Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2152/09.5BEL.SB
Secção:CA
Data do Acordão:10/04/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:NULIDADE DO CONTRATO POR FALTA DE FORMA
REGIME DA NULIDADE
Sumário:I. O acordo celebrado entre as partes tendo por objeto a utilização de bens do domínio público e a sua cedência de utilização, a título precário por entidades públicas a particulares, encontra-se submetido a normas de direito administrativo, os Decretos n.ºs 11.928, de 21/06/1926 e 12.800, de 07/12/1926, o qual se harmoniza com o regime de utilização de bens do domínio público previsto no D.L. n.º 280/2007, de 07/08.
II. A procedência da exceção de caducidade da licença e de não ter sido adotada a forma legal para titular a utilização da parcela de terreno, mediante a contrapartida do pagamento de uma verba, não inviabiliza que se aprecie do mérito do litígio, no sentido de aferir os respetivos direitos e deveres das partes, emergentes daquela relação jurídica e assente na realidade de facto, pois a falta de redução a escrito da renovação do acordo para a utilização do terreno, não significa que não exista uma relação de base negocial estabelecida entre as partes, ainda que sem a forma legal.
III. A redução do acordo a escrito traduz-se na forma dada a esse acordo, enquanto requisito para a sua validade ou eficácia, mas não para a sua existência jurídica.
IV. A nulidade do acordo, por falta absoluta de forma legal ou a falta de título, considerando a data de validade da licença precária, não acarreta a inexistência de uma relação jurídica de base negocial entre as partes, baseada na utilização do terreno e na emissão de faturas como contrapartida por essa utilização.
V. A falta de forma do contrato gera a sua nulidade, nos termos do artigo 185º do CPA e 289.º do CC, tendo a declaração de nulidade efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, designadamente nos contratos de execução
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

R... – Administração e Gestão Imobiliária, SA, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 10/01/2012, que, no âmbito da ação administrativa comum, sob a forma ordinária, instaurada contra a Associação F..., em que pede a condenação da Ré a pagar a quantia de € 11.359,12, acrescida de juros, em relação às faturas referidas nos autos e ao pagamento de uma indemnização pela utilização indevida do terreno, no valor de € 16.440,00, por cada mês de atraso na sua restituição, calculado de acordo com o montante fixado na licença de utilização pela sua utilização mensal, foi julgada procedente a exceção de caducidade da licença precária n.º 901/05, a partir de 01/02/2006, sendo absolvida a Ré do pedido.

Formula a aqui Recorrente nas respetivas alegações (cfr. fls. 178 e segs. do processo físico), as conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:

“I – O regime jurídico que molda o negócio jurídico, seja ele de natureza pública ou privada, vem delimitado nos artigos 217 a 294 do Código Civil;

II – No caso em apreço a recorrido e a recorrente livremente e de boa fé acordaram o uso de uma faixa de terreno por determinado período e mediante pagamento de um determinado valor, inicialmente por escrito e posteriormente verbalmente;

III – Por falta de forma escrita o negócio celebrado pelas partes é nulo;

IV – Pela aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 134 do CPA, bem como do disposto no artigo 293 do CC, o negócio nulo pode converter-se num negócio válido;

V – Resulta dos autos que as partes acordaram a utilização do referido espaço mediante o pagamento de € 822,00 + IVA, que a recorrida depois de 31.01.2006 estava na posse da faixa de terreno, que a recorrida, entre Janeiro e Agosto de 2006, pagou o valor fixado pela utilização do espaço, que a recorrente por falta de pagamento daquele valor rescindiu o contrato firmado com a recorrida e passou a exigir os valores em falta, bem como uma indemnização pela ocupação indevida do espaço;

VI – Os factos supra descritos verificaram-se ao longo do tempo;

VII – Pela aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual visa a obtenção de legal para o caso concreto, deveria o Tribunal recorrido ter convertido um negócio nulo por falta de forma num negócio válido;

VIII – Ao não decidir assim, o Tribunal recorrido violou o disposto no n.º 3 do artigo 134 do CPA e o artigo 293 do CC;

IX – Pelo exposto, deverá a decisão em crise ser revogada por outra que julgue o negócio celebrado entre as partes válido e, em consequência, ordene o prosseguimento dos autos para julgamento.”.


*

Contra-alegou a ora Recorrida, Associação F..., tendo concluído do seguinte modo:

“I – O Douto acórdão recorrido avalia e pondera convenientemente a matéria de facto dada como provada e não provada, explicitando especifica e detalhadamente o processo lógico que presidiu à sua apreciação, mesmo na parte em que se apela à convicção do Tribunal, não tendo sido alegada nenhuma contradição relevante pelo recorrente, nem factos não considerados nessa avaliação, pelo que, deve ser mantido o acórdão recorrido;

II – Face à conclusão anterior, deverá ser mantida a Douta decisão recorrida que considerou procedente a excepção de caducidade da licença precária n° 90…/05, a partir de 01/02/2006, absolvendo-se a Ré/recorrida do pedido (cfr art. 493°, n° 3 do CPC),

III – Com o fundamento de que não existe qualquer documento escrito que titule a utilização posterior do espaço ou terreno em causa, não podendo qualquer alegado acordo ou negócio jurídico ser válido, mesmo que acompanhado do pagamento de quantias devidas por essa utilização, onde não se identifica o autor de tais pagamentos, por carência absoluta de forma legal – Art. 133°, n°. 2 f) do CPA,

IV – tudo em nome da legalidade da obrigatoriedade de exigência da forma escrita para a prática de actos administrativos e actividade administrativa em geral, por razões de certeza e segurança jurídicas, como bem se evidenciam pertinentes, no caso concreto em análise,

V – mantendo-se tudo o demais que consta do Douto Acórdão recorrido, improcedendo o recurso interposto pela A/recorrente, fazendo-se assim a acostumada Justiça.”


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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

A questão suscitada pela Recorrente resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento de direito, por violação do artigo 134.º, n.º 3 do CPA e do artigo 293.º do Código Civil, ao não converter o negócio nulo num negócio válido.

III – FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“1 - A A. autorizou à E…, S.A., em 20.1.2005, com efeitos a partir de 1.2.2005, a utilização a título precário de uma faixa de terreno com a área de 594m2, situada entre o logradouro do edifício dos CTT Correios, sito na Av. Fernão de Magalhães, em Coimbra e a zona de estacionamento já ocupada pelos CTT, pelo prazo de um ano, mediante o pagamento de uma quantia mensal de € 822,00+IVA, cf. licença precária n.° 90…/05 junta à p.i. sob o doc. n.° 1;

2 - Pelo 1.° acto adicional à referida licença precária, a ora R. cedeu o direito de utilização à ora R., tendo a A. aceite tal cedência, com efeitos a partir de 1.8.2005, cf. doc. de fls 1214 dos autos;

3 - A referida licença foi concedida ao abrigo dos Decretos n.°s 11928, de 21.6.1926 e 12800, de 7.12.1926, cf. o seu ponto 8, a fls 11 dos autos;

4 - O terreno objecto da licença situa-se junto à estação de caminhos de ferro de Coimbra e destinava-se a parqueamento automóvel, cf. fls 38 dos autos;

5 - A R. pagou integralmente as taxas previstas na licença até 1.2.2006 (acordo)..”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise do fundamento do presente recurso jurisdicional.

Erro de julgamento de direito, por violação do artigo 134.º, n.º 3 do CPA e do artigo 293.º do Código Civil, ao não converter o negócio nulo num negócio válido

Nos termos alegados no presente recurso, vem a Autora, ora Recorrente insurgir-se contra a sentença recorrida com fundamento em erro de julgamento de direito, porquanto aceitando a nulidade das renovações do negócio celebradas com a Ré, através do qual cedeu o direito de exploração, para além do primeiro ato adicional à licença precária, por falta de forma e nenhuma outra renovação ter sido reduzida a escrito, antes decorrendo de um acordo verbal entre as partes, tal não significa que não possam ser extraídos efeitos do negócio nulo, porquanto a Ré continuou a utilizar o terreno e essa utilização foi faturada pela Autora.

Defende a aplicação ao litígio do disposto no artigo 134.º, n.º 3 do CPA e do artigo 293.º do Código Civil.

Vejamos.

Antes de mais importa proceder à configuração do presente litígio, de forma a compreender o que se mostra peticionado em juízo.

Vem a Autora instaurar a presente acção, alegando que celebrou com a E… – E…, SA, a utilização a título precário de uma faixa de terreno com a área de 594 m2, pelo prazo de um ano, a contar de 01/02/2005, mediante o pagamento de uma quantia mensal, correspondente à licença precária n.º 901/05.

Pelo adicional à licença precária n.º 1/05, a E… cedeu a sua posição contratual, com a concordância da Autora, à Ré, Associação F..., quanto à utilização do terreno.

Através dessa cessão de posição contratual a Ré aceitou todas as condições acordadas entre a Autora e a E..., passando a Autora a faturar todos os meses a utilização do terreno à Ré e a remeter-lhe a fatura para pagamento.

Em consequência da falta de pagamento das faturas a partir de 01/09/2006, a Autora comunicou a rescisão da licença de utilização em setembro de 2007 e a restituição do espaço, e veio instaurar a presente acção, peticionando a condenação ao pagamento das faturas e de uma indemnização.

Na contestação, a Ré defendeu-se por exceção e por impugnação, em que dentre o demais, alegou a caducidade do contrato de utilização inicial.

Sustenta que o contrato de utilização inicial e a subsequente cessão de posição contratual previa o prazo de duração efetiva e sem renovações de um ano, ou seja, de 01/02/2005 até 31/01/2006, não sendo devidas as quantias reclamadas pela utilização do terreno, por caducidade do contrato de utilização.

Foi esta questão que foi conhecida pelo Tribunal a quo e, sendo julgada procedente, conduziu à absolvição da Ré do pedido, deixando de conhecer do mérito do pedido deduzido pela Autora.

Explanados os termos do litígio, vejamos agora o discurso fundamentador da decisão recorrida.

Decidindo-se que o litígio em questão se encontra submetido a normas de direito administrativo, por a relação jurídica ser regulada pelo regime contido nos Decretos n.ºs 11928, de 21/06/1926 e 12800, de 07/12/1926, o qual se harmoniza com o regime de utilização de bens do domínio público previsto no D.L. n.º 280/2007, de 07/08, designadamente com o seu artigo 23.º (regula a cedência de utilização, a título precário, por entidades públicas) e o seu artigo 28.º (relativo à utilização privativa por particulares), passou o Tribunal a quo a conhecer da matéria de exceção invocada pela Ré.

Consta da sentença recorrida que a questão da caducidade da licença se traduz numa exceção, por se considerar traduzir num “facto impeditivo do direito invocado pela A., o qual pressupõe a existência de título àquela data”.

Como mais resulta do discurso fundamentador da sentença recorrida:

A A. pronunciou-se quanto a esta questão no art.° 11.° e segts da réplica, tendo aí alegado que a partir de 1.2.2006 a R. continuou a usufruir da faixa de terreno em questão, por acordo verbal entre as partes, tendo pago os valores devidos por tal utilização até Setembro de 2006. Mais invocando que a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir, cf. art.° 217.° do C.C.. Porém, a forma escrita é a forma regra exigida na actividade administrativa, por razões de certeza e segurança jurídicas. Tal forma foi observada no título inicial e no 1.° acto adicional ao mesmo (cf. supra factos provados n.°s 1 e 2), pelo que a alteração de qualquer das condições, designadamente, a renovação ou prorrogação do prazo de utilização deveria ter observado as mesmas formalidades, cf. art.° 143.° do CPA aplicável ex vi do art.° 147.° do mesmo Código. Tendo a utilização do terreno em causa sido cedida por um ano, completado em 31.1.2006 e não existindo qualquer documento escrito que titule a utilização posterior do mesmo, não pode a mesma ser considerada válida, mesmo se acompanhada do pagamento de quantias devidas por essa utilização, por carência absoluta da forma legal, cf. al. f) do n.º 2 do art.° 133.º do CPC. Em face do exposto, julga-se procedente a excepção de caducidade da licença precária n.º 901/05, a partir de 1.2.2006, absolvendo-se a R. do pedido.”.

Este julgamento não se pode manter.

De imediato se toma posição no sentido de proceder o erro de julgamento de direito que se mostra invocado contra a sentença, pois a circunstância de ser julgada procedente a exceção de caducidade da licença e de não ter sido adotada a forma legal para titular a utilização da faixa de terreno em questão, mediante a contrapartida do pagamento de uma verba, não inviabiliza que se aprecie do mérito do litígio, no sentido de aferir os respetivos direitos e deveres das partes, emergentes daquela relação jurídica e assente na realidade de facto.

Da alegação das partes e em face da prova produzida em juízo, é possível descortinar que embora não tenha sido reduzida a escrito a renovação do acordo para a utilização do terreno, não significa que não exista uma relação de base negocial estabelecida entre as partes, ainda que sem a forma legal.

A redução do acordo a escrito traduz-se na forma dada a esse acordo, enquanto requisito para a sua validade ou eficácia, mas não para a sua existência jurídica.

Da alegação da Entidade Demandada na contestação apresentada em juízo, assim como da contra-alegação ao presente recurso, decorre claramente a existência de relações contratuais entre as partes.

Assim, não se pode confundir a eventual nulidade do acordo, por falta absoluta de forma legal ou até a falta de título da Autora, considerando a data de validade da licença precária, com a inexistência de uma relação jurídica de base negocial entre as partes em juízo.

Nos termos que resultam dos autos, a Autora emitiu faturas com periodicidade mensal, como contrapartida pela utilização do terreno pela Ré, apresentando-as à Ré para pagamento, mas em que esta contesta que seja devedora das mesmas.

Da factualidade demonstrada em juízo é possível extrair que as partes estabeleceram relações contratuais, cujo litígio a Autora pretende dirimir em juízo.

Por isso, não obstante as partes não terem reduzido a escrito o acordo no tocante à sua renovação, subsiste uma relação contratual firmada.

Porém, embora esta factualidade resulte da própria alegação das partes e se mostre refletida na fundamentação de direito da decisão recorrida, não decorre do julgamento da matéria de facto, por a matéria de facto selecionada ser insuficiente para a própria decisão concretamente proferida.

Isto porque, não decorre dos factos provados ou dos não provados, a celebração de outro adicional à licença precária, assim como se existiu ou não a utilização do terreno pela Ré para além da data de 01/02/2006, se foram ou não emitidas faturas pela Autora, se as mesmas foram remetidas, de entre a demais factualidade alegada pelas partes, relevante para a decisão a proferir, seja da exceção de caducidade da licença, seja do mérito do pedido.

Perante o enquadramento do litígio, nos termos que antecedem, não se pode manter o julgamento de direito constante da sentença recorrida.

Para tanto, pela similitude das situações em causa, segue-se o decidido por este TCAS, no Acórdão n.º 07541/11, de 02/04/2014, que se passa a reproduzir:

Constituindo efeito jurídico decorrente da falta de forma do contrato a sua nulidade, considerando o regime da nulidade do contrato, por falta da sua respectiva forma legal, não pode ser olvidada toda a demais factualidade apurada em juízo, designadamente, que a Autora, ora Recorrente realizou o objecto da prestação de serviços, incorrendo por esse motivo, quer na realização de trabalhos, quer no dispêndio de verbas monetárias, de que deve ser ressarcida.

Com relevo, preceitua o disposto no artº 185º do CPA:

“1. Os contratos administrativos são nulos ou anuláveis, nos termos do presente Código, quando forem nulos ou anuláveis os actos administrativos de que haja dependido a sua celebração.

2. São aplicáveis a todos os contratos administrativos as disposições do Código Civil relativas à falta e vícios da vontade.

3. Sem prejuízo do disposto no n.º 1, à invalidade dos contratos administrativos aplicam-se os regimes seguintes:

a) Quanto aos contratos administrativos com objecto passível de acto administrativo, o regime de invalidade do acto administrativo estabelecido no presente Código;

b) Quanto aos contratos administrativos com objecto passível de contrato de direito privado, o regime de invalidade do negócio jurídico previsto no Código Civil”.

Conforme se extrai do Acórdão do STA, de 01/03/2001, Rec. nº 046031, numa situação paralela, em que estava em causa um ajuste verbal de uma empreitada de obra pública, nos termos do qual a Autora se obrigou a efectuar uma obra pública com meios humanos e maquinaria própria, vinculando-se o ente público a pagar esses serviços, foi entendido que o objecto do contrato administrativo em causa, o contrato de empreitada de obras públicas, é passível de contrato de direito privado, por tal resultar do disposto nos artºs. 1207º e segs., do Código Civil, sede em que vem expressamente previsto e regulado o contrato de empreitada.

Em termos paralelos se deve entender quanto ao contrato em causa nos presentes autos (…).

A diferença entre os dois tipos de contratos – contrato administrativo de prestação de serviços e contrato de prestação de serviços privado, regulado no Código Civil – não reside no respectivo objecto, pois que ambos têm por objecto a realização de uma obra, mediante um preço.

As diferenças radicam antes numa diversa regulamentação, estabelecida em razão da natureza pública ou privada dos interesses prosseguidos com a realização da prestação de serviços.

Assim, tem aplicação o regime da nulidade dos contratos, regulado no artº 289º do Código Civil.

A declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (artº 285º, nº 1 do Código Civil).

Porém, nos contratos nulos de execução continuada, nos quais uma das partes beneficie do gozo de uma coisa ou de um serviço, como é o caso dos autos, “apresentam-se com algumas especificidades que não podem deixar de ponderar-se à luz do regime do art.º 289.º n.º 1 do C. Civil”, como se faz notar no Ac. do STA, de 24/10/2006, processo nº 0732/05, na mesma linha também do Acórdão do STJ, de 11/07/2002, processo nº 03B484.

A solução a dar ao presente caso, deve ir no sentido de que o Tribunal, declarada a nulidade de um negócio jurídico, deve extrair as consequências dessa declaração de nulidade, em especial ordenando a restituição de tudo o que foi prestado, nos termos do artº 289º, nº 1, do Código Civil.

Mas, uma vez que a restituição em espécie, por sua natureza, não é possível, pois que os serviços prestados nunca mais poderão ser restituídos, haverá, então, que condenar a Ré no pagamento do “valor correspondente” à utilidade advinda da realização da mesma (nº 1 do artº 289º), corporizada nos valores reclamados pela Autora, respeitantes aos trabalhos e serviços a que se reportam os diversos pontos da matéria de facto, de acordo com as facturas apresentadas à Ré Recorrida, por ele não devolvidas à Autora.

De outro modo, face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende, conduziria a um enriquecimento injustificado por parte da Ré, além de que se traduziria numa injustiça, como se a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada.

Na verdade, tal permitiria que a Ré, uma vez afastada a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, não obstante a realização da prestação de serviços, pudesse furtar-se ao pagamento dos encargos que os mesmos representaram para a Autora da presente acção administrativa.

Pelo que, mediante aplicação do regime da declaração de nulidade, previsto no disposto no artº 289º, nº 1, do Código Civil, ao fazer apelo ao valor correspondente quando a restituição em espécie não for possível, confere a pedra de toque para a solução do caso, que vai no sentido da condenação da Ré ao pagamento da quantia peticionada e, em consequência, pela revogação da sentença recorrida.

Por outras palavras, ao abrigo do regime da nulidade, previsto no nº 1 do artº 289º do Código Civil, segundo o qual, em caso de nulidade, se impõe a restituição de tudo quanto haja sido prestado ou se a restituição não for possível, o valor correspondente, que traduz o efeito restitutivo da nulidade, será de reconhecer o direito à Autora de ser ressarcida das despesas em que incorreu com a prestação de serviços e, em consequência, em condenar a Ré no pedido.

No caso configurado em juízo existe causa que justifica o enriquecimento da Ré, traduzido no facto de ter havido uma relação jurídica contratual, que o “enriquecido” não chegou total ou parcialmente a cumprir, pelo que, encontra-se demonstrada a existência de uma situação de vantagem ilegítima, obtida pelo devedor directamente decorrente do contrato incumprido.

Porém, como decorre da lei substantiva (artº 474º do Código Civil), no domínio da nulidade do contrato e do seu regime especial de restituição de tudo o que tiver sido prestado (artº 289º, nº 1 do Código Civil), está vedado o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, previsto no artº 473º e seguintes do Código Civil, em função do carácter subsidiário deste (neste sentido cfr. diversa jurisprudência do STA).

O que quer dizer que na situação dos autos, embora esteja comprovada a causa para o enriquecimento, atento o disposto no artº 474º do Código Civil, que prescreve a natureza subsidiária do instituto, por estar em causa um contrato nulo, não é legalmente possível a invocação do regime do enriquecimento sem causa.

Assim, sufraga-se a doutrina do Acórdão do Pleno do STA, datado de 18/02/2010, processo nº 0379/07, nos termos do qual:

“II - No domínio da nulidade do contrato e do seu regime especial de restituição de tudo o que tiver sido prestado (art. 289º, nº 1 do C. Civil), está vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste.

III - A declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado. (art.º 289.º, n.º 1 do C. Civil).

IV - Mas, não sendo possível nos contratos de execução continuada, como é o caso da empreitada - em virtude de a obra feita nunca mais poder ser restituída -, a restituição em espécie, haverá, então, que condenar o réu no pagamento do “valor correspondente” à utilidade advinda da sua realização.”.

(…)

Por este motivo, não se pode manter a sentença recorrida, já que embora tenha considerado a nulidade do contrato, por errado julgamento dos factos e do Direito, denegou procedência ao pedido de condenação da Ré ao pagamento da quantia peticionada, não extraindo quaisquer consequências do regime jurídico da nulidade.

A factualidade apurada determina uma interpretação e aplicação dos normativos de Direito em termos que ditam uma diferente solução de Direito, incorrendo a sentença em errada interpretação e aplicação do disposto no artº 289º do CC.”.

Tendo a sentença recorrida julgado procedente a exeção de caducidade da licença e julgada nula, por carência absoluta de forma legal, a renovação ao acordo celebrado entre as partes, não poderia ter decidido nos termos em que decidiu, pois impunha-se que tivesse procedido a um integral julgamento de facto e de direito, inclusivamente para a matéria de exceção, e decidido do pedido, no sentido da sua procedência ou improcedência.

Para a decisão sobre a matéria de exceção da caducidade da licença e da carência absoluta de falta de forma da renovação do acordo, impunha-se que tivessem sido levados ao probatório, mediante seleção da matéria de facto, os factos correspondentes, o que não consta, sendo insuficiente a matéria de facto para a decisão proferida.

Socorreu-se a decisão recorrida da fundamentação de direito da alegação da Autora constante da réplica, mas sem que tenham sido dado por demonstrados os factos relevantes para a decisão a proferir.

Significa que, procede o erro de julgamento de direito que se mostra dirigido contra a sentença recorrida, pois a decisão de procedência da exceção de caducidade da licença precária n.º 90…/05, a partir de 01/02/2006 e a carência absoluta de forma da renovação do acordo entre as partes, por não ter sido reduzido a escrito, não só exige um amplo julgamento da matéria de facto, como não impede o conhecimento do mérito do pedido, tal como formulado pela Autora em juízo.

Porém, para que se possa conhecer do pedido deduzido em juízo, segundo a causa de pedir alegada pela Autora, mas sem que o Juiz esteja vinculado à interpretação e à aplicação das regras de direito, impõe-se que se proceda a um integral julgamento da matéria de facto, o que não logrou ser realizado pelo Tribunal a quo.

O Tribunal a quo proferiu a decisão recorrida na fase de saneamento da causa, sem ter procedido à abertura da fase de instrução, além de não ter procedido ao integral julgamento da matéria de facto, pelo que, não estão reunidas as condições para que este Tribunal ad quem, em substituição, possa julgar o mérito do pedido.

Acresce, impor-se ainda dizer que formalmente, a decisão recorrida não assume sequer as vestes de um saneador-sentença, pois enquanto decisão que julga procedente uma exceção que determinou a absolvição da Ré do pedido, não só põe fim à instância, como ao próprio pedido, pondo termo à causa, mas sem que assuma a sua respetiva estrutura formal, por falta de identificação das partes, por em nenhum momento serem identificadas as partes em juízo, não existir relatório, nem essa identificação constar do dispositivo.

A par, a decisão recorrida omitiu igualmente a pronúncia sobre os demais pressupostos processuais, nada dizendo sobre os mesmos, não obstante estar em causa uma decisão proferida na fase de saneamento da causa.

Assim sendo, considerando que a decisão recorrida, não obstante ter sido proferida na fase de saneamento da causa, pôs termo ao processo e ao próprio direito, por absolver do pedido, mas:

(1) não procedeu à identificação das partes, por em nenhuma circunstância identificar a Autora ou a Ré em juízo, nem quem é absolvido do pedido;

(2) não se pronunciou sobre os demais pressupostos processuais

(3) não procedeu ao julgamento da matéria de facto relevante para a matéria de exceção e para o mérito do pedido;

(4) não conheceu do mérito do pedido, o qual não se encontra prejudicado pela decisão proferida sobre a matéria de exceção;

(5) sendo necessário proceder à instrução da causa, de modo a poder conhecer-se do pedido deduzido pela Autora,

não estão reunidos os pressupostos para que este Tribunal ad quem se substitua ao Tribunal a quo.

Não só não resulta da decisão recorrida o saneamento da causa, como falta a instrução do processo, sendo necessário proceder à instrução da causa, mediante um integral julgamento dos factos e do direito, que não logrou ocorrer na sentença recorrida, por esta se ter limitado a decidir a matéria de exceção.

Assim, considerando tudo o que antecede e que o Tribunal a quo não conheceu do mérito do litígio, deve ocorrer o prosseguimento dos autos para julgamento da matéria de facto e de direito, se necessário for, com produção de meios de prova destinados à comprovação dos factos alegados nos articulados das partes.


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Pelo exposto, serão de julgar provadas as conclusões do recurso, incorrendo a sentença recorrida em erro de julgamento de direito, o que determina a sua revogação, ordenando-se a devolução dos autos à primeira instância, para que proceda ao julgamento de facto e de direito e decida do mérito da causa, se nada mais obstar, em obediência ao legal formalismo da sentença.

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Em suma, procedem os fundamentos do recurso, revogando-se a sentença recorrida.

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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul nos presentes autos, em conceder provimento ao recurso, por provados os seus fundamentos, em revogar a sentença recorrida e em determinar a baixa dos autos à primeira instância, para proceder ao saneamento da causa, à sua instrução e posterior julgamento de facto e de direito, decidindo do mérito da causa se nada mais obstar, em obediência ao legal formalismo da sentença.

Custas pela Recorrida.

Registe e Notifique.

(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Pedro Marchão Marques)

(Helena Canelas)