que havia erro de forma quer quanto à matéria da caducidade do direito de liquidar como da prescrição das dívidas, como impugnatória de decisões que aplicavam sanções contraordenacionais, quer também por ineptidão da PI.

D) Ora o Recorrente não pode concordar com a posição defendida pelo Tribunal a quo, considerando que a decisão padece de diversos vícios de violação de lei assentando ainda em errados pressupostos de facto, decorrentes, desde logo da desconsideração da citação por reversão efetuada pelos Serviços de Finanças de Lisboa-10, em 14 de abril de 2011, a qual engloba as alegadas dívidas em IVA, IRS e IRC, objeto da impugnação em causa, conforme consta dos autos a prova documental entregue como Doc. 1 a fls.


E) O Recorrente foi citado em 14.04.2011 da execução por reversão para pagamento da quantia exequenda de € 1.157.499,81, de que era devedora a Executada D…, SA, citação essa que anexa as certidões de dívidas relativas a IVA, IRS e IRC conforme o Doc. 2 junto coma PI a fls.

F) Inconformado o Recorrente apresentou reclamação graciosa que veio a ser indeferida com o fundamento de que o meio gracioso utilizado não era o legalmente admissível, devendo ter-se socorrido de oposição à execução fiscal.

G) Na sequência deste indeferimento, o Recorrente deduziu impugnação judicial, tendo sido notificado para apresentar nova impugnação e juntar documento comprovativo do ato impugnado, o que cumpriu na data de 20.02.2014, na qual identificou separadamente cada um dos impostos.

H) A questão a dirimir no presente recurso consiste em saber se a impugnação judicial seria o meio idóneo para impugnar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa pela AT.

I) Na ótica do Recorrente, o Tribunal a quo efetuou uma errada apreciação dos motivos que estiveram subjacentes à apresentação da impugnação tal como o Recorrente fez.

J) Na verdade, determinante para aferir o objeto de uma impugnação judicial é o ato que é posto em causa, e que correspondia à execução por reversão intentada contra o Recorrente,

K) Esta execução por reversão tinha como fundamento a alegada responsabilidade subsidiária do Recorrente pelas dívidas da sociedade D..., SA, execução que englobava as alegadas dívidas respeitantes a IRS, IRC e IVA.

L) Conforme resulta das cópias das certidões de dívidas em anexo ao ato de citação e parte integrante do mesmo, a reversão engloba os impostos em IVA, IRS e IRC.

M) Ora tal como o Recorrente afirmou na sua PI e reproduziu nas presentes alegações as alegadas dívidas encontravam-se umas prescritas à data da sua citação e outras caducara o direito de liquidação.

N) Considerou o Tribunal a quo que a impugnação não seria o meio idóneo para reagir ao indeferimento da reclamação graciosa.

O) Todavia, a impugnação judicial é o meio adequado para obter a anulação de um ato praticado pela administração tributária ou a declaração da sua nulidade ou inexistência.

P) Face àquele indeferimento da reclamação graciosa, não havia outra forma processual disponível a que o Recorrente pudesse lançar mão.

Q) Andou bem o Recorrente desde logo porque o Tribunal a quo, na sentença, não invocou os atos tributários inerentes aos anos de 2002, 2003 e 2004, na sua alínea b), em VI, apenas referindo “os atos tributários referidos aos anos 2005 a 2010”.

R) Consequentemente, ao não mencionar estes anos na sua decisão, não se percebe o motivo pelo qual anulou desconsiderou os factos alegados respeitantes aos anos de 2005 a 2010, e considerou a impugnação nula.

S) Porquanto as razões qua se encontram na génese daqueles anos estão também inerentes aos anos subsequentes, considerado o arco temporal acima.

T) Neste contexto, quanto à prescrição propriamente dita da devedora principal, que se iniciou em 1 de janeiro de 2003, teve o seu decurso normal, porquanto não sofreu vicissitudes, isto é, nunca foi interrompido, visto que a devedora principal não foi validamente citada.

U) Tendo-se iniciado o prazo de prescrição de oito anos inerente à devedora originária, a citação do devedor subsidiário, efetuada em 14 de abril de 2011, ocorreu após o 5.º ano posterior ao da liquidação.

V) As dívidas prescreveram para o ora Recorrente no início do ano de 2011.

W) As dívidas em apreço apenas foram devidamente notificadas ao ora Recorrente em 14 de abril de 2011, quando já há muito fora ultrapassado o prazo legal para o efeito e nem tão pouco foram validamente notificadas à devedora originária, conforme as notificações negativas junto dos autos.
X) Face ao exposto, requer-se ao Venerando Tribunal que se digne julgar procedente por provado o presente recurso e, em consequência, se digne ordenar a revogação da sentença ora recorrida absolvendo o Recorrente e anulando a alegada dívida dos impostos em causa no valor de € 1.007.489,60.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre muito douto suprimento de Vossas Excelências, roga-se ao venerando Tribunal que se digne declarar procedente, por provado, o presente recurso, e, consequentemente, revogue a decisão judicial ora recorrida.
Assim fazendo Vossas Excelências a costumada justiça!”».


A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo ser de negar provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, a questão central que importa apreciar reconduz-se a indagar se a sentença incorreu em erro ao julgar nulo todo o processo por erro na forma do processo e ineptidão da P.I.
***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
A sentença recorrida não elencou quaisquer factos, sendo que com pertinência para a decisão da apelação alinham-se os seguintes:

1. O aqui recorrente foi citado por reversão nos processos executivos n.º ....810, n.º ….993 e n.º ….652, em que é devedora principal a sociedade “D…., S.A.”;
2. Nos processos executivos n.º ....810 e n.º ...993 foi citado em 14/04/2011 e no processo n.º ...652 foi citado em 08/06/2011 (acordo, vd. requerimento e informação de reclamação graciosa, fls. 4 e 40 do respectivo apenso e ainda os docs. juntos a fls. 22 e 25 e 32 e 33 do mesmo apenso e registo e A/R, a fls. 206/207 do apenso instrutor);
3. No seguimento de citação em processo executivo, deduziu reclamação graciosa em 08/08/2011 (carimbo de entrada aposto no respectivo requerimento, a fls.2);
4. Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi o ora recorrente notificado em 07/01/2014 (cf. fls.75 do apenso de reclamação);
5. Em sequência, apresentou a presente impugnação judicial em 21/01/2014, conforme carimbo de entrada aposto na P.I., a fls.3;
6. Em 09/07/2021 foi proferida nos autos nova sentença em execução do douto acórdão anulatório deste TCA de 27/11/2014, constante de fls.177.
7. O processo n.º ...652 e apensos encontra-se extinto por anulação (cf. decisão de reclamação graciosa, fls.61v. do apenso respectivo).

B.DE DIREITO

O recorrente não se conforma com a decisão recorrida que com fundamento em erro de forma e ineptidão da P.I. anulou todo o processo e absolveu a Fazenda Pública da instância.

Como é pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o erro na forma do processo afere-se pelo ajustamento do meio processual (no caso, a impugnação judicial), ao pedido que se pretende fazer valer (no caso, de extinção da execução fiscal relativamente ao recorrente) – vd. ac. do alto tribunal, de 08/14/2019, tirado no proc.º 0997/19.7BEBRG.

Questão diferente, como se salienta no mesmo aresto do alto tribunal, é a de saber se na P.I. foram alegados fundamentos susceptíveis de viabilizar a pretensão formulada em juízo, matéria que se situa no âmbito da viabilidade do pedido (da sua procedência ou fracasso) e não já no âmbito da propriedade ou adequação do meio processual.

Na P.I., o pedido formulado era, como referimos já, o de extinção do PEF contra o ali revertido e ora recorrente (vd. P.I., fls.26 e 27 dos autos).

Sendo o pedido formulado no petitório, de extinção da execução fiscal, não há dúvida quanto à propriedade do meio escolhido: a oposição à execução fiscal – vd. ac. do STA, de 01/23/2019, tirado no proc.º 0287/18.2BELRA.

Assim, manifestamente ocorre erro na forma do processo.

Já não acompanhamos a sentença recorrida na parte em que anulou o processo por ineptidão da P.I.

Percebe-se o que o recorrente ali pretendia: a extinção da execução por multas e coimas referentes aos anos de 2005 a 2010, porque reportadas à falta de pagamento/ entrega de tributos liquidados com relação a período temporal posterior ao da cessação da actividade comercial da sociedade devedora principal.

Afastada a ininteligibilidade da P.I., se aquela causa de pedir é viável em processo de oposição é questão que não releva para aferição do erro na forma do processo, ou seja, o erro na forma ocorre com relação à globalidade da tutela jurídica pretendida na P.I., de extinção da execução fiscal revertida.

Isso assente, deveria ter sido ponderada pelo tribunal recorrido a possibilidade de convolação na forma de processo adequada, prevista nos artigos 97.º, n.ºs 2 e 3, da Lei Geral Tributária e 98/4 do CPPT, ou seja, a convolação da impugnação judicial em processo de oposição à execução fiscal – cf. artigo 97.º, n. º1 alíneas a), c) e o), do CPPT.

Mas esse acto processual comporta requisitos de admissibilidade, como a doutrina e a jurisprudência de há muito também não deixam de realçar. Como, entre muitos outros, se refere no ac. do STA, de 04/13/2016, tirado no proc.º 01068/14, «A convolação de uma forma processual imprópria, na adequada ao pedido e à causa de pedir, só pode efectuar-se se ocorrer a tempestividade da acção a convolar e os fundamentos invocados correspondam à forma processual adequada».

Tais requisitos, de tempestividade e viabilidade dos fundamentos, são cumulativos, pelo que a não verificação de um deles torna logo inútil indagar da concorrência dos restantes.

E começando pelo requisito da tempestividade, vejamos.

Como se apreende do probatório e é afirmado pelo próprio recorrente, no procedimento e no processo, ele foi citado por reversão ora em 14/04/2011, ora em 08/06/2011.

A P.I. de impugnação judicial deu entrada na D.F. de Lisboa em 21/01/2014.
Ora, o prazo de oposição à execução é de 30 dias a contar da citação pessoal – artigos 203.º, n.º 1 alínea a), em conjugação com o 20/2, ambos do CPPT.

Tendo o recorrente sido citado por carta registada com aviso de recepção (já citadas fls.22 e 25 do apenso de reclamação e expediente postal a fls.206/207 do apenso instrutor) e afirmando ele próprio que foi citado em 14/04/2011, é manifesto que não se verifica o requisito da tempestividade, com relação à oposição dirigida aos processos executivos cuja extinção é pedida.

O erro na forma do processo sem possibilidade de aproveitamento da P.I., implica a anulação de todo o processo e conduz à absolvição da instância – artigos 193.º, 278/1 alínea b), 576.º e 577.º, alínea b), todos do CPC.
*

O valor atribuído ao processo é de 1.007.489,60.

Como o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar em diversos arestos, “a dispensa do remanescente da taxa de justiça, tem natureza excepcional, pressupõe uma menor complexidade da causa e uma simplificação da tramitação processual aferida pela especificidade da situação processual e pela conduta das partes”.

No caso concreto, não chegaram a ser conhecidas pelas instâncias as questões de mérito suscitadas, por caducidade do direito de acção.
Por outro lado, haverá que ter em conta que o valor do remanescente da taxa de justiça surge desproporcionado em face do serviço prestado. Na verdade, não podemos perder de vista que a taxa de justiça, como todas as taxas, assume natureza bilateral ou correspectiva (artigos 3.º, n.º 2, e 4.º, n.º 2 da LGT), constituindo a contrapartida devida pela utilização do serviço público da justiça por parte do sujeito passivo.

Neste contexto, o Supremo Tribunal tem vindo consecutivamente a afirmar, em sintonia com o Tribunal Constitucional, que, ainda que não seja de exigir “uma equivalência rigorosa entre o valor da taxa e o custo do serviço, que, as mais das vezes, nem seria viável apurar com rigor”, dispondo o legislador de uma «larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas», o certo é que é sempre necessário que «a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente, pelo que uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afecta claramente uma tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe».

E, bem assim, que a jurisprudência constitucional tem vindo ainda a considerar que «os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (art. 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adopção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito» (neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Abril de 2022, aqui citado, de 8 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 221/12 e de 1 de Fevereiro de 2017, proferido no processo 891/16, e do Tribunal Constitucional de 15 de Julho de 2013, com o n.º 421/2013, respectivamente disponíveis em www.dgsi.pt e www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

Como também se diz na jurisprudência do Alto Tribunal que vimos acompanhando, não devemos olvidar que «foi para obviar à violação desses princípios constitucionais que o art. 2.º da Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, aditou ao artigo 6.º do RCP o n.º 7, que veio permitir (poder-dever) que se atenda ao referido limite máximo de € 275.000,00 e a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça nas situações também já referidas.

Donde, aplicando todos os critérios normativos e a jurisprudência que vimos citando ao caso concreto, a simplicidade formal da tramitação dos autos, o comportamento processual das partes, o valor da causa e a complexidade das questões apreciadas, considera-se adequado dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida no recurso, na parte que corresponderia ao excesso sobre o valor tributário de € 275.000,00, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.


IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em, com a presente fundamentação:
i. Negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
ii. Dispensar o pagamento total do remanescente da taxa de justiça devida no recurso.

Custas a cargo do Recorrente.



Lisboa, 30 de Junho de 2022



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Vital Lopes




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Luísa Soares




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Tânia Meireles da Cunha