Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:932/08.8 BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:REMUNERAÇÕES CATEGORIA A
VÍNCULO EM INFRAESTRUTURA NATO
ISENÇÃO 35.º DO EBF
REMUNERAÇÕES EM REGIME DE ADIANTAMENTO
Sumário:I-A atribuição do benefício fiscal constante do artigo 35.º do EBF implica que o beneficiário da isenção seja membro do quadro de pessoal do respetivo serviço da organização estrangeira ou internacional, que a isenção resulte da aplicação de uma norma ou tratado de direito internacional ou de um princípio de reciprocidade entre Estados e que a remuneração tenha sido auferida exclusivamente no âmbito deste mencionado circunstancialismo.
II-Inexistindo, por um lado, qualquer vínculo com a Nato, na medida em que o mesmo não integra o seu quadro de pessoal, prestando apenas serviços para uma infraestrutura Nato, a isso não obstando, o pagamento das remunerações em regime de adiantamento e ulterior reembolso, e por outro lado, qualquer norma internacional a consagrar essa isenção, não se encontram verificados os pressupostos para concessão do benefício fiscal requerido.
III-Um dos corolários do principio da boa-fé consiste no principio da proteção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança, contudo, apenas quando se trata de uma confiança legítima poderemos reconduzir a tutela da confiança a um corolário da boa fé.
Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

E. S. E M. B., vieram interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e fiscal de leiria, que julgou a impugnação judicial, deduzida contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS), e respetivos Juros Compensatórios (JC) respeitantes aos anos de 2004 e 2006, improcedente quanto ao pedido de anulação do imposto e procedente quanto ao pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, nº1, alínea a), da LGT.


***

O Recorrente veio apresentar alegações aperfeiçoadas, formulando as conclusões que infra se reproduzem:

1 - Na Sentença recorrida e na parte em que julgou improcedente a impugnação apresentada pelos Impugnantes/Recorrentes quanto ao pedido de anulação dos impostos, procedeu-se a uma errada selecção e apreciação da matéria de facto e, nela, fez-se um julgamento incorrecto de pontos essenciais da matéria de facto que determinou o incorrecto julgamento do pedido de anulação da$ liquidações dos impostos e, consequentemente, a prolação de uma decisão de direito errada e,

também ela, profundamente injusta,

Vejamos:

2 - Face ao alegado nos artigos 27°, 29°, 30° e 31° da Petição Inicial de Impugnação Judicial apresentada pelos Impugnantes, conjugado com os instrumentos legais para que remeteram (o Despacho Ministerial n.° 83, de 19 de Agosto de 1964; o Decreto-Lei n.° 44.894, de 21 de Fevereiro de 1963, em particular, o seu art.° 1°; e o Despacho do Ministro da Defesa Nacional, de 7 de Junho de 1963) e, ainda, de acordo com os elementos constantes dos autos, impunha-se ao Tribunal a quo dar, também como provados, os seguintes factos essenciais para a boa decisão da causa:

i) Desde 6 de Maio de 1965 que Depósito de Munições NATO de Lisboa é uma Infraestrutura NATO;

ii) As remunerações auferidas pelo Recorrente/lmpugnante marido decorrentes do serviço que este presta àquela Infraestrutura são suportadas, na íntegra, pelos fundos próprios da NATO;

iii) As despesas resultantes da manutenção e funcionamento das Infraestruturas NATO (onde se incluem as remunerações dos seus funcionários) são encargos da NATO;

iv) O Estado Português (através da Marinha de Guerra Portuguesa - Ministério da Defesa Nacional) serve de mero intermediário no adiantamento do pagamento das remunerações, sendo depois reembolsado pela NATO.

3 - Factos estes que, ao abrigo do disposto no art.° 712° do C.P.C. (aplicável ex vi art.° 281°do C.P.P.T), deverão Vossas Excelências considerar como provados.

Corrigida a matéria de facto considerada como provada e essencial (para a boa decisão da causa, resulta que

iii) as remunerações por aquele auferidas pelo trabalho prestado à IDMNL são encargo da NATO; e

iv) os valores de € 27.737,69 e € 29.998,36 declarados pelos Recorrentes/ Impugnantes nos Anexos H referentes aos anos de, respectivamente, 2004 e 2006 dizem respeito, exclusivamente, a rendimentos de trabalha prestado pelo Recorrente/lmpugnante marido à NATO.

O que, como a seguir se demonstrará, impunham (e impõem) uma decisão diferente da contida na Sentença recorrida.

Assim:

6 - A NATO foi criada pelo Tratado do Atlântico Norte, assinado em Washington, em 4 de Abril de 1949.

Para além deste Tratado e em complemento, foram celebradas as seguintes as Convenções e protocolos de âmbito mais restrito:

i) Convenção de Londres - Convenção entre Estados, assinada de 19 de Junho de 1951, relativa ao estatuto das suas forças armadas;

ii) Convenção de Ottawa-Convenção sobre o estatuto da organização, representantes nacionais e pessoal internacional, assinada em 30 de Setembro de 1951;

e iii) Protocolo de Paris - Protocolo sobre o estatuto de quartéis-generais militares internacionais, assinado em 28 de Agosto de 1952.

7- Em qualquer um destes três Tratados (verdadeiros Tratados de direito Internacional, porquanto foram sujeitos quer a aprovação da Câmara Representativa, quer a ratificação do Presidente da República e, ainda, a publicação no Diário da República de 8 de Agosto de 1955), existe norma de isenção tributária.”

A saber:

Estipula o n.° 1 do art.° X da Convenção de Londres que “os membros de uma força ou de um elemento civil serão isentos, no Estado local, de qualquer imposto sobre os vencimentos e emolumentos que lhes sejam pagos, naquela qualidade, pelo Estado de origem.

Por seu turno, o primeiro parágrafo do art.° 19° da Convenção de Ottawa determina que os funcionários da NATO “serão isentos de impostos sobre os vencimentos e emolumentos que lhes forem pagos pela Organização, na qualidade de funcionários desta”.

E, nos termos do segundo parágrafo do mesmo art.° 19°, "um Estado membro e o Conselho, actuando em nome da Organização, poderão concluir acordos que permitam àquele Estado recrutar e afectar à Organização os seus próprios nacionais, que devem fazer parte do pessoal internacional desta”.

Por último, o Protocolo de Paris estabelece no seu art.° 7.º, n.° 1, que "a isenção de impostos concedida no artigo X da Convenção aos membros de uma força ou de um elemento civil no que respeita aos seus vencimentos e emolumentos aplica-se, no caso do pessoal dos Quartéis-Generais Interaliados abrangidos pelas definições dadas nos parágrafos 1, (a) e (b), (i) do artigo 3 do presente Protocolo, aos vencimentos e emolumentos que lhes são pagos nessa qualidade pela força armada a que pertencem ou pela qual são empregados, com a reserva todavia de que a isenção concedida em Virtude deste parágrafo aos referidos membros ou empregados hão se aplica aò imposto cobrado pelo país cuja nacionalidade têm.”

E,

Ao nível do direito interno português, o art.° 35°. n.° 1. al. b). do Estatuto dos Benefícios Fiscais (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 198/2001, de 3 de Julho, e pela Lei n.° 109-B/2001, de 27 de Dezembro) estipula que o pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade, fica isento de IRS, nos termos do direito internacional aplicável.

Resulta, assim, que são pressupostos da isenção em apreço, apenas e só. os seguintes:

i) a isenção estar prevista em direito internacional aplicável ou haver reciprocidade; ii) tratar-se de membro do quadro de pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais; e iii) as remunerações serem auferidas nessa qualidade.

9 - Pressupostos que, no caso dos autos, estão reunidos.

O que significa que

10-O Recorrente/lmpugnante marido adquiriu o direito à isenção em 1 de Novembro de 1985 (data em que passou a integrar os quadros de pessoal civil da Infraestrutura NATO).

Sendo que

11 A conversão da isenção prevista no art.° 1 do Decreto-Lei r.° 45.843, de 1 de Agosto de 1964, operada pela al. b) do n.° 1 do art.° 2o do Decreto- -Lei n.° 215/89, de 1 de Julho, é suficiente para que as remunerações auferidas pelo Recorrente/lmpugnante marido por trabalho prestado à NATO estejam isentas de IRS. Por tudo isto,

12- Não restam quaisquer dúvidas que, tendo o Recorrente/lmpugnante marido adquirido, como adquiriu, o direito à isenção em 1 de Novembro de 1985 (data dm que passou a integrar o quadro de pessoal civil da Infraestrutura NATO), este direito manteve-se e mantém-se ainda em vigor.

Impondo-se, assim, como necessária, a conclusão de que

13 - Os rendimentos do Recorrente/lmpugnante marido auferidos enquanto membro do quadro de pessoal civil do Depósito de Munições NATO de Lisboa não estavam, nem estão, sujeitos a tributação de IRS, sendo este benefício fiscal automático, porquanto resulta directa e imediatamente da lei (art.ºs X da Convenção de Londres, 19° da Convenção de Ottawa, 1o do Decreto-Lei n.° 45.843, de 1 de Agosto de 1964, e 35°, n.° 1, al. b), do EBF), não carecendo, por isso, de actos de reconhecimento da isenção por parte da Administração Fiscal (art.º 4º n.° 1, do EBF, e art.° 65°, n.° 1, da LGT, a contrario).

O que significa que,

14 - Ao não se considerar, nas liquidações sub judice, a isenção legal, está-se a impor aos Recorrentes/lmpugnantes o pagamento de um imposto ilegal, violando, assim:

- o art.º X da Convenção de Londres;

- o art.° 19° da Convenção de Ottawa

- o art.° 8° da Constituição da República Portuguesa;

- o art.° 1.º do Decreto-Lei n.° 45.843, de 1 de Agosto de 1964;

- o art.° 2°, n.° 1, al. b), e n.° 2o do Decreto-Lei n.° 215/89 de 1 de Julho; e

- o art.° 35° do EBF (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 198/2001, de 3 de Julho, e pela Lei n.° 109-B/2001, de 27 de Dezembro),

15 - Porque violadoras de uma norma de incidência tributária (no caso, norma de incidência negativa, uma vez que os rendimentos auferidos pelo Recorrente/lmpugnante marido e pagos pela NATO por trabalho por aquele prestado à Infraestrutura Nato não estão sujeitos a tributação de IRS), as liquidações de IRS em causa nos autos deviam ter sido anuladas pelo Tribunal a quo e, consequentemente, as compensações que lhes seguiram.

Termos em que

Deverão Vossas Excelências revogar a douta Sentença recorrida, procedendo-se à sua substituição por Acórdão que julgue totalmente procedente o pedido formulado na Petição Inicial de Impugnação Judicial e, assim, expressamente reconheça e declare a existência de isenção de IRS e, em consequência, anule as liquidações de IRS impugnadas.”


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A Recorrida, devidamente notificada para o efeito, optou por não apresentar contra-alegações.

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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“II FUNDAMENTOS DE FACTO.

1. O impugnante marido desempenha funções com Técnico Especialista Principal correspondente à Infraestrutura Depósito de Munições Nato de Lisboa – Serviço de Armas Navais (fls. 15 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Tomou posse em 7/10/1985

2. Em 15/3/2005, os impugnantes apresentaram a declaração mod. 3 de IRS referente ao ano de 2004 (fls. 16 e segs. cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. E declararam no anexo H a quantia de € 27.737,69 referente ao mesmo ano, no quadro 402 «Remunerações do pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais – Art.º 35º n.º 1 alínea b) do EBF» (fls. 18 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

b. Declararam a importância de € 5.963,58 correspondente à retenção efectuada na fonte nos vencimentos pagos ao impugnante marido.

3. Estes rendimentos foram englobados para determinação da taxa, dando origem ao reembolso de € 5.139,70 (fls. 48 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. A transferência ocorreu no dia 21/4/2008 (fls. 48 cujo conteúdo se dá por reproduzido)

4. Em 13 de Março de 2007 os impugnantes apresentaram declaração mod. 3 de IRS referente e anexos A e H, referente a 2006 (fls. 20 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Declararam no anexo H a quantia de € 29.998,36 referente ao mesmo ano, no quadro 402 (fls. 22 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

b. E indicaram a importância de € 6.191,94 correspondente à retenção na fonte efectuada nos vencimentos mensais do impugnante marido durante o ano de 2006.

5. Estes rendimentos foram englobados para determinação da taxa dando origem a reembolso de € 1.737,63 (fls. 51 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. A transferência processou-se no dia 14/4/2008.

6. No dia 6 de Fevereiro de 2008, os impugnantes foram notificados do Projecto de Despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Tomar de 1 de Fevereiro e da informação que lhe serviu de base (fls. 46 e 47 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

7. Os impugnantes eram convidados apresentar declaração de substituição modelo 3 de IRS para os anos de 2004, 2005 e 2006, retirando o rendimento declarado no anexo H e inscrevendo-o no anexo A, no prazo de 15 dias (fls. 46 cujo con-teúdo se dá por reproduzido).

8. Os impugnantes exerceram o direito de audição, defendendo que por o impugnante marido pertencer ao quadro de pessoal civil de uma infraestrutura Nato, aqueles rendimentos estão isentos de tributação (fls. 30 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

9. Por despacho de 4/3/2008 foi ordenada a correcção proposta (fls. 44 e 45 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

10. O que deu origem às liquidações impugnadas.

11. Pelo chefe do Serviço Administrativo do Depósito de Munições da Nato de Lisboa foi emitida declaração, datada de 18/5/1993, segundo a qual «…os abonos pagos por esta infraestrutura Nato ao Técnico Principal E. S. estão isentos do IRS…» (fls. 82 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

12. O Chefe do Serviço Adm. e Financeiro do Depósito de Munições da Nato declarou, em 10/12/2007, que o código informático de unidade 3847-DMNL-SAN constante dos boletins de vencimento mensais e Declaração Anual de Rendimentos do 11004500 – Técnico Especialista Principal – E. S. – corresponde à Infraestrutura Depósito de Munições Nato de Lisboa - Serviço de Armas Navais (fls. 81 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

13. O Director do Depósito de Munições Nato de Lisboa declarou, em 6/12/2007, que o impugnante «presta serviço nesta Infraestrutura Nato (Depósito de Muni-ções NATO de Lisboa) desde 24 de Maio de 1984. (Fls. 41 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

14. Com data de 18 de Maio de 1993 o Chefe do Serviço Administrativo do Depósito de Munições Nato de Lisboa declarou «…os abonos pagos por esta infraestrutura Nato ao Técnico Principal, E. S., estão isentos de IRS…» (fls. 33 cujo conteúdo se dá por reproduzido)

15. Os vencimentos do impugnante marido são processados e pagos pelo Ministério da Defesa Nacional (fls. 36 e segs. cujo conteúdo se dá por reproduzido).


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Com interesse para a decisão da causa nada mais se provou.”


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Ficou, igualmente, consignado que “a convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, referidos nos «factos provados» com remissão para as folhas do processo onde se encontram.”

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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

16. A 7 de junho de 1963, foi proferido Despacho do Ministro da Defesa Nacional, referente à Comissão da Manutenção de Infraestruturas NATO, do qual se extrata na parte que para os autos releva, designadamente, o seguinte:

(…)

(…)

(…)

(…)

(cfr. doc. 22 junto à p.i, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

17. A 19 de agosto de 1964, foi emitido Despacho Ministerial nº 83, referente às normas relativas à criação e funcionamento da Comissão Executiva de Manutenção de Infraestruturas Nato da Armada, do qual consta, designadamente, o seguinte:

(…)


(…)

(…)


(cfr. doc. 21 junto à p.i, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, os Recorrentes não se conformam com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, na parte que julgou improcedente o pedido de anulação das liquidações de IRS, e respetivos Juros, respeitantes aos anos de 2004 e 2006.

Ab initio, importa ter presente que, em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a decisão recorrida padece de:

i. Erro de julgamento de facto, na medida em que não foi ponderada factualidade alegada e suportada por prova documental, cujo aditamento por complementação requer;

ii. Erro de julgamento, por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito,

a. na medida em que os rendimentos auferidos pelo Recorrente, decorrentes do exercício de funções como especialista principal de munições da Nato em Lisboa, estão isentos de tributação em sede de IRS, ao abrigo do disposto no artigo 35.º do EBF e de direito internacional vigente.

b. Porquanto a manutenção do ato de liquidação implica a violação de direitos adquiridos.

Apreciando.

Comecemos pelo erro de julgamento de facto.

Para o efeito, importa começar por aferir se o Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida. (1)

Mais importa ter presente que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.
Com efeito,“[q]uestão de facto é (..) tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior, bem como à averiguação do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas” e que “(..) além dos factos reais e dos factos externos, a doutrina também considera matéria de facto os factos internos, isto é, aqueles que respeitam à vida psíquica e sensorial do indivíduo, e os factos hipotéticos, ou seja, os que se referem a ocorrências virtuais”(2)


“As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado."(3)

Feitos estes considerandos iniciais, verifica-se que, in casu, os Recorrentes requerem alterações ao probatório, as quais se consubstanciam em aditamentos por complementação, por reporte ao meio probatório que descrevem, logo procedem à impugnação da matéria de facto decorrente da prova documental, cumprindo os aludidos requisitos legais.

No entanto, compulsado o teor dos quatro factos elencados pelos Recorrentes, verifica-se, desde logo, que os mesmos revestem caráter conclusivo, sendo, portanto, insuscetíveis de integrar o probatório.

De todo o modo sempre se dirá que, as asserções fáticas cujo aditamento os Recorrentes reclamam, estão coadunadas com a função, efetivamente, exercida pelo Recorrente, qualificação do organismo visado enquanto infraestrutura Nato, e o concreto pagamento das remunerações, sendo certo que o probatório já contempla, designadamente, nos pontos 1, 12, 13 e 15, realidades respeitantes a essas ocorrências, não carecendo, portanto, de qualquer aditamento adicional ou mesmo substituição.

Por outro lado, quanto ao concreto adiantamento e ulterior reembolso, e ainda que o probatório não contemple uma expressa referência a essa realidade de facto a verdade é que face aos aditamentos oficiosos realizados por este Tribunal ad quem ao abrigo dos seus poderes de cognição, os mesmos satisfazem essa realidade, resultando, por isso, prejudicada qualquer materialização atinente ao efeito.


***


Aqui chegados, estabilizada a matéria de facto, importa, então, apreciar o erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito.

O Recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na medida em que sendo o Depósito de Munições da NATO em Lisboa, uma Infraestrutura NATO, o que ocorre desde 6 de maio de 1965, e tendo presente, outrossim, que o Recorrente pertence a esse quadro desde 1 de novembro de 1985, auferindo remunerações, justamente, por esse trabalho prestado, sendo as mesmas encargo da NATO, tal implica que as mesmas se encontrem isentas em ordem ao consignado no artigo do 35.°, n.° 1, al. b), do EBF.

Mais advoga que, tal isenção deriva, igualmente, da Convenção de Londres, da Convenção de Ottawa, e do Protocolo de Paris, sendo que o direito internacional não só vigora no ordenamento jurídico português, como tem primazia sobre a legislação ordinária interna.

Sustenta, a final, que não pode manter-se esse entendimento na medida que estão em causa direitos adquiridos, sendo certo que o princípio da boa fé implica que os direitos adquiridos não podem ser suprimidos, ainda que por lei posterior.

O Tribunal a quo, por seu turno, esteou a improcedência, convocando, designadamente, a seguinte fundamentação jurídica:

“O impugnante foi recrutado e afecto às funções que desempenha pelo Estado português, e não é remunerado pela Nato. Como tal, não está abrangido pela norma de isenção prevista no Art.º 19 da Convenção de Otawa.

Por outro lado, o Art.º 35 do EBF, correspondente ao actual art.º 37 do mesmo diploma legal, isentava de IRS, nos termos do direito internacional aplicável, ou desde que haja reciprocidade b) O pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade.

O impugnante não está ao serviço de organização internacional, está ao serviço de Portugal numa organização internacional, o que é diferente.

Deve notar-se, a propósito, que as declarações juntas pelo impugnante referentes à prestação de serviços nunca declaram que o impugnante pertence aos quadros da Nato, mas sim que ele presta serviço numa infraestrutura da Nato. Ora, prestar serviço numa organização é uma coisa; pertencer aos quadros de pessoal dessa organização é outra.

E só neste último caso o vencimento do impugnante estaria isento de tributação, pois que «O pressuposto da isenção é que o beneficiário seja membro do quadro de pessoal do respectivo serviço da organização estrangeira …».

Os rendimentos auferidos pelo impugnante marido respeitam a trabalho prestado a Portugal, numa organização internacional, sujeitos a tributação.”

Apreciando.


Comecemos, então, por convocar o regime jurídico que para os autos releva traçando os inerentes considerandos de direito reputados de relevo.


De harmonia com o disposto no artigo 2.º do CIRS, com a epígrafe de “Rendimentos da Categoria A”:

“1 - Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:

a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;

b) Trabalho prestado ao abrigo de contrato de aquisição de serviços ou outro de idêntica natureza, sob a autoridade e a direção da pessoa ou entidade que ocupa a posição de sujeito ativo na relação jurídica dele resultante;

c) Exercício de função, serviço ou cargo públicos; (…)

2 - As remunerações referidas no número anterior compreendem, designadamente, ordenados, salários, vencimentos, gratificações, percentagens, comissões, participações, subsídios ou prémios, senhas de presença, emolumentos, participações em coimas ou multas e outras remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.”

Mais dispõe o artigo 18.º do CIRS que:

“1 - Consideram-se obtidos em território português:

a) Os rendimentos do trabalho dependente decorrentes de atividades nele exercidas, ou quando tais rendimentos sejam devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento.”

De convocar, para o efeito, o artigo 35.º do EBF, o qual sob a epígrafe de “Isenção do pessoal das missões diplomáticas e consulares e das organizações estrangeiras ou internacionais” preceitua que:

“1 - Fica isento de IRS, nos termos do direito internacional aplicável ou desde que haja reciprocidade:

a) O pessoal das missões diplomáticas e consulares, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade;

b) O pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade.

2 - As isenções previstas no número anterior não abrangem, designadamente, os membros do pessoal administrativo, técnico, de serviço e equiparados, das missões diplomáticas e consulares, quando sejam residentes em território português e não se verifique a existência de reciprocidade.

3 - Os rendimentos isentos nos termos do nº 1 são obrigatoriamente englobados para efeito de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.

4 - O reconhecimento relativo ao preenchimento dos requisitos de isenção, quando necessário, é da competência do Ministro das Finanças.”

Dimanando, igualmente, do artigo 19.º da Convenção de Ottawa que: “os funcionários da Organização compreendidos no artigo 17 serão isentos de imposto sobre os vencimentos e emolumentos que lhes forem pagos pela Organização na qualidade de funcionários desta. Todavia, um Estado membro e o Conselho, atuando em nome da Organização, poderão concluir acordos que permitam àquele estado recrutar e afetar à Organização os seus próprios nacionais, que devem fazer parte do pessoal internacional desta, com exceção, se esse membro o desejar, de qualquer nacional que não resida no seu território. O referido Estado membro pagará, em tal hipótese, os salários e emolumentos das pessoas em questão pelos seus próprios fundos, conforme tabela que determinará. Estes salários e emolumentos poderão ser objecto de imposto pelo Estado membro em questão, mas não poderão sê-lo por outro Estado Membro.”


Por fim, há que chamar à colação o disposto no artigo 1.º do Decreto Lei nº 44894, de 21 de fevereiro de 1963, o qual estatui que:


“As despesas de estabelecimento, manutenção, funcionamento e fiscalização das infraestruturas N.A.T.O. em território nacional serão satisfeitas por meio de adiantamentos de conta de verba especialmente inscrita para esse fim em despesa extraordinária.

§ único. As despesas referidas no corpo deste artigo constituem encargo dos países utentes, devendo os adiantamentos ser reembolsados por esses países, de conformidade com a fórmula de comparticipação que estiver estabelecida para cada uma das infraestruturas.”

Ora, uma vez concretizado o respetivo regime normativo atentemos, então, no que resulta do recorte probatório dos autos.

Da factualidade assente resulta que:

-O Impugnante tomou posse como Técnico de 1ª Classe no Depósito de Munições da NATO de Lisboa em 1985, aí exercendo, à data da prática dos factos tributários, essas funções.

-O Depósito de Munições em Lisboa é uma infraestrutura da NATO.

-Os vencimentos do Recorrente são processados e pagos pelo Ministério da Defesa Nacional, suportados, contudo, em regime de adiantamento, com ulterior reembolso.

Ora, do exposto flui que inexiste qualquer vínculo com a NATO, na medida em que o mesmo não integra o seu quadro de pessoal, prestando apenas serviços para uma infraestrutura Nato, ou seja, foi recrutado e afeto à aludida infraestrutura pelo Estado Português.

Dir-se-á, portanto, que o mesmo não está ao serviço de uma Organização Internacional mas sim do Estado Português numa Organização Internacional, a isso não obstando, como visto, o pagamento, em regime de adiantamento e ulterior reembolso, das verbas em questão.

Logo, tal circunstancialismo de facto não permite subsumir a questão no artigo 35.º do EBF, na medida em que, do citado normativo dimanam, desde logo, como pressupostos que o beneficiário da isenção integre o quadro de pessoal da organização estrangeira ou internacional e que a mesma resulte da aplicação de uma norma ou tratado internacional ou de um princípio de reciprocidade entre Estado, o que não sucede no caso vertente.

Sobre o âmbito e extensão do artigo 42.º do EBF (à data 35.º do EBF) doutrinou o Aresto do TCAS, proferido no processo nº 07298/02, de 04.10.2005, no seu sumário, que:

“A atribuição do benefício fiscal constante do art. 42º do EBF implica que o beneficiário da isenção seja membro do quadro de pessoal do respetivo serviço da organização estrangeira ou internacional, que a isenção resulte da aplicação de uma norma ou tratado de direito internacional ou de um princípio de reciprocidade entre Estados e que a remuneração tenha sido auferida exclusivamente no âmbito deste mencionado circunstancialismo.”

Ora, tendo por base o quadro normativo supra evidenciado e o recorte probatório dos autos, ter-se-á de concluir que pese embora assista razão ao Recorrente quanto à esfera de pagamento e imputabilidade do vencimento, a verdade é que ainda assim não se encontram reunidos todos os pressupostos constantes no aludido normativo para que possa ser concedida a isenção em causa.

De relevar, outrossim, que não assiste razão ao Recorrente quando convoca o Direito Internacional, designadamente, o artigo 19.º da Convenção de Ottawa, na medida em que este tem como premissa base que o mesmo tenha vínculo com a Organização Internacional, e que os vencimentos sejam, justamente, pagos nessa qualidade. Dele dimanando, outrossim, que se for um Estado membro que recruta e afeta à organização os seus próprios nacionais “estes salários poderão ser objeto de imposto pelo Estado membro em questão.” No mesmo sentido se terá de ajuizar quanto ao Protocolo de Paris e Convenção de Londres, cujo âmbito objetivo não congrega a realidade de facto em contenda.

Este foi, justamente, o sentido da decisão proferida por este TCA Sul no âmbito do processo nº 930/08 (05554/12, de 03 de julho de 2012(4)) com total identidade fático-jurídico com os presentes autos, respeitando ao mesmo Impugnante, ao mesmo tributo, diferindo apenas quanto ao ano do imposto, razão pela qual, tendo em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito, em conformidade com o preceituado no artigo 8.º, nº 3 do Código Civil, eximimo-nos de expender novas considerações, reproduzindo aqui o raciocínio jurídico vertido no citado Acórdão, o qual integra a questão em toda a sua extensão, apartando, assim, todos os argumentos vertidos nas alegações de recurso, ora, em análise:

“ (…) de acordo com os elementos presentes nos autos, é possível descortinar que, se é certo que os vencimentos são processados e pagos pelo ministério da Defesa Nacional (…) não é menos certo que tais importâncias são suportadas em regime de adiantamento, sendo depois reembolsados.

Por outro lado, tendo em atenção a norma em causa, é ponto assente que é a própria norma que prevê a isenção esteja prevista em instrumento de direito internacional ou por aplicação do princípio da reciprocidade, sendo que, como se aponta no Ac. deste Tribunal de 15-07-2009, Proc. N.º 02972/09, www.dgsi.pt “ não se vê como ultrapassar esta expressa determinação da lei que terá o sentido útil e o alcance de dar à norma nacional, agora em análise, a natureza de norma de concretização da isenção estabelecida pelo direito internacional ou pelo princípio da reciprocidade.(…)

O benefício fiscal constante do art. 42º do EBF só é exequível se existir efectivamente direito internacional que preveja a isenção consignada ou por aplicação do princípio da reciprocidade acordado entre Estados e, nesta medida e porque a reciprocidade se coloca apenas ao nível de Estados, o pessoal das organizações estrangeiras ou internacionais apenas beneficiam da isenção se isso decorrer expressamente do direito internacional regularmente recebido na lei portuguesa.

Sucede que, como se decidiu, não existe qualquer norma de direito internacional a consagrar isenção de IRS relativamente ao pessoal da Nato, mesmo que aí se incluía o ora recorrente, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade, pelo que não reúne todos os pressupostos para poder beneficiar da isenção pretendida relativamente às remunerações auferidas (…)

Tal jurisprudência não é posta em causa pelos Recorrentes, que fazem apelo a três instrumentos jurídicos (Convenção de Londres, Convecção de Ottawa e Protocolo

de Paris), os quais não fornecem quaisquer elementos susceptíveis de suportar a tese dos Recorrentes, quer em função do que ficou dito a propósito do enquadramento da remuneração do recorrente marido (que afasta as normas apontadas relativas à Convenção de Londres e Protocolo de Paris quer perante a forma do seu enquadramento na referida infraestrutura (Convenção de Ottawa), na medida em que foi recrutado a afecto àquela Infraestrutura pelo Estado Português.”

De relevar, ainda neste âmbito, que a aludida jurisprudência tem apoio e encontra-se na linha do já decidido neste TCAS, no âmbito, designadamente, dos processos nºs 2806/99, de 20.02.2001, nº 7299/02, de 27.05.2003, 532/03, de 23.11.2004, 07298/02, de 04.10.2005 e 02972/09, de 15.07.2009.

Ora, face à fundamentação jurídica supra expendida, à qual aderimos, ter-se-á de concluir que não se encontram reunidos os pressupostos para que seja concedida a isenção em questão.

Uma última nota quanto à alegada violação dos direitos adquiridos para evidenciar que não se vislumbra, de todo, a aludida preterição, na medida em que inexiste qualquer direito que tenha sido ab initio adquirido, nem, tão-pouco, se pode falar em qualquer legítima expetativa jurídica que tenha sido conduzida e que permitisse inferir no sentido da verificação da aludida isenção e que pudesse, com isso, traduzir uma violação do princípio da boa fé.

De relevar, neste particular, que “a boa fé em sentido jurídico corresponde a uma válida fé, ou seja, a uma confiança válida aos olhos do direito. Incorpora, pois, o valor ético social da confiança. No entanto, apenas quando se trata de uma confiança legítima poderemos reconduzir a tutela da confiança a um corolário da boa fé". (5)

Neste âmbito importa chamar à colação o Aresto do STA, proferido no processo nº 01188/02, de 18 de junho de 2003, extratando-se o seu sumário, na parte que para os autos releva, como se transcreve:

“III-O princípio da boa fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico.

IV - Tal princípio apresenta-se como um dos limites da actividade discricionária da Administração.

V - Um dos corolários do principio da boa-fé consiste no principio da protecção da confiança legitima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança.

VI - A exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do principio da segurança jurídica, imanente ao principio do Estado de Direito.

VII - Contudo, a aplicação do principio da protecção da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se ter de estar em face de uma confiança "legítima" o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do principio da confiança quando este radique num acto anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade perceptível por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido principio.

VIII - Por outro lado, para que se possa, válida e relevantemente, invocar tal principio é necessário ainda que o interessado em causa não o pretenda alicerçar apenas, na sua mera convicção psicológica, antes se impondo a enunciação de sinais exteriores produzidos pela Administração suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde seja razoável ancorar a invocada confiança.

IX - As meras expectativas fácticas não são juridicamente tuteladas.

X - O cuidado e as precauções a exigir da parte que reivindica a protecção da sua boa-fé serão tanto maiores quanto mais avultados forem os investimentos feitos com base na confiança, já que se não pretende tutelar o "excesso de confiança".

Ademais, e como se decidiu no citado Acórdão deste TCAS que se tem vindo a acompanhar: “não existe qualquer situação de direitos adquiridos nos termos apontados pelos Recorrentes, pois que uma eventual leitura da lei, em termos favoráveis à situação do Recorrente marido não significa que esteja em causa a melhor leitura da lei, mas tão-só uma determinada aplicação da lei que, como se vê, não tem apoio (…)”.

Face a todo o exposto, conclui-se, assim, que não se encontram reunidos os pressupostos para que seja concedida a isenção em causa, pela que a sentença que assim o decidiu não merece a censura que lhe é endereçada, inexistindo, por conseguinte, a arguida violação dos normativos convocados e disposições constantes de Direito Internacional.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, e manter a decisão recorrida, com todas as legais consequências.
Custas pelos Recorrentes.

Registe. Notifique.


Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Patrícia Manuel Pires)

(Luísa Soares)

(Tânia Meireles da Cunha)









1)António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
2) Henrique Araújo: “A matéria de facto no processo civil”, publicado no site do Tribunal da Relação do Porto, acessível em www.trp.pt
3) Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de julho de 2018, proferido no processo nº 1193/16.1T8PRT.P1
4) No mesmo sentido da falta de verificação dos pressupostos da isenção, e numa situação em tudo idêntica à dos autos, se decidiu nos processos nºs 920/08, 1955/08, 687/10, 578/11 e 244/12, que correram termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, e todos com trânsito em julgado.
5) Rita Maria Martins Ferraz A Proteção da Confiança: elemento constitutivo do Estado de Direito-FDUP,p.31