Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:76/20.4BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/26/2020
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:REGULAMENTO DISCIPLINAR DA LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL PROFISSIONAL
ACESSO A REGISTOS DE IMAGEM; DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE; RESTRIÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
Sumário:I. Decorre da interpretação conjugada dos artigos 86.º-A do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que impende sobre o clube desportivo o dever de facultar o acesso aos registos de imagem por si captados, quando para tal solicitado pelo organizador da competição desportiva.
II. O direito à não autoincriminação, que se integra no princípio nemo tenetur se ipsum accusare, beneficia de proteção constitucional, mas não configura um direito absoluto, podendo ser objeto de restrições, conforme decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, mesmo no âmbito do processo criminal.
III. É de entender como conforme à Constituição a intimação do visado em processo sancionatório a fornecer elementos na sua posse, para efeito da respetiva instrução.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
S….. – Futebol SAD apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto recurso da deliberação do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de 19/12/2019, proferida no processo n.º ….., que lhe aplicou sanção de multa pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 86.º-A, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, relativa à falta de colaboração com a justiça desportiva.
Pede i) a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa; ii) a revogação do acórdão proferido pela demandada e a absolvição da impugnante.
Por decisão de 10/08/2020, o TAD decidiu, por unanimidade, declarar improcedente a ação e manter a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF.
Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“(…)
1. O presente Recurso tem como objecto a interpretação normativa efectuada no Aresto Recorrido a propósito dos n.os 2 e 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho.
2. O Aresto Recorrido considera que o organizador da competição desportiva, seja a Recorrida, seja outro, tem o direito de exigir, no âmbito de procedimento disciplinar, dos Arguidos o acesso irrestrito - no sentido de que é o próprio organizador que estabelece os parâmetros em que a cedência vai ocorrer - ao sistema de CCTV instalado no recinto desportivo.
3. A interpretação consagrada no Aresto Recorrido desconsidera toda a letra do artigo 18.°, nomeadamente as importantes restrições ao uso dos sistemas de CCTV no mesmo contidas.
4. O Aresto Recorrido, conforme melhor se deu conta em sede de Alegações, desconsidera, igualmente, a letra do n.° 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho - que consagra o direito de acesso do organizador da competição desportiva aos sistemas de CCTV nomeadamente no que respeita à remissão operada pelo preceito em causa para o n.° 2 do mesmo artigo.
5. O organizador da competição desportiva apenas pode aceder ao sistema de CCTV dos recintos desportivos caso a conduta que pretenda investigar configure, simultaneamente, um ilícito criminal ou contra-ordenacional, devendo obter tais imagens das forças de segurança, da APCVD ou do Ministério Público.
6. A pré-existência de um processo contra-ordenacional ou criminal (decorrente da remissão para o n.° 2 do artigo 18.°) funciona, pois, como factor de limitação da intrusão nos direitos fundamentais dos Clubes e daqueles que frequentam os recintos desportivos.
7. A interpretação normativa do n.° 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho consagrada no Aresto Recorrido viola o princípio da não autoincriminação ou princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
8. Conforme bem nota a jurisprudência constitucional citada, o acima citado preceito constitucional não é absoluto, comportando excepções.
9. Tais excepções devem ser restringidas ao máximo, operando exclusivamente nos casos em que não seja possível aceder a determinados meios de prova, salvo através da colaboração do arguido, o que, conforme bem se demonstrou em sede de Alegações, não acontece no caso vertente.
10. A Recorrente tinha o direito de recusar o envio das imagens do CCTV à Comissão de Instrutores”.
O recorrido apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“(…)
1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de dia 10 de agosto de 2020 que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multa por aplicação do artigo 86.º-A, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
2. A Recorrente foi sancionada, pela prática de uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 86.º-A, n.º 1 do RD da LPFP, por, não obstante ter sido regulamentarmente notificada para tal, não ter habilitado a Comissão de Instrutores, no prazo de 2 dias, ou em qualquer outro, com cópias de qualquer registo de imagem criado pelo sistema de videovigilância (vulgo CCTV) instalado no Estádio da Luz aquando da realização do jogo disputado entre a S….. - Futebol SAD e a F….. - Futebol SAD.
3. No que se refere ao direito de acesso às imagens captadas por ocasião de jogos oficiais há, desde logo, ao regime legal existente.
4. Na redação vigente na data da prática dos factos, determinava o n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho que "O organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares e no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, devendo, sem prejuízo da aplicação do n.° 2, assegurar-se das condições de reserva dos registos obtidos".
5. O artigo 18.º não contempla qualquer obrigação do organizador da competição de solicitar às forças de segurança ou a qualquer autoridade administrativa que lhe remetam as imagens recolhidas pelo promotor do espectáculo.
6. Nem, tão-pouco, tal obrigação resulta do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
7. A interpretação da Recorrente não tem qualquer apoio na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
8. Atendendo ao acima exposto, não temos qualquer dúvida, como, de resto, não teve o Conselho de Disciplina nem o Colégio Arbitral, que a Recorrente tem o dever legal de remeter as imagens ao organizador da competição.
9. Efetivamente, se a Lei e os Regulamentos Administrativos impõem que a Recorrente proceda à recolha de imagem por ocasião do jogo sub judice, bem como, quando interpelada para tal, que esta proceda ao seu envio à Comissão de Instrutores da LPFP, deverá a Recorrente atuar em conformidade e, não o fazendo, incorre, obviamente, na prática da infração disciplinar pela qual foi sancionada. Prosseguindo,
10. O direito à não autoincriminação não é um direito absoluto (mesmo no âmbito do direito penal!), antes se impondo a sua harmonização em nome e na defesa de determinados valores e interesses que o Estado visa salvaguardar, observado que seja o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e constatada a existência de lei prévia que consinta essa restrição.
11. Tal como se demonstrou em sede de alegações, este é o entendimento sufragados pela doutrina e jurisprudência, inclusive, constitucional.
12. O artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009 e o artigo 86.º-A, n.º 1, do RD LPFP tutelam direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, com particular destaque para o "direito à segurança" (artigo 27.º da CRP).
13. A restrição imposta pelo dever de colaboração com as entidades organizadoras da competição desportiva decorre expressamente do n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que é uma lei geral e abstrata, aprovada pelo Parlamento e respeita o princípio da proporcionalidade.
14. Pelo que, a interpretação efetuada do disposto no n.º 1 do artigo 86.º-A do RD da LPFP e no n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (na redação em vigor à data dos factos), quando interpretada no sentido de que o Arguido em Processo Disciplinar Desportivo é obrigado a remeter à Entidade Acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo por si utilizado para os jogos disputados na qualidade de visitante, não é inconstitucional, não violando, em particular, o disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
15. Neste sentido, andou bem o Colégio de Árbitros ao julgar improcedente o recurso, e, em consequência, ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 86.º-A, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.”
*

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em saber se é inconstitucional a interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
“1. No dia 24 de agosto de 2019, realizou-se o jogo relativo à 3.ª jornada da Liga NOS entre a S….. - Futebol, SAD e a F….., SAD, no recinto desportivo da primeira entidade;
2. Na sequência de certidão extraída no âmbito do Processo Disciplinar n.º ….., o Presidente da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol remeteu em 3 de outubro de 2019 à Comissão de Instrutores da Liga Portuguesa de Futebol Profissional o Processo n.º ….., autuado como processo disciplinar, em que foi arguida a sS.. - Futebol, SAD, tendo como objeto: "Eventual falta de colaboração com a justiça desportiva e eventual não cumprimento das obrigações relativas ao sistema de videovigilância no jogo n.º ….., entre a S….. - Futebol, SAD e a F….., SAD, realizado no dia 24 de agosto de 2019, a contar para a Liga NOS" (cfr. fls. 1 a 25 do processo disciplinar);
3. A instrução do processo disciplinar iniciou-se em 8 de outubro de 2019.
4. A Arguida foi notificada em 16 de outubro de 2019 da instauração do processo disciplinar, do seu objeto e da possibilidade de, querendo, se pronunciar sobre os factos em investigação, tendo ainda o direito de requerer diligências instrutórias. Foi-lhe dado conhecimento que a factualidade indiciava o preenchimento da infração p.p. no artigo 86.º-A, n.º 1 (Falta de colaboração com a justiça desportiva) e também com a infração disciplinar p.p. no artigo 87. º-A, n.º 4 (Incumprimento de deveres de organização), ambos do RDLPFP (cfr. despacho e fls. de notificação 26 a 35 do processo disciplinar);
5. O Instrutor do processo disciplinar ordenou a junção aos autos do extrato disciplinar da Arguida quanto às três últimas épocas desportivas anteriores à data da prática dos factos, bem como cópia de documento relativo à informação da Comissão Nacional de Proteção de Dados, no âmbito do Processo Disciplinar n.º ….. (cfr. despachos de fls. 29 e 60, o extrato disciplinar de fls. 36 a 58 e o referido documento de fls. 60 a 63 do processo disciplinar);
6. A Arguida foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 227° do RDLPFP, tendo-se pronunciado no sentido do arquivamento do processo por não ter praticado qualquer das infrações disciplinares imputadas (cfr. fls. 64 a 74 do processo disciplinar) e não tendo habilitado a Comissão de Instrutores com cópias de qualquer registo de imagem e/ou som criado pelo sistema de videovigilância instalado no respetivo estádio, aquando da realização do jogo n.º ….., entre a S….. - Futebol, SAD e a F….., SAD, realizado no dia 24 de agosto de 2019;
7. No processo disciplinar encontra-se a certidão extraída dos autos de processo disciplinar n.º ….., contendo a reprodução das respetivas fls. 17 e 18, 66 a 69 e 71 a 84 (cfr. fls. 3 a 23 do processo disciplinar);
8. No Relatório Final, o Instrutor concluiu pela prática da infração p.p. pelo artigo 87.º-A, n.º 4 (Incumprimento de deveres de organização) do RDLPFP2019 e pela inexistência de "indícios suficientes de conduta que violasse outras obrigações relativas ao sistema de videovigilância (nomeadamente as previstas no artigo 35.º, n.º 1, f) do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portugal), que, na verdade, não existe", tendo ainda deduzido acusação por resultar suficientemente indiciado que a Arguida cometeu uma infração disciplinar p.p. no artigo 86.-A, n.º 1, do RDLPFP (Falta de colaboração com a justiça desportiva];
9. Distribuídos os autos à Relatora no Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no que respeita à matéria da acusação foi ordenada a junção ao processo disciplinar dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da liga relativos ao jogo em causa (cfr. fls. 98 a 107 do processo disciplinar];
10. A Relatora não sufragou a proposta de arquivamento pela prática da infração p.p. pelo artigo 87.º-A (Incumprimento de deveres de organização] do RDLPFP, tendo proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 234.º n.º 3, alínea b] do RDLPFP, a determinar a concretização da diligência de transcrição (cfr. fls. 111 a 113 do processo disciplinar];
11. Em 13 de novembro de 2019, foram os autos remetidos novamente à Comissão de Instrutores e aí ordenada pelo Instrutor a realização das diligências solicitadas, bem como a junção aos autos do Relatório do Policiamento Desportivo respeitante ao jogo em apreço (cfr. despacho e notificações de fls. 120 a 122, 123 a 126, 133 a 135 e o Relatório de Policiamento Desportivo de fls, 128 a 132, todas do processo disciplinar];
12. Os Delegados da LPFP, J….. e N….., e a Divisão de Policiamento e Ordem Pública apresentaram as respostas que se encontram de fls. 136 a 139 do processo disciplinar];
13. O Instrutor proferiu despacho, em 26 de novembro de 2019, concluindo: “considerando os esclarecimentos prestados pelos Delegados da LPFP (melhor reproduzidos a fls. 136 e 137] e pelo Senhor Comandante do Policiamento do jogo em apreço (jogo n.º ….., entre a S….. - Futebol, SAD e a F….. - futebol, SAD, realizado no dia 24 de agosto, a contar para a 3.ª jornada da presente época de 2019/2020 da Liga NOS), corrobora-se a decisão relativa à inexistência de indícios da prática pela Arguida da infração disciplinar p.p. pelo artigo 87.º-A, n.º 4 (Incumprimento de deveres de organização), pelo que se propõe arquivamento relativo a esta infração disciplinar, nos termos do artigo 234.º, n.º 1 do RD LPFP";
14. Remetidos, novamente, os autos ao Conselho Disciplinar da Federação Portuguesa de futebol, deliberou este órgão, em 19 de dezembro de 2019, aplicar à Arguida a sanção de multa no valor de € 2.550,00 (dois mil e quinhentos euros), pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 86.º-A, do RD-LPFP/2019-20, relativa à falta de colaboração com a justiça desportiva.”.
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, a questão a decidir cinge-se a saber se se é inconstitucional a interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.


Consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
Sustenta ainda a Demandante que os utilizadores por excelência do sistema de CCTV são as forças de segurança e não o promotor do espetáculo desportivo. E nesta medida, não é o promotor do espetáculo quem tem o dever de remeter o registo das imagens ao organizador da competição, mas sim as autoridades judiciárias ou contraordenacionais, por serem estas quem exerce o controlo da legalidade da cedência das imagens ao organizador da competição.
Não estando previsto qualquer dever de envio de imagens ao organizador da competição, mas apenas às forças de segurança ou à APCVD, teriam de ser estas a remeter àquele as imagens.
Neste campo, não acompanhamos o entendimento da Demandante, porquanto o n.º 6 do artigo 18.º assinala expressamente que "o organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares", que se encontram na posse do promotor do espetáculo, sem impor qualquer tipo de intermediação de forças de segurança ou da APCVD.
De resto, o direito do organizador da competição de aceder às imagens consagrado no n.º 6 do artigo 18.º conjuga-se com o n.º 1 do mesmo artigo, que consagra um dever do promotor do espetáculo desportivo de instalar e manter em perfeitas condições um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo e respetivo anel ou perímetro de segurança.
Ora, o artigo 18° não contempla qualquer obrigação do organizador da competição de solicitar às forças de segurança ou à APCVD que lhe remetam as imagens recolhidas pelo promotor do espetáculo. A interpretação da Demandante não tem qualquer amparo legal e constituiria uma forma de esvaziar a possibilidade de aplicação de sanções disciplinares pelos organizadores de competições desportivas, ao arrepio do propósito firmado na legislação de prevenção e combate à violência no desporto.
Em síntese, o direito do organizador da competição de aceder às imagens consagrado no n.º 6 do artigo 18.º deve ser satisfeito diretamente pelo promotor do espetáculo desportivo responsável pela instalação e manutenção de um sistema de videovigilância, sem necessidade de qualquer intermediação das forças de segurança ou da APCVD.
Do exposto, extrai-se, pois, a conclusão de que o artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, deve ser interpretado no sentido de que existe um dever do promotor do espetáculo desportivo de fornecer ao organizador da competição desportiva as imagens captadas no sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, para efeitos de exercício da ação disciplinar.
6. Cumpre agora indagar se a interpretação exposta do artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, colide com alguma norma ou princípio constitucional, que justifique a sua não aplicação no caso concreto e, consequentemente, a revogação da sanção disciplinar aplicada pela Demandada ao Demandante.
Em defesa da inconstitucionalidade da referida interpretação, invoca a Demandante o princípio da não autoincriminação ou princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Para tanto, além de uma abundante recolha de doutrina, a Demandante socorre-se de algumas decisões judiciais, entre as quais avulta o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 298/2019, proferido em 15 de maio de 2019, no âmbito do Proc. n.º 1043/17. O próprio Demandante decidiu salientar os seguintes trechos do aresto:
"(...) Já o segundo [direito do arguido à não autoincriminação), entendido como direito a não contribuir para a própria incriminação, impede a transformação do arguido em meio de prova por via de uma colaboração involuntária obtida com recurso a meios coercivos ou enganosos.
(...)
O princípio do nemo tenetur visa, pois, assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo conteúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e pela nulidade das provas proibidas em virtude de terem sido obtidas mediante a colaboração involuntária do arguido em consequência do uso ilegítimo de meios coercivos ou de meios enganosos.
É de acordo com esta teleologia que o âmbito de proteção daquele princípio deve ser determinado, seja quanto aos modos de colaboração forçada e seus limites, seja quanto ao momento a partir do qual aquela garantia se torna operante".
Todavia, a Demandante não citou a parte da decisão dos juízes do Palácio Ratton com mais interesse para a resolução da presente lide:
"12. O mesmo princípio, todavia, não tem um caráter absoluto.
Assim, tem-se admitido que o direito à não autoincrimínação pode ser legalmente restringido, no próprio processo penal, em determinadas circunstâncias (v.g., a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido).
No âmbito da regulação económica e social do Estado, são igualmente frequentes limitações a tal princípio traduzidas na imposição de deveres de colaboração, acompanhados da previsão de sanções em caso de incumprimento, tendo por objeto a prestação de informações, escritas e orais, e a disponibilização de documentos a autoridades administrativas com atribuições em matéria de fiscalização e de supervisão e com competências sancionatórias. Reconhece-se, nesses casos, que a garantia da capacidade funcional das autoridades administrativas em ordem à realização das respetivas atribuições exige uma lógica de continuidade de atuação: por razões de eficiência, a competência sancionatória funciona como condição de eficácia da própria função de fiscalização ou supervisão, sendo a colaboração dos particulares com as autoridades imposta no pressuposto de que existem "vasos comunicantes” entre as duas vertentes da atuação administrativa (v., com referência à Autoridade da Concorrência e à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, respetivamente, os Acórdãos n.ºs 461/2011 e 360/2016; na doutrina, cf., entre outros, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTA ANDRADE, "Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas” (Parecer), cit., pp. 17-27; FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, O Novo Regime dos Crimes e Contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.; idem, "Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa em processos de contra-ordenação” (Parecer) in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, cit., pp. 70-85; e NUNO BRANDÃO, "Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 24, N.º 1 (jan.-mar., 2014), p. 29 e ss., pp. 38 e 47-51).
Nos termos constitucionalmente exigíveis (cf. o artigo 18.º da Constituição), as mencionadas restrições devem estar previstas em lei prévia, de caráter geral e abstrato, respeitar o princípio da proporcionalidade e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional restringido (cf., com especial relevância para o presente caso, os Acórdãos n.ºs 461/2011, 340/2013 e 360/2016; na doutrina, v., entre outros, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTA ANDRADE, "Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas” (Parecer), cit, pp. 44-45; PAULO DE SOUSA MENDES, "As garantias de defesa no processo sancionatório especial por práticas restritivas da concorrência confrontadas com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem" in Revista de Concorrência e Regulação, Ano I, N.º 1 (jan.-mar, 2010), p. 121 e ss., pp. 136-139; idem, "A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros" in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. II, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017, p. 587 e ss., pp. 590-594; e NUNO BRANDÃO, "Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal” cit, pp. 38-47).
Deste modo, e uma vez respeitados tais requisitos, as informações prestadas pelo arguido e outros contributos probatórios, em especial a disponibilização de documentos, são exigíveis no âmbito de procedimentos de fiscalização de natureza administrativa ao abrigo dos mencionados deveres de cooperação, sendo o incumprimento destes últimos punível nos termos legalmente previstos. Acresce que, nas condições referidas, os mesmos contributos não constituem prova proibida, podendo ser considerados e valorados nos termos gerais (cf. o artigo 125.3 do CPP, segundo o qual «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»]. Entende-se, na verdade, que a imposição da colaboração em causa se justifica por razões de interesse público e de eficiência, correspondendo a um quadro legal que é - ou deve ser - conhecido daqueles que interagem com a Administração, razão por que não estão em causa métodos proibidos de prova, designadamente provas obtidas por via da perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de meios enganosos ou da ameaça com meio legalmente inadmissível (cf. o artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d], do CPP].
Ainda assim, a lealdade na relação entre a Administração fiscalizadora e quem é fiscalizado impõe que o início de um eventual procedimento sancionatório seja devidamente sinalizado mediante uma comunicação expressa ou até por via da constituição como arguido, de modo a tornar manifesta a alteração do paradigma de relacionamento (Acórdão n.º 461/2011): já não meras rotinas de controlo, mas uma investigação com vista ao apuramento de responsabilidades, a exigir e justificar outro cuidado por parte de quem é suspeito de ter cometido uma infração (v., de novo, o Acórdão n.º 461/2011; NUNO BRANDÃO, "Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal” cit., pp. 40-41; e PAULO DE SOUSA MENDES, "A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros” cit, p. 592)”.
Isto significa que o Tribunal Constitucional consente, inclusive no âmbito do processo penal, que o direito à não autoincriminação tem de ceder em determinadas circunstâncias em prol da proteção de outros direitos fundamentais ou da prossecução do interesse público, o que, por maioria de razão, pode suceder no campo da aplicação de sanções disciplinares.
Com efeito, reportando-se ao Direito contraordenacional, expressamente o Tribunal Constitucional admite a existência de deveres de colaboração "acompanhados da previsão de sanções em caso de incumprimento, tendo por objeto a prestação de informações, escritas e orais, e a disponibilização de documentos a autoridades administrativas com atribuições em matéria de fiscalização e de supervisão e com competências sancionatórias".
No caso do Direito Disciplinar, não se antevê qualquer fundamento para que assim não seja também. Ora, o artigo 86.º-A do RDLPFP aplicável à época desportiva de 2019/2020, que contempla o ilícito disciplinar de "Falta de colaboração com a justiça desportiva”, mais não é do que a tradução, em matéria regulamentar, de um ilícito resultante do incumprimento do dever de fornecimento das imagens recolhidas através do sistema de videovigilância, durante o espetáculo desportivo, por aquele que é o seu promotor, que resulta do que se encontra plasmado, como vimos supra, no artigo 18.º, n.ºs 1 e 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
É assim porque expressamente o legislador da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, atribuiu às entidades em quem se encontram delegados os poderes públicos no âmbito do procedimento disciplinar [Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Federação Portuguesa de Futebol) os meios para o exercício conveniente da aplicação de sanções pela prática de condutas que infrinjam a prossecução de objetivos ligados à segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, incluindo- se nesses meios o acesso às imagens gravadas no sistema de videovigilância. E a solução avançada pela Demandante de exigir que aquelas entidades obtivessem as imagens gravadas através do sistema de videovigilância junto das forças de segurança ou da APCVD deixá-las-ia desprovidas dos meios necessários para exercer de modo eficiente a ação disciplinar. Citando, de novo, o Tribunal Constitucional, "por razões de eficiência, a competência sancionatória funciona como condição de eficácia da própria função de fiscalização ou supervisão, sendo a colaboração dos particulares com as autoridades imposta no pressuposto de que existem "vasos comunicantes” entre as duas vertentes da atuação administrativa".
Acresce igualmente que a restrição imposta pelo dever de colaboração com as entidades organizadoras da competição desportiva decorre expressamente do n ° 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que é uma lei geral e abstrata, aprovada pelo Parlamento.
Por outro lado, a norma que contempla o dever de permitir o acesso pelo organizador da competição desportiva às imagens recolhidas através do sistema de videovigilância respeita integralmente o princípio da proporcionalidade, na medida em que: i) é adequada ao exercício da ação disciplinar; ii) não vai além do estritamente necessário para atingir as finalidades de prevenção e combate à violência no desporto, ou na formulação da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, os objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos; iii) e é equilibrada, em virtude de, ponderadas as circunstâncias ligadas à realização de espetáculos desportivos, não implicar uma intervenção restritiva em que os benefícios resultantes da prossecução dos fins anteriormente referidos suplanta os custos advenientes para o promotor do espetáculo.
Assim sendo, não se vislumbra qualquer violação do disposto no n° 2 do artigo 18.º da Constituição portuguesa.
Finalmente, também não se afigura que o conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 32.º, n.º 10 da Constituição portuguesa) do qual a Demandante extrai o direito à não autoincriminação, quando aplicado aos procedimentos disciplinares, saia diminuído pela previsão legal, depois concretizada no RDLPFP, de um dever de colaboração com as entidades organizadoras da competição desportiva.
Em conclusão, as normas que impõem um dever de colaboração do arguido em procedimento disciplinar desportivo, mediante o envio pelo promotor do espetáculo ao organizador da competição desportiva das imagens recolhidas, durante a realização do espetáculo, no sistema de videovigilância, não são inconstitucionais, pois observam o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição portuguesa.
7. Por conseguinte também, a deliberação do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de 19 de dezembro de 2019, proferida no Proc. n.º ….., que aplicou à Demandante a sanção de multa no valor de € 2.550,00 (dois mil e quinhentos euros), pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 86.º-A, do RDLPFP, é válida, improcedendo, assim, a presente ação.
Como já se viu, pretende a recorrente que seja reconhecida a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.
O referido artigo 86.º-A do RDLFP, sob a epígrafe ‘falta de colaboração com a justiça desportiva’, tem a seguinte redação:
“1. O clube que, notificado para o efeito, não habilite a Comissão de Instrutores, no prazo de dois dias úteis, com cópia das imagens capturadas pelo sistema de videovigilância do respetivo estádio, será punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 20 UC e o máximo de 100 UC.
2. O clube que, notificado para o efeito, não habilite a Comissão de Instrutores, no prazo de dois dias úteis, com cópia das imagens, em bruto, captadas pelas câmaras da produção dos jogos que sejam transmitidos por sociedade comercial por si dominada nos termos do Código dos Valores Mobiliários, será punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 20 UC e o máximo de 100 UC.
3. Em caso de reincidência em algum dos ilícitos previstos nos números anteriores, os limites mínimo e máximo da sanção neles prevista serão elevados para o dobro.”
Já a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que veio estabelecer o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, prevê no artigo 18.º, relativo ao sistema de videovigilância, o seguinte (na redação anterior à Lei n.º 113/2019, de 11/09, que é a aqui aplicável):
“1 - O promotor do espetáculo desportivo em cujo recinto se realizem espetáculos desportivos de natureza profissional ou não profissional considerados de risco elevado, sejam nacionais ou internacionais, instala e mantém em perfeitas condições um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo, e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas, as quais visam a proteção de pessoas e bens, com observância do disposto na Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.
2 - A gravação de imagem e som, aquando da ocorrência de um espetáculo desportivo, é obrigatória, desde a abertura até ao encerramento do recinto desportivo, devendo os respetivos registos ser conservados durante 90 dias, por forma a assegurar, designadamente, a utilização dos registos para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional, prazo findo o qual são destruídos em caso de não utilização.
3 - Nos lugares objeto de videovigilância é obrigatória a afixação, em local bem visível, de um aviso que verse «Para sua proteção, este local é objeto de videovigilância com captação e gravação de imagem e som».
4 - O aviso referido no número anterior deve, igualmente, ser acompanhado de simbologia adequada e estar traduzido em, pelo menos, uma língua estrangeira, escolhida de entre as línguas oficiais do organismo internacional que regula a modalidade.
5 - O sistema de videovigilância previsto nos números anteriores pode, nos mesmos termos, ser utilizado por elementos das forças de segurança.
6 - O organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares e no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, devendo, sem prejuízo da aplicação do n.º 2, assegurar-se das condições de reserva dos registos obtidos.”
Como claramente decorre do presente artigo, os registos em questão podem ser utilizados em três campos distintos, no processo penal, no processo contraordenacional e no processo disciplinar.
E da conjugação entre o n.º 6 deste artigo 18.º e aquele artigo 86.º claramente se retira que impende sobre o clube o dever de facultar o acesso aos registos de imagem, quando para tal solicitado pelo organizador da competição desportiva, no presente caso, a entidade recorrida.
Desta interpretação dos normativos discorda a recorrente, por entender que é violadora dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, invocando o seu direito à não autoincriminação.
Aquele artigo 18.º, n.º 2, consagra que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Ao passo que o artigo 32.º, n.º 10, torna extensivas as garantias do processo criminal, no que respeita aos direitos de audiência e defesa, aos processos de contraordenação, bem como aos demais processos sancionatórios.
O invocado direito à não autoincriminação integra-se no brocardo de origem latina nemo tenetur se ipsum accusare, sendo comummente aceite enquanto expressão do direito de defesa do arguido e como tal beneficiando de proteção constitucional (cf., por todos, Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 201, pág. 125).
E significa, designadamente, que o arguido não será obrigado a produzir prova contra si próprio, contribuindo para a sua incriminação.
No caso vertente, temos assente a existência de um primeiro processo disciplinar, com o n.º ….., no qual figurava como arguida a aqui recorrente S….. - Futebol, SAD. E que foi extraída certidão desses autos para instauração de um segundo processo disciplinar, ao qual foi atribuído o n.º ….., tendo como objeto a eventual falta de colaboração com a justiça desportiva e eventual não cumprimento das obrigações relativas ao sistema de videovigilância em jogo realizado no dia 24/08/2019.
Aduz a recorrente que o artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, remete para o respetivo n.º 2, implicando que o organizador da competição desportiva apenas pode aceder ao sistema de CCTV dos recintos desportivos caso a conduta que pretenda investigar configure, simultaneamente, um ilícito criminal ou contraordenacional, devendo obter tais imagens das forças de segurança, da APCVD ou do Ministério Público.
Tal interpretação não procede, desde logo por fazer tábua rasa do primeiro dos referidos normativos legais.
Estão evidentemente em causa dimensões distintas.
Conforme previsto no n.º 2, os registos de imagem e som podem ser utilizados para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional.
Conforme previsto no n.º 6, os registos de imagem podem ser utilizados para efeitos exclusivamente disciplinares pelo organizador da competição desportiva.
Com respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais.
E não se vislumbra na interpretação que se vem de explicitar a violação de qualquer parâmetro constitucional, como de seguida se verá.
O direito à não autoincriminação encontra consagração constitucional, como já assinalado, mas não configura um direito absoluto, podendo ser objeto de restrições, conforme decorre do já citado artigo 18.º, n.º 2, da CRP, veja-se, por exemplo, a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade (cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 817/12, este como os demais a citar todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Mais releva para o caso vertente não ser indiferente falar em garantias do processo criminal, por um lado, ou do processo contraordenacional ou disciplinar, por outro.
Como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 201/2014, “o dever, que impende sobre o Estado, de emitir normas de proteção de bens jusfundamentais não pode sacrificar os princípios da culpa ou da necessidade e subsidiariedade das penas, peso próprio que estes últimos encontram num sistema constitucional fundado na dignidade da pessoa (…). Diversamente se passarão as coisas no domínio contraordenacional, precisamente por aí valerem com ‘menos rigor’ ou com ‘menos intensidade’ os princípios que integram as normas da Constituição com relevo penal”.
E o Tribunal Constitucional tem-se orientado no sentido de ser conforme à Constituição a intimação do visado a fornecer elementos na sua posse, para efeito de instrução de processo sancionatório.
No acórdão n.º 461/11, relativamente à utilização em processo contraordenacional de elementos recolhidos pela Autoridade da Concorrência nas suas atividades de fiscalização e supervisão, entendeu-se estarmos perante uma restrição admissível do princípio da não autoincriminação, valorando na sua argumentação especialmente a circunstância de estarmos perante a possibilidade de aplicação de meras sanções contraordenacionais.
No acórdão n.º 360/2016, julgou-se não inconstitucional a interpretação normativa retirada dos artigos 116.° e 120.° do RGICSF, 361.° do CVM, 41.° e 54.° do RGCO, e 126.° e 261.° do CPP, com o sentido de, após notícia do ilícito, os reguladores poderem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, podendo essa documentação assim obtida, ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros”.
Neste sentido igualmente se pronunciam Figueiredo Dias, Costa Andrade e Costa Pinto, relativamente a documentos recolhidos pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, posteriormente utilizados como prova em processo contraordenacional, movido pela mesma entidade (Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, 2009, págs. 39 ss).
Regressando ao caso vertente, já se viu que o n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, permite a utilização dos registos de imagem e som para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional. E que o n.º 6, permite a utilização dos registos de imagem para efeitos exclusivamente disciplinares pelo organizador da competição desportiva.
O que se conjuga adequadamente com a norma prevista no artigo 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido de, em processo disciplinar desportivo, o visado ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo.
Trata-se, pois, de restrição ao direito à autoincriminação que respeita os parâmetros constitucionais, como decorre da jurisprudência e doutrina citadas, e conforme entendem o TAD e a entidade recorrida.
Carecendo de sentido a alegação da recorrente quanto à necessidade de existência prévia de um processo criminal / contraordenacional, na medida em que tal interpretação carece do mínimo apoio literal e equivaleria a simplesmente esvaziar de conteúdo o normativo contido naquele artigo 18.º, n.º 6.
Em conclusão, mostra-se conforme à Constituição a interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por não contender com o plasmado nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da CRP.

Em suma, será de negar provimento ao recurso.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 26 de novembro de 2020

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator consigna e atesta que as Juízas Desembargadoras Ana Cristina Lameira e Catarina Vasconcelos têm voto de conformidade com o presente acórdão.
(Pedro Nuno Figueiredo)