Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04930/09
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:ESPERANÇA MEALHA
Descritores:AUDIÊNCIA PRELIMINAR; OMISSÃO DE PRONÚNCIA; INVIABILIDADE ESTRUTURAL DA PETIÇÃO
Sumário:I – Não ocorre nulidade processual quando a audiência preliminar foi expressamente convocada para os fins previstos no artigo 508.º-A/1-b) do CPC (na versão anterior à Lei n.º 41/2013), nem tal nulidade pode ser invocada apenas em sede de recurso, quando no âmbito de tal audiência o juiz manifestou a intenção de conhecer de imediato do mérito da causa e, notificado deste despacho, o recorrente nada requereu.
II – Incorre em omissão de pronúncia a sentença que,apreciando o pedido indemnizatório à luz do regime da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, nada refere quanto à responsabilidade facto lícito que o autor havia invocado subsidiariamente.
III – É estruturalmente inviável e insuscetível de aperfeiçoamento, conduzindo à absolvição do Réu do pedido, a petição inicial onde se invoca a responsabilidade civil extracontratual por facto lícitocom base em mera alegação conclusiva da ocorrência de danos “anormais e especiais”, sem que sejam minimamente substanciadosos factos correspondentes.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, 2.º Juízo, do Tribunal Central Administrativo Sul


I. Relatório
M…… J…… e M…… S…… interpõem o presente recurso jurisdicional do despacho saneador-sentença do TAC de Lisboa, que julgou improcedente a ação administrativa comum intentada pelos Recorrentes contra o MUNICÍPIO DE LISBOA, na qual peticionavam uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes do despejo sumário e demolição dos prédios de que eram proprietários, efetuados no âmbito da realização de obras de estabilização na zona da encosta do Bairro da Liberdade, em Lisboa.
Os Recorrentes concluem as suas alegações como se segue:
a) A d. sentença recorrida omitiu o conhecimento das questões seguintes:
(i) nos artigos 97.0 a 105.º da petição inicial ("PI"), os Recorrentes, subsidiariamente à causa de pedir aduzida a título principal, fundamentam a sua pretensão indemnizatória no disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21/11/1967, isto é, no instituto da responsabilidade civil por facto lícito danoso;
(ii) nos artigos 106.º a 114.º da PI, os Recorrentes, subsidiariamente às demais causas de pedir, alegam que o Réu, ora Recorrido, pela sua conduta assumiu voluntariamente a obrigação de indemnizar os Recorrentes, conduta essa que deveria ter sido valorada - por exemplo, à luz do que dispõe, entre outros, os artigos 352.0 , 355.º, 358.º, todos do Código Civil - para efeitos de efectivação da responsabilidade do Réu e determinação do montante indemnizatório.
b) Consequentemente, a d. sentença recorrida padece na nulidade cominada na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.
c) O Tribunal a quo, aquando da marcação da audiência preliminar, se era sua pretensão conhecer do pedido, deveria ter notificado as Partes para o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 508.0-A do CPC, facultando ou possibilitando que as mesmas discutissem a matéria de facto e de direito.
d) Com a referida omissão processual, o tribunal a quo violou também o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.
e) A preterição das formalidades prescritas no n.º 3 do artigo 3.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 508.º-A, ambos do CPC, influiu no exame ou decisão da causa, assim constituindo nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 201.º do CPC.
f) Consequentemente, deve anular-se o processado, ordenando-se ao tribunal a quo que proceda à marcação de nova audiência preliminar através de despacho no qual se indique claramente as finalidades a que essa audiência se destina.
g) A d. sentença recorrida também fez, nos termos e para os efeitos dos disposto nos artigos 653.º, n.º 4 e 690.º-A, ambos do CPC, errado julgamento da matéria de facto que se mostra insuficiente.
h) O tribunal a quo também deveria ter dado por assente que «Não obstante o apurado em "H" e "Z", o R. não pagou aos AA. o valor das rendas vencidas desde a data da desocupação das fracções até á presente data»;
i) Na verdade, resulta dos articulados que as Partes estão de acordo quanto ao facto de o Réu não ter procedido ao pagamento do valor das rendas vencidas. O único valor que o Réu pagou aos Recorrentes foi o que vem mencionado na alínea V dos factos assentes e que se refere à compensação pelo realojamento provisório ou temporário. Ora, embora em Z dos factos assentes, o Tribunal a quo dê como provado que o Réu se comprometeu a pagar aos Recorrentes o valor das rendas, certo é que esse valor não foi pago, nem a d. sentença recorrida dá esse não-pagamento por assente.
j) Consequentemente, a d. sentença recorrida, ao não dar como assente esse facto, violou o disposto no n.º 2 do artigo 490.º do CPC aplicável ex vi do artigo 1.ºdo CPTA.
k) O tribunal a quo também deveria ter dado por assente que «Com referência ao apurado em Z, dá-se por assente não ter o Réu, até à presente data, procedido à aquisição dos prédios pertencentes aos AA»
1) Este facto deve ter-se por assente na medida em que o Réu não alega, nem faz prova (aliás, impossível) de ter procedido à aquisição dos prédios, razão pela qual deverá este facto decorrer dos factos dados por assentes em A a C.
m) Caso se entendesse que os referidos factos não se podiam ter como assentes, hipótese que se aventa sem conceder, o Tribunal a quo deveria ter formulado os seguintes quesitos cuja demonstração se afigurava essencial para a justa composição do litígio:
«1 - Em face do apurado em "H" e "Z", pergunta-se se R. procedeu ao pagamento aos AA. do valor das rendas vencidas desde a data da desocupação das fracções até à presente data?».
«2 - Em face do apurado em Z, pergunta-se se o R. procedeu à aquisição do prédios pertencentes aos AA e em caso afirmativo em que data é que tal sucedeu?»
n) Conclui-se, pois, que a d. sentença recorrida fez incorrecto julgamento dos referidos concretos pontos de facto, razão pela qual deve a mesma ser revogada, baixando os autos ao tribunal a quo para que o mesmo proceda à ampliação dos factos assentes ou, não se entendendo, à elaboração de base instrutória, seguindo-se os demais termos legais.
o) Ao contrário do que vem decidido na d. sentença recorrida, o despacho conjunto das Exmªs Senhoras Vereadoras da Câmara Municipal, órgão do Município de Lisboa, de 16 de Janeiro de 2004, que ordena o despejo sumário imediato dos ocupantes das habitações propriedade dos ora Recorrentes, bem como a demolição desses edifícios a iniciar no prazo de 10 dias e a concluir no prazo de 30 dias, é ilegal.
p) Ao não dar como verificado o vício de violação de lei, por erro de direito que se consubstancia no erro quanto à determinação das normas legais aplicáveis, a d. sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, violando, designadamente, a disciplina jurídica constante do Decreto-Lei 104/2004, em especial do seu artigo 1.º;
r) Ao não dar como verificado o vício de forma por falta de fundamentação, a d. sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, violando, designadamente, a disciplina jurídica constante dos artigos 124.º e 125.º do CPA (artigo 135.º do CPA);
s) Ao não dar como verificado o vício de violação de lei, por ofensa de princípios essenciais da actividade administrativa, designadamente do princípio da proporcionalidade na vertente de proibição do excesso, a d. sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, violando, designadamente, a disciplina jurídica constante dos artigo 5.º do CPA e do Decreto-Lei 104/2004.
t) Consequentemente, verificando-se a ilegalidade do aludido despacho conjunto, deveria a d. sentença recorrida ter procedido à condenação do Réu por se verificar in casu os demais pressuposto de que depende a sua responsabilização nos termos do disposto nos artigos 1.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 2007. Ao não o fazer, a d. sentença recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento.
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O Recorridocontra-alegou, concluindo o seguinte:
a) A douta sentença recorrida concatena a apreciação de todos os factos relevantes carreados para os autos pelos Recorrentes, não se verificando qualquer omissão de pronúncia geradora da sua nulidade e, logo, não se encontra violado o disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC;
b) A apreciação da responsabilidade civil extracontratual por facto lícito carecia de apreciação de factos bastantes que os Recorrentes, em bom rigor, não aditaram para os autos ao abrigo do princípio do dispositivo;
c) A faculdade de discussão da matéria de facto e de direito pelas partes em sede de audiência preliminar não constitui formalidade obrigatória e imperativa, hábil a influir na decisão da causa, na hipótese de ser proferida - como foi nos presentes autos - sentença que decida sobre o mérito da causa na fase de saneamento;
d) No caso sob cogitação, a apreciação dos factos revestia manifesta simplicidade e a argumentação expendida pelas partes já se encontrava devidamente debatida nos articulados por estas oferecidos, devendo, nessa medida, serem dispensados os actos inúteis e observado o princípio da economia processual;
e) O direito ao exercício do contraditório não foi cerceado pelo facto de ter sido proferido despacho saneador-sentença sem que na audiência preliminar as partes discutissem a matéria pertinente à discussão do mérito, porquanto aquele direito foi plenamente assegurado em fase prévia, como se comprova pelo teor dos articulados juntos pelas partes;
f) Inexiste, assim, qualquer nulidade por pretensa violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, e 508-A, n.º 1, alínea b), ambos do CPC;
g) A matéria de facto julgada provada é suficiente e idónea à prolação da douta sentença sob recurso, sendo totalmente irrelevante para a decisão em apreço a matéria que os Recorrentes pretendem ver aditada a talelenco, para além de a mesma não resultar de meros factos alegados, mas de conclusões daqueles;
h) Não é de acolher, pois, o aditamento de matéria assente, nem se justifica a elaboração de base instrutória, porquanto dos autos resultam elementos suficientes para sustentar e fundamentar devidamente a douta sentença, não se presenciando a alvitrada violação do disposto no n.º 2 do artigo 490.º do CPC;
i) Não se verifica, também, qualquer erro de julgamento por não acolhimento do vício de fundamentação do acto administrativo sindicado perante o Tribunal a quo, pois que o mesmo apresenta todos os elementos de facto e de direito que permitem a qualquer destinatário, incluindo os aqui Recorrentes, aquiescer devidamente a pretensão e motivação do acto.
j) O acto administrativo em causa obedece a todos os requisitos preconizados pelos artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 124.º e 125.º do CPA, permitindo avaliar e compreender o percurso cognoscitivo e valorativo que lhe subjaz.
k) Não se encontram preenchidos os requisitos cumulativos de que depende a imputação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito ao ora Recorrido, de acordo com a previsão dos artigos 1.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, concretamente não existe a ilicitude inerente à actuação administrativa.
1) O Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de Maio, para além de ser inaplicável à situação subjudice por não existir sequer à data da prolação do despacho pelo Recorrido, não afasta a aplicação directa do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização, antes reclamando a sua disciplina em todas as matérias que com aquele diploma se conformem, e complementem.
m) O pretendido afastamento do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização implicaria destituir de regulamentação toda e qualquer operação urbanística que se pretendesse exercer nas áreas de reconversão urbana, o mesmo sucedendo com as medidas de tutela da legalidade urbanística que, em conformidade com tal entendimento, o Recorridoestaria inibido de empreender nessas mesmas áreas, o que é inadmissível.
n) De resto, nas áreas de recuperação e reconversão urbanística adensam-se medidas de intervenção e de regulação, não se suprimem essas medidas, o que significa que os regimes em causa convivem entre si e complementam- se, não se anulam - como se alcança até do texto do Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de Maio, que, invariavelmente, menciona expressamente o Regime Jurídico da Edificação e Urbanização.
o) O Recorrido limitou-se a actuar de acordo com o princípio da legalidade, que se encontra inscrito no artigo 3.º do CPA, em obediência à lei e ao direito, no âmbito das suas competências legais e tendo em vista as atribuições de prossecução do interesse público que lhe estão conferidas.
O Tribunal recorrido manteve a decisão.
O Magistrado do Ministério Público junto deste TCASul emitiu parecer no sentido de se considerar verificada a invocada nulidade processual, decorrente da omissão da convocação de audiência preliminar para efeito do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 508.º-A do CPC e, em consequência, prejudicadas as demais questões suscitadas.
O Recorrido respondeu ao parecer, reiterando o alegado.
Por requerimento de fls. 299 vieram os Recorrentes requerer a junção de documento superveniente, alegando que em tal documento o Município assume estar obrigado a indemnizar os prejuízos causados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do recurso
Os Recorrentes suscitam as seguintes questões de que cumpre conhecer pela ordem a seguir enunciada:
i. Nulidade processual traduzida na falta de notificação das partes para o disposto no artigo 508.º-A/1-b) do CPC, aquando da marcação da audiência preliminar, em violação do disposto nos artigos 508.º-A/1-b) e 3.º/3-b) do CPC, com a consequente necessidade de anulação do processado e marcação de nova audiência preliminar;
ii. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia consistente no não conhecimento das questões subsidiariamente invocadas nos artigos 97.º a 105.º da p.i. (responsabilidade civil por facto lícito) e nos artigos 106.º a 114.º da p.i. (assunção da obrigação de indemnizar pelo Recorrido)
iii. Erro de julgamento na decisão sobre a matéria de facto, porque deviam ter sido dados como assentes os factos referidos nas als. h) e k) das conclusões das alegações de recurso ou, pelo menos, tal matéria devia ter sido quesitada;
iv. Erro de julgamento quanto à apreciação jurídica da causa, por não ter considerado ilegal o despacho que ordena o despejo sumário dos ocupantes das habitações propriedade dos Recorrentes e não ter dado como verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil do R.
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III. Factos
A decisão recorrida considerou assente a seguinte factualidade, com a fundamentação a seguir transcrita:
A – Os AA. são donos e legítimos possuidores, sem determinação de parte, dos prédios urbanos sitos na Rua ….., nº….., nº….. e nº….., no Bairro de Campolide, em Lisboa ( docºs. de fls. 18 a 49 dos autos de procº cautelar apensos, e admissão por acordo).
B – Os AA. residiam na habitação sita na Rua ….., nº…., Bairro da Liberdade, Lisboa. ( admissão por acordo).
C – Os prédios são compostos pelas fracções/habitações seguintes ( cfr. docºs. de fls. 18 a 54 dos autos de procº cautelar apensos, e admissão por acordo):
(omissis).
D – Os através da exploração dos prédios identificados em “C” retiravam os rendimentos que asseguravam a sua subsistência ( admissão por acordo).
E - O A. explorava um estabelecimento comercial de papelaria, instalado no nº…., loja ( admissão por acordo ).
F – Os AA. tinham os prédios identificados em “C” arrendados, à data de 21 de Janeiro de 2004, à excepção dos correspondentes aos nºs. …. .., .. e .. e …, porta 1(cfr. docºs. de fls. 392 a 471 dos autos de procº. cautelar apensos, e admissão por acordo).
G – O A. com a exploração da papelaria obtinha um lucro mensal, de cerca de 800,00 euros ( admissão por acordo).
H - Com as rendas obtidas dos arrendamentos das habitações, identificadas em “C”, os AA. auferiam a quantia ilíquida mensal, de 2.266,60 euros, e anualmente de 27.199,20 euros ( cfr. docº.s de fls. 566 a 569 e de 571 a 574 dos autos de procº. cautelar, e admissão por acordo).
I - No dia 21 de Janeiro de 2004 , foi afixado o Edital nº…/DGPHM/04, o qual tem o conteúdo que abaixo reproduz-se na íntegra, e ao que foi anexa listagem de todas as construções objecto do edital (cfr. docº. de fls. 69 a 86 dos autos de procº. Cautelar apensos, e admissão por acordo):
omissis
J - Os AA. em consequência do despacho identificado em “J” foram desalojados da casa onde habitavam ( admissão por acordo).
L – O A. deixou de explorar a papelaria, que foi encerrada ( admissão por acordo).
M – Os inquilinos das casas que os AA. tinham arrendadas foram desalojados das mesmas ( admissão por acordo).
N – E, foram compensados pelos AA. ou realojados em prédios que o R. disponibilizou para o efeito ( admissão por acordo).
O - Os AA. dispõem dos rendimentos provenientes da pensão da A. M…… J…… no valor mensal de 346,86 Euros, de 29,20 Euros e de 790,23 Euros pagos pelo R. aos AA.( cfr. docºs. de fls. 565 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
P – O A. é deficiente motor, com uma desvalorização de 68% ( cfr. docºs. de fls. 111 e 570 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
Q – A A. tem a idade de 78 anos de idade ( admissão por acordo).
R – Em Janeiro de 2004, o Núcleo de Fundações, Taludes e Obras de Suporte do Departamento de Geotecnia do Laboratório Nacional de Engenharia Civil elaborou um relatório sobre a evolução da instabilidade dos terrenos da encosta do Bairro da Liberdade, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, do qual reproduz-se as conclusões finais ( cfr. docº. de fls. 188 a 267 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo):
omissis
S – Os AA. foram notificados do teor dos autos de vistorias municipais, mediante o ofício nº. 112, de 22 de Janeiro de 2004, os quais abaixo reproduzem- se na íntegra ( cfr. docº. de fls. 87 a 95 dos autos de processo cautelar apensos):
omissis
T – Os AA. foram notificados mediante os ofícios nºs. 003021 e 003214, da intenção do R. proceder à demolição das construções identificadas em “A e B” (cfr. docºs. 11 e 12 de fls. 311-313 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
U – Aos AA. foi facultada a opção de realojamento em fogo municipal ou indemnização (cfr. docº. de fls. 338-341 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
V - O valor da indemnização fixado, e pago, foi o de 34.228 Euros ( cfr. docº. de fls. 338-341 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
X – Os AA. optaram pela indemnização, a qual lhes foi paga ( cfr. docºs. de fls. 342-346 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
Z – O R. assumiu perante todos os proprietários o pagamento de todas as rendas que deixaram de auferir desde o início das obras de estabilização da encosta do Bairro da Liberdade, pelo período de cerca de 18 meses, até à aquisição dos prédios ( cfr. docºs. de fls. 350-357 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
AA – O R. com referência à suspensão da actividade do estabelecimento de papelaria assegurou o pagamento das rendas aos respectivos proprietários, e dos lucros cessantes devidamente comprovados ( cfr. docº. de fls. 359 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
AB – O valor mensal – com referência ao apurado em “Z” – a favor do A. M…… S……, foi o de 790,23 Euros ( cfr. docºs. de fls. 542 a 548 dos autos de processo cautelar apensos, e admissão por acordo).
A convicção do tribunal fundamentou-se na prova documental supra referenciada, e na admissão por acordo das partes. Nada mais logrou-se provar
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IV. Direito
a) Nulidade processual quanto aos fins para que foi convocada a audiência preliminar
Os Recorrentes invocam nulidade processual decorrente da circunstância de o tribunal recorrido não ter convocado a audiência preliminar para os fins previstos no artigo 508.º-A/1-b) do CPC (na versão anterior à Lei n.º 41/2013, à data em vigor), quando na verdade era sua intenção conhecer do pedido. E alegam que esta omissão processual violou também o princípio do contraditório (artigo 3.º/3 do CPC).
Em sentido idêntico pronunciou-se o Ministério Público.
Para decisão desta questão importa atentar que os presentes autos seguiram a seguinte tramitação processual, documentada nos autos:
i) Por despacho de fls. 89 foi convocada a realização de audiência preliminar “nos termos do disposto no artigo 508.º-A/1/a)/b)/c)/d)/2/a) a c) e 3 e 4 do CPC aplicável ex vi artigo 1º do CPTA”;
ii) Na ata da 1ª sessão da audiência preliminar, realizada em 22.05.2007, consta que tal audiência foi realizada “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 508.º-A, n.º 1, alínea a), b), d) e e), n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPC aplicáveis ex vi artigos 1.º e 42.º do CPTA”, tendo, em concreto, sido realizada tentativa de acordo e discutida matéria de exceção;
iii) Na ata da 2ª sessão da audiência preliminar, realizada em 29.05.2008, consta a mesma referência aos “termos e para os efeitos do disposto no artigo 508.º-A, n.º 1, alínea a), b), d) e e), n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPC aplicáveis ex vi artigos 1.º e 42.º do CPTA”, e refere-se que houveuma tentativa de acordo e a suspensão da audiência para notificação às partes de um requerimento;
iv) Na ata da 3ª e última sessão da audiência preliminar, realizada em 04.07.2008, foi proferido o seguinte despacho: “(...) 2 – Por se considerar que os autos dispõem de força probatória para prolação de sentença, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 510.º n.º 1 al. b), e n.º 2 do CPC ex vi artigo 1º do CPTA, decide-se pela prolação de Despacho Saneador Sentença por escrito”. Deste despacho foram de imediato notificados os mandatários ali presentes, que nada requereram.
Do exposto resulta que foi convocada uma audiência preliminar com a finalidade, entre outras expressamente indicadas nas respetivas notificações e atas, de facultar às partes a discussão da causa sob o ponto de vista de facto e de direito, o que desde logo terá permitido às partes, no decurso das três sessões realizadas, preparar e indicar a sua posição a esse respeito. Embora das respetivas atas não conste expressamente que tenha havido debate de facto e de direito sobre o mérito da causa (pelo menos expressamente, tal debate apenas terá ocorrido quanto ao conhecimento de um exceção), o certo é que essa era uma das finalidades a que se destinava a referida audiência preliminar (expressamente enunciada em todas as suas três sessões), o que desde logo teria permitido aos mandatários das partes, se assim o entendessem, trazer à discussão tais questões.
Além disso, foi ainda no âmbito da audiência preliminar que o juiz manifestou a intenção de conhecer de imediato do mérito da causa, por considerar que os autos dispunham de todos os elementos para o efeito, tendo esse despacho sido de imediato (no decurso da audiência) notificado aos mandatários presentes, que nada requereram. O que significa que foi também cumprido o princípio do contraditório.
Assim, não apenas não se pode concluir pela verificação da aludida nulidade processual, como tal nulidade sempre teria que ter sido suscitada no decurso da audiência preliminar, por força do disposto nos artigos 204.º e 205.º do CPC, na versão em vigor à data. Note-se que este caso édiverso daqueles outros, frequentemente apreciados na jurisprudência, em que não chegou a ser realizada audiência preliminar e em que a preterição dessa formalidade se consuma no próprio despacho saneador-sentença, com a consequente possibilidade de o Recorrente invocar, pela primeira vez, a nulidade processual em sede de recurso. No caso vertente, a apontada nulidade processual, caso tivesse ocorrido, ter-se-ia consumado no citado despacho, proferido em sede de audiência preliminar, do qual o mandatário dos Recorrentes foi notificado e na sequência do qual nada requereu.
Pelo que o recurso deve improceder nesta parte.
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b) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Os Recorrentes consideram que a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, porquanto terá suprimido o conhecimento de duas questões subsidiariamente invocadas na petição inicial: por um lado, não terá conhecido da questão da responsabilidade civil por facto lícito, invocada nos artigos 97.º a 105.º da p.i.; e, por outro, terá omitido a questão de o Recorrido ter assumido a obrigação de indemnizar, explanada nos artigos 106.º a 114.º da p.i.
Resulta da leitura da petição inicial que a ação administrativa comum emergente de responsabilidade civil, intentada pelos ora Recorrentes, assenta, em primeira linha, na ilegalidade do referido despacho e no disposto nos artigos 1.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.1967, ao tempo em vigor (cfr. artigos 1.º a 96.º da petição inicial).Depois, nos artigos 97.º a 105.º da p.i., os autores invocam, a título subsidiário, que ainda que tal indemnização não seja devida por facto ilícito, sempre o será com fundamento em facto lícito (at. 9.º do citado Decreto-Lei n.º 48051), por terem sofrido prejuízos absolutamente “anormais e especiais”; e, por fim, nos artigos 106.º a 114.º da petição, concluem que a responsabilidade do Réu nem devia ser discutida, pois já fora pelo mesmo assumida, uma vez que o Município já pagou diversas quantias aos autores para os compensar dos prejuízos sofridos com o despejo e demolição dos prédios em causa.
Por seu turno, o despacho saneador-sentença aqui recorrido começa por delimitar o objeto da ação, excluindo da mesma, por um lado, os danos reclamados pelo facto de os autores terem sido realojados (uma vez que tais danos estavam cobertos pela indemnização que os autores aceitaram do Município de Lisboa); e por outro, a questão do processo negocial em curso entre AA. e R. com vista à aquisição dos imóveis (por se tratar do exercício da liberdade contratual das partes, insusceptível de fundamentar danos enquadrados no regime da responsabilidade civil extracontratual). Depois, enquadra a pretensão indemnizatória dos autores/Recorrentes no instituto da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito e conclui pela improcedência da mesma, em suma, por considerar não verificado o pressuposto do “facto ilícito” (concretamente, o tribunal recorrido apreciou as ilegalidades imputadas ao “despacho conjunto”, publicitado pelo edital n.º ../DGPHM/04, e concluiu pela sua não verificação).
Ou seja, o despacho saneador-sentença recorrido enquadrou sempre a pretensão dos Recorrente no regime da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, o que é muito claro nos seguintes excertos: “Vêm os AA. peticionar a condenação do R. no pagamento de indemnização, para ressarcimento de danos patrimoniais e não patrimoniais, com apelo à responsabilidade civil extra-contratual, sustentada em facto ilícito, cuja prática imputam ao R., e do qual emergem os danos reclamados.”; “Os AA. invocam o instituto da responsabilidade civil extra-contratual, por prática de acto ilícito, para alicerçar os pedidos indemnizatórios.”; “Em suma, não se apuram razões de facto e de direito, que permitam concluir pelo carácter ilegal do despacho conjunto, e assim sendo decai um dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual: ´facto ilícito´, e atenta a natureza cumulativa dos pressupostos legais da responsabilidade civil extra- contratual, é de concluir pela manifesta improcedência da presente acção.”;
Forçoso é, por isso, concluir que o despacho recorrido apenas apreciou o pedido à luz da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, omitindo essa apreciação do ponto de vista da responsabilidade civil por facto lícito, que também vinha invocada pelos AA. a título subsidiário, e omitindo, ainda, qualquer consideração sobre a invocada assunção voluntária da obrigação de indemnizar por parte do R. Município.
Assim, o despacho recorrido incorre em omissão de pronúncia quanto a estas questões, as quais estava obrigado a conhecer por terem sido submetidas à sua apreciação e não serem necessariamente prejudicadas pela decisão dada à questão da responsabilidade civil por facto ilícito (cfr. artigo 660.º/2 do CPC, na versão anterior à Lei n.º 41/2013, aqui aplicável).
Impõe-se, por isso, declarar a nulidade do despacho por omissão de pronúncia, sem prejuízo de este TCAS poder, em substituição, conhecer das questões omitidas, nos termos a seguir referidos.
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c) Erro de julgamento na decisão sobre a matéria de facto
Os Recorrentes alegam que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 490º/2 do CPC, pois devia ter dado como assentes os factos a seguir referidos ou, pelo menos, tal matéria devia ter sido quesitada, a saber:
- Que “não obstante o apurado em ´H´ e ´Z´ o R. não pagou aos AA. o valor das rendas vencidas desde a data da desocupação das frações até à presente data” (facto que os Recorrentes consideram admitido por acordo);
- Que “com referência ao apurado em ´Z´, dá-se ir assente não ter o Réu até à presente data, procedido à aquisição dos prédios pertencentes aos AA.”
Diga-se desde já que não assiste razão aos Recorrentes.
No que respeita ao “facto” indicado em segundo lugar, respeitante à aquisição dos prédios pertencentes aos autores, a decisão recorrida entendeu expressamente que tal questão estava fora do objeto do processo: como já foi referido, a decisão recorrida considerou que a questão da aquisição dos imóveis enquadrava-se no processo negocial em curso entre AA. e R. e era insusceptível de fundamentar danos peticionados numa ação assente em responsabilidade civil extracontratual.
Ora, não só os Recorrentes não impugnaram a decisão recorrida nesta parte, como esta decisão, quanto à delimitação do objeto do litígio se afigura inquestionável, face aos fundamentos da presente ação, exclusivamente assente no instituto da responsabilidade civil (ainda que, como vimos, em várias vertentes deste instituto). Por isso, estando tal questão excluída do objeto da ação, não tinha o tribunal que fixar factos a ela respeitantes.
Quanto ao “facto” referente ao não pagamento dasrendas vencidas desde a data da desocupação das frações até à presente data, uma vez que tal facto corresponde a um “dano” peticionado, o mesmo só seria determinante para a decisão, caso se mostrassem verificados todos os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, o que, como veremos, não ocorre.
Em suma, a matéria de facto dada como assente era a necessária e suficiente ao conhecimento do objeto da ação, tal como delimitado no despacho recorrido (nesta parte não impugnado). Da mesma forma, como veremos, tal matéria de facto mostra-se suficiente para a apreciação das questões omitidas no despacho recorrido.
Pelo que improcede o recurso nesta parte.
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d) Erro de julgamento quanto à ilegalidade do despacho conjunto
Invocam os Recorrentes que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, por não ter considerado ilegal o despacho que ordenou o despejo sumário dos ocupantes das habitações propriedade dos Recorrentes e não ter dado como verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil do R.
Mas sem razão.
Em rigor, os Recorrentes não apontam um qualquer erro à decisão recorrida, mas apenas se limitam a imputar ao despacho conjunto que ordenou o despejo e demolição dos prédios, os mesmos vícios que alegaram na petição inicial (violação de lei e falta de fundamentação) e que a decisão recorrido julgou não verificados. Ora, como em sido reiteradamente salientado na jurisprudência, quando a alegação não evidencia os motivos de discordância com o decidido e se limita a renovar os fundamentos da ação, tal constitui motivo para não conhecimento do objeto do recurso.
Independentemente disso, sempre seria de concluir que a decisão recorrida não merece qualquer reparo nesta parte, não se verificando os invocados vícios de violação de lei e de falta de fundamentação, pelas razões aí explanadas, que nos prescindimos de repetir.
Assim, tendo a decisão recorrida dado como não verificado o pressuposto do “facto ilícito” – decisão que é de manter, pelas razões referidas –, tal era o bastante para concluir pela não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito que, como é sabido, são cumulativos.
Pelo que o recurso improcede nesta parte.
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e) Responsabilidade civil por facto lícito e assunção voluntária da responsabilidade de indemnizar– conhecimento em substituição
A nulidade da decisão por omissão de pronúncia não obsta a que o Tribunal de recurso conheça em substituição das questões omitidas, desde que os autos fornecerem todos os elementos para o efeito.É o que ocorre no caso em apreço, pelo que, com base nos elementos de facto dados como provados pelo tribunal recorrido, se passa a apreciar as duas questões suscitadas nos artigos 97.º e s. da petição inicial.
A título subsidiário (para o caso de o despacho em causa ser considerado um ato lícito), os autores/Recorrentes invocam que os danos sofridos devem ser indemnizados com fundamento em responsabilidade civil por facto lícito, porque, em síntese, entendem que sofreram danos “anormais e especiais”, nomeadamente, por terem perdido o rendimento que lhes advinha do arrendamento dos prédios em questão.
Acontece que, como salientado pelo Recorrido, os autores/Recorrentes não substanciam minimamente esta pretensão assente em responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, não alegando os correspondentes factos, nomeadamente, não individualizando os danos que reputam “especiais e anormais”, nem articulando esta pretensão com os valores compensatórios que entretanto lhes foram pagos pelo Município de Lisboa. O que significa que, nesta parte, a petição inicial limita-se a uma alegação conclusiva e revela-se estruturalmente inviável (e insuscetível de aperfeiçoamento), conduzindo irremediavelmente à absolvição do Réu do pedido fundado em responsabilidade civil por facto lícito.
Por último, no que respeita à alegada “assunção da obrigação de indemnizar por parte do Município”, a mesma é insuscetível de conduzir a uma modificação do decidido. É certo – e a decisão recorrida deu-o como provado – que o Município de Lisboa, que teve que demolir os prédios em causa para prosseguir obras de estabilização da encosta do Bairro da Liberdade, desde logo assumiu perante os proprietários a necessidade de os compensar pelo facto de serem desalojados, tendo os aqui AA. optado pelo pagamento da referida indemnização, em lugar de serem realojados. Mas este facto em nada altera a conclusão de que, por um lado, não está verificado o pressuposto do “facto ilícito” e como tal improcede o pedido indemnizatório fundado em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito; e que, por outro, a petição padece de um défice estrutural de alegação na parte respeitante ao pedido de responsabilidade civil por facto lícito, que o faz decair inevitavelmente.
Pelo que a ação deve improceder na sua totalidade e ser negado provimento ao recurso.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento parcial ao recurso e, em substituição, julgar improcedente a ação.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 04.12.2014




(Esperança Mealha)




(Maria Helena Canelas)




(António Vasconcelos)