Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1015/08.6BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:11/17/2022
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS PESSOAS COLETIVAS DE DIREITO PÚBLICO
Sumário:I - Ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre os recorrentes o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
II - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos e agentes assenta nos mesmos parâmetros do conceito civilístico da responsabilidade civil extracontratual, exigindo-se a verificação cumulativa dos pressupostos facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
T.... e C.... intentaram ação administrativa comum sob a forma ordinária contra Hospital de Santo André, EPE (entretanto substituído ope legis, na pendência dos autos, por Centro Hospitalar de Leiria, EPE), N.... e J...., peticionando a condenação dos réus a indemnizar os autores na quantia global de € 195.504,32, em sede de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, por danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos na sequência do parto do menor R...., no estabelecimento do primeiro réu.
Por sentença de 17/08/2021, o TAF de Leiria julgou totalmente improcedente a ação e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
Inconformados, os autores interpuseram recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“I – Ficaram provados, entre outros, os seguintes FACTOS PROVADOS:
1.18) – A 2ª autora permaneceu sob os cuidados diretos das enfermeiras especialistas, N...., 2ª ré, e A....., chamada.
1.19) – O trabalho de parto decorreu sem que as enfermeiras referidas em 1.18) sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica.
1.27) – Durante o período expulsivo, já com o pólo cefálico libertado, surgiu, de modo imprevisível, o encravamento anómalo do diâmetro biacromial, verificando-se uma dificuldade na libertação do ombro direito do feto, qualificável como distócia de ombros.
1.28) – Perante tal dificuldade, a 2ª ré realizou de imediato uma única manobra de libertação do ombro, por rotação, através da aplicação digital na parte de trás do ombro direito, ajudando a fazer a rotação do diâmetro biacromial do diâmetro antero-posterior da pelve para o diâmetro oblíquo, onde o espaço para a progressão do feto é maior.
1.29) – A manobra referida em 1.28) surge identificada na literatura médica como “Manobra de Rubin”, como sendo utilizada para ultrapassar situações de distócia de ombros.
1.31) – Em caso de aplicação sem sucesso da manobra referida em 1.28) será necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro.
1.33) – A manobra referida em 1.29) foi executada com sucesso.
II – De entre os FACTOS NÃO PROVADOS resulta, além do mais, que:
2.3) Face à verificação de uma distócia de ombros, a 2ª ré deveria ter de imediato requerido a intervenção de um médico.
2.4) A manobra referida em 1.28) e 1.29) foi deficientemente realizada pela 2ª ré.
2.5) A lesão referida em 1.38) resultou:
a. De compressão do feto numa posição anómala gerada antes do trabalho de parto ou durante o primeiro estádio do parto;
b. Da opção de não realização de parto por cesariana;
c. Da realização de forma deficiente da manobra referida em 1.28) e 1.29).
III – A enfermeira parteira e co-Ré N.... afirmou que, logo que se apercebeu da dificuldade em extrair os ombros do A. R....., já com o pólo cefálico deste no exterior, chamou o médico obstetra, tal como é procedimento, uma vez que a referida situação de distócia de ombros com que se deparou constitui uma emergência obstétrica.
IV – Porém, quando questionada, não soube dizer qual o médico, de entre os que se encontravam de serviço nesse dia, alegando não se recordar porque já havia passado muito tempo - mais exactamente, sete anos.
V – Mais acrescentou que optou pela execução da manobra de Rubin, de entre as várias possíveis para solucionar o problema, tendo-a realizado sem a presença de nenhum médico obstetra na sala de partos,
VI – o que fez “rapidamente e com sucesso” – expressão repetida por si até à exaustão(!) –, pese embora nada tenha ficado registado no Registo Clínico da co-A. C..... uma vez se tratou de uma situação crítica e que “terá escapado”!, segundo justificação da própria co-Ré N......
VII – A co-Ré N....., além de conhecer outras manobras alternativas à aplicada, não desconhecia que, da realização da manobra de Rubin, podem advir lesões para o recém nascido, como sejam uma distensão muscular, a fractura da clavícula, do úmero ou a lesão do plexo braquial.
VIII – Todos os RR., nos seus depoimentos, confirmaram que a distócia de ombros se trata de uma emergência obstétrica, o que exige, não só por definição, mas pelo que foi referido ser regra de procedimento, a presença de um médico obstetra.
IX – Sucede que, como também afirmado pela co-Ré N....., esta não se apercebeu da presença de nenhum médico obstetra naquela situação, o que foi corroborado pelos médicos de serviço à data, dizendo todos que não tinham sido chamados para aquele evento e, por isso, não tinham intervindo nele.
X – Apesar de a co-Ré N..... ter dito que chamara prontamente um obstetra assim que se apercebeu da situação de distócia, refugiando-se na falta de memória para não o nomear, certo é que, em sede de Processo de Averiguações nº 3/2008, pag. 31, junto como Doc. 1 da Contestação, passado pouco mais de um ano dos factos, ficou a constar que
Perante a resposta foi confrontada com a dificuldade de libertação do ombro direito. Iniciei de imediato tal como em outras ocasiões, a técnica ou manobra para deliberar o ombro anterior direito: aplicação digital na parte de trás do ombro direito ajudando a fazer a rotação do diâmetro biacromial do diâmetro antro-posterior da pelve para o diâmetro oblíquo. Esta manobra foi efectuada sem qualquer dificuldade e resultou eficazmente, razão pela qual não foi chamado nenhum dos Obstetras de serviço, (...).” (negrito nosso)
XII – Aliás, a instâncias da sua Il. Mandatária, a co-Ré N..... disse basear o seu depoimento naquilo que são os procedimentos habituais e no que ficara registado. Ora, se o que é procedimento habitual estivesse decalcado na realidade, tornar-se-iam redundantes não só este como todos os infindáveis processos que se amontoam pelos tribunais fora!
XIII – De facto, a co-Ré N..... tão depressa disse que não se lembrava do caso como, imediatamente a seguir, garantia ter a certeza absoluta de ter chamado um obstetra.
XIV – Também das declarações do co-A. T....., que assistiu ao parto do filho, deriva que, apesar da complicação surgida, as únicas profissionais presentes eram as co-RR. N..... e A....., nunca tendo sido chamado nenhum obstetra.
XV – Deste modo, no modesto entender dos AA. recorrentes, deveria o Mm.º Juiz a quo ter dado como provado que a distócia de ombros é uma emergência médica, a que deve acorrer um obstetra, o que, no caso em apreço, não aconteceu por a co-Ré N..... não o ter chamado.
XVI – Na verdade, os co-RR. A....., G..... e B......, médicos obstetras de serviço na data do parto, atestaram, em julgamento, que não foram chamados para intervir no caso dos autos, tendo conhecimento do mesmo em virtude de terem consultado o processo posteriormente.
XVII – No Relatório Pericial de Obstetrícia junto a fls...., pode ler-se que
5 – Deparando-se o/a parteiro/a com uma situação de distócia de ombros que determina a dificuldade de extracção do feto, que manobras de[ve] aquele adoptar?
Resposta: Existem diversas manobras possíveis, mais simples e mais complexas, a aplicar sucessivamente de acordo com o grau de dificuldade da extracção. É sempre essencial pedir ajuda de um obstetra (se disponível) ou de outro enfermeiro, sem prejuízo de que as manobras devem iniciar-se de imediato. (negrito nosso).
XVIII – Pelo exposto, mal andou o Mm.º Juiz a quo ao dar como provados os factos
1.19) – O trabalho de parto decorreu sem que as enfermeiras referidas em 1.18) sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica.
1.31) – Em caso de aplicação sem sucesso da manobra referida em 1.28) será necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro.
XIX – Com efeito, sendo a R. N..... enfermeira especialista, e como a própria o afirmou, sabia que lhe competia chamar um médico uma vez que a intervenção deste é necessária independentemente do sucesso da manobra iniciada, como resulta do Relatório Pericial aludido supra.
XX - Mais acresce que dos registos clínicos juntos com a Contestação do co-R. Hospital não consta qualquer registo da ida de um obstetra à sala de partos – como também referido pela co-Ré N..... –, nem que tenha sido chamado e não comparecido, como aventado pelo co-R. C.......
XXI – Verificando-se ter existido uma emergência obstétrica, consubstanciada na distócia de ombros, na qual não foi interveniente um obstetra, como os procedimentos e as boas práticas exigem, como vimos, estamos perante uma omissão, da parte da R. N....., que condicionou o desenrolar do processo de parto.
XXII – Assim, tal omissão constitui uma violação das leges artis, verificando-se o requisito da ilicitude subjacente à responsabilidade civil extracontratual.
XXIII – Provado ficou, ainda, pelo depoimento dos co-RR. M...... e C......, que a manobra de extracção dos ombros adoptada pela co-Ré N..... não é isenta de riscos, nomeadamente o de provocar uma lesão do plexo braquial,
XXIV – muito embora outra manobra exista, passível de ser realizada nas condições reunidas no momento de parto, que não comportaria tantos riscos, qual seja a manobra de Roberts.
XXV – Definindo-se a distócia de ombros pelo conflito de espaço das as medidas daqueles com o da baciada mãe e traduzindo-se a manobra de Roberts na hiperflexão das coxas por forma a ampliar alguns diâmetros, tal manobra poderia, face às circunstâncias e características do caso concreto, ter sido aplicada, fosse como precedente ou alternativa à de Rubin, de molde a que a pressão exercida na manipulação do ombro não fosse tão grande a ponto de provocar a lesão plexo-braquial por arrancamento das raízes nervosas.
XXVI – De facto, quer os co-RR. médicos, quer a co-Ré C...... afirmaram ser possível a realização da manobra de Roberts pela enfermeira parteira, pela enfermeira pediatra e, eventualmente uma outra pessoa – no limite o co-A. T..... –, como, inclusivamente, por um só operador, como referiu o co-R. C.......
XXVII – Além do mais, foi referido pela co-Ré C......, também enfermeira parteira, que, se colocada perante uma situação semelhante à que ora se discute, optaria, em primeiro lugar, pela flexão das pernas pela parturiente, o que, no caso, estaria favorecido pela não administração de epidural à coA. C....., à semelhança do que foi dito pela co-Ré B.......
XXVIII – Mais uma vez, a co-R. N..... não adoptou a manobra mais adequada à situação com que se deparou, aplicando uma outra que implicou o exercício de pressão no ombro direito do feto, para proceder ao desencravamento, a ponto de lhe afectar as raízes nervosas e provocar uma lesão plexo-braquial.
XXIX – Pode, assim, dizer-se que, durante a extracção do feto pela co-R. N....., esta omitiu procedimentos e boas práticas a que estava obrigada - nomeadamente chamar o médico obstetra para resolução de uma emergência médica e iniciar uma manobra menos lesiva e agressiva para o bébé - com isso potenciando e causando a lesão plexo-braquial verificada.
XXX – Mal andou, por isso, o Mm.º Juiz a quo ao dar como provado que
1.31) – Em caso de aplicação sem sucesso da manobra referida em 1.28) será necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro.
como resulta, a contrario, do Relatório Pericial de Obstetrícia/Consulta Técnica constante dos autos a fls. ... e dos depoimentos supra.
XXXI – Do mesmo modo, não deveria o Tribunal recorrido ter dado como provado que
1.19) – O trabalho de parto decorreu sem que as enfermeiras referidas em 1.18) sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica.
nem, de forma simétrica, como não provado que
2.3) Face à verificação de uma distócia de ombros, a 2ª ré deveria ter de imediato requerido a intervenção de um médico.
XXXII – Saliente-se, uma vez mais, que, embora tenha sido afirmado e defendido pela co-Ré N....., que o médico obstetra foi chamado a ocorrer à situação de distócia em análise, certo é que a mesma co-Ré, em sede do Processo de Averiguações instaurado pelo co-R. Hospital – um ano após os factos – a mesma N..... foi peremptória ao afirmar que não havia chamado médico algum. XXXIII – Facto esse que também não consta de qualquer registo clínico (!) – nem que fosse pela negativa, isto é, que o médico não compareceu apesar de chamado –, também afirmado pela co-Ré N..... supra, e reforçado na própria Consulta Técnico-científica de fls. ... .
XXXIV - Deste modo, só pode acreditar-se que a lesão plexo-braquial do co-A. R..... deriva da manobra de desencravamento aplicada, sendo que esta foi realizada sem a presença e orientação de um obstetra, podia ter sido precedida pela execução da manobra de Roberts – como supra descrito – e é uma das causas de lesão do plexo em recém nascidos, como decorre dos Comentários Gerais da Consulta Técnico-científica de Obstetrícia, a fls. ..., para além de não ter ficado provada a verificação de qualquer outra das causas possíveis como infra se verá.
XXXV – O Mm.º Juiz a quo considerou também provado que a manobra de Rubin aplicada teve sucesso, importando, no entanto, esclarecer o que se entendeu, ao longo do processo, por “sucesso da manobra.
XXXVI – Com efeito, dos depoimentos de todos os co-RR. se infere que o juízo de “sucesso” da aplicação da manobra de Rubin ao caso em apreço apenas se atem à perspectiva obstétrica, isto é, de nascimento rápido, sem necessidade de reanimação, libertando o ombro, independentemente do que se tenha ou não com isso causado, ou seja, sem levar em linha de conta as lesões provocadas pela execução da mesma.
XXXVII – Nesta medida, só poderia ter-se dado como provado o facto de que a manobra de Rubin foi aplicada com sucesso pela co-Ré N..... na medida em que o A. R..... nasceu rapidamente e sem sinais de sofrimento tout court. Não podendo daí retirar-se que o alegado sucesso implica, necessariamente, que não se tenha causado nenhuma lesão com a aplicação da manobra executada.
XXXVIII – Aliás, a própria R. N..... admitiu, na sua Contestação, que a lesão do plexo braquial pode ser decorrência da manobra de extracção do ombro num caso de distócia de ombros.
XXXIX - Tendo ficado não provado que
2.5) A lesão referida em 1.38) resultou:
a. De compressão do feto numa posição anómala gerada antes do trabalho de parto ou durante o primeiro estádio do parto;
b. Da opção de não realização de parto por cesariana;
XL – é legítimo concluir que aquela, pela normalidade das coisas e pelo que foi afirmado em julgamento, segundo um critério de probabilidade prevalecente, derivou da manobra de extracção adoptada, em vez de outra possível e não comportando tantos riscos de lesão e sem que nela interviesse um médico obstetra, violando-se deste passo, o procedimento habitual referido, bem como o dever geral de conduta/de cuidado de agir sem prejudicar os outros.
XLI – Tanto assim é que o co-A. R..... se apresentava na melhor posição para nascer, no entendimento da co-Ré C.......
XLII – Pelo exposto, não deveria o Tribunal a quo ter dado como não provado que
2.4) A manobra referida em 1.28) e 1.29) foi deficientemente realizada pela 2ª ré.
2.5) A lesão referida em 1.38) resultou: c. Da realização de forma deficiente da manobra referida em 1.28) e 1.29).
XLIII – até porque, sendo o ombro posterior do feto o ombro direito, e tendo sido neste que se fez “aplicação digital na parte de trás do ombro direito ajudando a fazer a rotação do diâmetro biacromial do diâmetro antro-posterior da pelve para o diâmetro oblíquo”, deveria o Mm.º Juiz a quo ter considerado que a aludida manobra foi realizada deficientemente, causando a lesão das raízes nervosas do plexo à direita de que sofre o A. R......
XLIV – Aliás, no corpo da D. Sentença ora recorrida (pag. 40) se ler:
“É certo que as mencionadas manobras deram origem à lesão neonatal do plexo braquial esquerdo [direito] do 3º autor.”
XLV – Deste modo, estando os RR. obrigados a proporcionar os meios adequados aos cuidados médicos de saúde de que os utentes carecem, e demonstrado que ficou que -a distócia de ombros é uma emergência médica obstétrica -que exige a presença de um médico obstetra aquando da sua resolução e -existindo procedimentos precedentes ou alternativos que melhorem o conflito de espaços em que a distócia de ombros se traduz,
mal se entende que o Tribunal a quo não tenha considerado existir, no caso vertente, violação das leges artis, consubstanciadora da ilicitude da actuação dos RR.
XLVI – Por último, pode ainda ler-se na D. Sentença recorrida que:
Com efeito, as manobras em causa destinavam-se a retirar o bébé perante a dificuldade de extração – distócia de ombros –, sendo que, por um lado, tal dificuldade não resultou de qualquer ato das enfermeiras que realizaram o parto e, por outro lado, as mesmas não poderiam deixar de tomar as medidas necessárias para retirar o bébé, sob pena de colocar a sua vida em risco. Nada há a apontar de ilícito, portanto, nesta sede.
XLVII – Ora, no humilde entendimento dos Recorrentes, a questão em apreço nunca se prendeu com a dificuldade – leia-se distócia de ombros – ter sido provocada pelas enfermeiras, mas sim como estas (não) actuaram perante essa mesma dificuldade – que constitui uma emergência obstétrica – não tendo, nessa medida, agido com a diligência e dever de cuidado que, como vimos supra, se lhes impunham.
XLVIII – Nessa medida, verificou-se, no presente caso, uma omissão violadora das leges artis, conducente, no caso, à não disponibilização, pelos RR., dos meios e cuidados de saúde necessários à resolução atraumática da situação de distócia ocorrida durante a realização do parto e uma actuação menos adequada e causadora de lesão.
XLIX – Pelo que fez o Mm.º Juiz a quo errada apreciação da prova produzida nos autos, nomeadamente ao dar como provados os factos
1.19) – O trabalho de parte decorreu sem que as enfermeiras referidas em 1.18) sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica.
1.31) – Em caso de aplicação sem sucesso da manobra referida em 1.28) será necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro.
1.33) – A manobra referida em 1.29) foi executada com sucesso.
bem como ao dar por não provados os factos
2.3) Face à verificação de uma distócia de ombros, a 2ª ré deveria ter de imediato requerido a intervenção de um médico.
2.4) A manobra referida em 1.28) e 1.29) foi deficientemente realizada pela 2ª ré.
2.5) A lesão referida em 1.38) resultou: c. Da realização de forma deficiente da manobra referida em 1.28) e 1.29).
L – Com efeito, e pelas razões já supra explicitadas, deveria o Mm.º Juiz a quo ter dado como provado que a actuação da co-Ré N....., perante uma emergência obstétrica, deveria ter chamado um obstetra; que não chamou nenhum dos obstetras de serviço; poderia ter adoptado, prévia ou alternativamente, a execução da manobra de Roberts (ampliadora dos diâmetros da bacia da mãe), diminuindo os riscos de verificação de uma lesão plexo-braquial.
LI – Pelo que vem de se explanar, violou a D. Sentença recorrida não só as regras de apreciação da prova, como a aplicação do direito ao caso, nomeadamente o preceituado nos Art.os 6º do DL 48051 de 21.11.1967 e, concomitantemente, 483º do CCivil.”
O réu apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“1. O âmbito do recurso ao qual nesta sede se responde, encontra-se delimitado pelas conclusões apresentadas pelos Apelantes/ Recorrentes e resume-se a saber se bem andou o Douto Tribunal a quo na apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e se efectuou uma errada aplicação do direito aos factos dados como provados e não provados, sendo certo que a decisão, no entender do Apelado/Recorrido, não merece qualquer reparo, porque apreciou corretamente a prova e aplicou corretamente a Lei, não merecendo nenhuma das criticas que lhe são dirigidas;
2. Insurgem-se os Apelantes contra a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou totalmente improcedente a ação administrativa comum, por eles intentada, por entenderem que a atuação dos RR violou os procedimentos que se impunham face à situação de distócia de ombros ocorrida durante o parto do menor R......
3. Para o efeito, começam por invocar o erro do Tribunal a quo na apreciação e valoração da prova produzida, nomeadamente ao dar por provados os factos 1.19, 1.31 e 1.33, e por não provados os factos 2.3, 2.4, e 2.5/c), mas sem razão,
4. Pois a verdade é que o Tribunal a quo indicou as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo feito uma análise critica das mesmas segundo as regras da experiência comum e da sua convicção, e esclarecendo, de modo cuidado, as razões que levaram o Tribunal a quo a optar pela versão dos factos trazida pelos Réus, em detrimento da versão dos factos apresentada pelos Autores;
5. Apreciação judicial essa que levou em conta, nomeadamente, o relatório de perícia técnico-científica na especialidade de obstetrícia e os depoimentos de outros especialistas clínicos com vasta experiência na área (v., in pormenor, págs. ???? das presentes contra-alegações).
6. Razão pela qual não assiste razão alguma aos Recorrentes quando alegam que o Tribunal a quo violou as regras de apreciação da prova produzida, antes devendo manter-se inalterada, sem mácula, a decisão proferida quanto à factologia provada e não provada.
7. De igual forma, o aresto em recurso também não enferma de qualquer erro ao concluir pela inexistência de um facto voluntário ilícito por parte dos recorridos.
8. Com efeito, atenta a factualidade provada nos autos, não se poderia concluir que as manobras realizadas para retirar o bebé não eram as adequadas ou não foram corretamente executadas – independentemente da lesão que o bebé tenha sofrido.
9. Na verdade, o facto de se ter produzido determinado resultado danoso, na sequência de uma intervenção médica, não permite concluir, só por si, pela existência de uma violação culposa das leges artis – ou, concretizando, que a enfermeira responsável pelo parto tenha violado tais regras.
10. Antes pelo contrário, o comportamento das enfermeiras, ao realizar as manobras necessárias para retirar o bebé, impediram que o mesmo corresse risco de vida – sendo facto notório e assente que a dificuldade de extração (ou “distócia dos ombros”) não resultou de qualquer ato daquelas profissionais.
11. Pelo que não há qualquer ilicitude a apontar ao comportamento das mesmas, recorridas nesta sede.
12. De igual forma, também não se verificou qualquer ilicitude resultante de um mau funcionamento dos serviços da entidade recorrida – por, alegadamente, o 1.º réu não ter iniciado de imediato os tratamentos de recuperação fisiátrica – uma vez que não resultou provado que mesmo que tais tratamentos de recuperação se tivessem iniciado mais cedo, a recuperação do menor tivesse sido mais completa.
13. Antes pelo contrário, o que resultou demonstrado foi o bom funcionamento dos serviços, pois não só o menor foi referenciado para consulta de fisioterapia e posteriormente recebeu tratamentos desse domínio, nos períodos protocolarmente estabelecidos como adequados ao efeito, como acabou por ser submetido a uma operação que lhe permitiu recuperar, em grande medida, a sua capacidade funcional do membro lesado.
14. Consequentemente, bem andou o aresto em recurso ao julgar a ação totalmente improcedente, pois não ficou provado que os recorridos tivessem praticado um único facto voluntário ilícito – o qual, não se verificando, faz cair por terra qualquer responsabilidade civil pública, (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC) e determina a improcedência in totum da pretensão ressarcitória.”
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender que a sentença não merece qualquer censura.

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir:
- do erro de julgamento da decisão da matéria de facto;
- do erro de julgamento da decisão de direito, ao não considerar verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos réus.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1.1) No dia 16.01.2007, pelas 16h09m, a 2.ª autora deu entrada no serviço de urgência do 1.º réu, queixando-se de fortes dores abdominais, que foram relacionadas com contrações uterinas irregulares e pouco dolorosas.
1.1) A 2.ª autora encontrava-se então grávida de 39 semanas e 5 dias, adivinhandose, portanto, a entrada em trabalho de parto.
1.2) A 2.ª autora foi observada às 16h30m pelo 3.º réu, Dr. J...., Diretor do Serviço de Obstetrícia do 1.º réu, que então se encontrava de serviço.
1.3) Naquele ato, para além da observação direta da 2.ª autora, o 3.º réu analisou e considerou os dados constantes nos exames complementares de diagnóstico a esta respeitantes, nomeadamente a última ecografia obstétrica realizada a 08.11.2006, pelas trinta semanas de idade gestacional.
1.4) Na observação realizada verificou-se que o feto se encontrava em posição cefálica.
1.5) Na observação das trinta semanas, a que o 3.º réu recorreu e referida em 1.3), observou-se que o feto apresentava um peso estimado de 1834 Kg +/- 268 gr e um percentil 50.
1.6) A 2.ª autora era primigesta, inexistindo história de distócia de ombros em parto anterior.
1.7) Nem a 2.ª autora nem o feto eram diabéticos.
1.8) A 2.ª autora tem uma bacia ginecóide, isto é, normal, apesar de ter baixa estatura, com 153 cm de altura.
1.9) O 3.º réu, atentas as observações referidas em 1.5) a 1.8), não julgou verificado qualquer fator de risco, designadamente para dificuldade na expulsão do feto ao nível dos ombros, também conhecida na literatura médica por «distócia de ombros», pelo que não deu indicação para a realização de parto por cesariana eletiva.
1.10) Do exame clínico efetuado pelo 3.º réu concluiu-se pelo bem estar do feto e da grávida, tendo a 2.ª autora ficado a soro e em vigilância a partir das 17h30m e sendo encaminhada para pré-internamento, com o diagnóstico de início de trabalho de parto, pois que seria previsível que daí a algum tempo as contrações se tornassem regulares, e se iniciasse efetivamente o trabalho de parto.
1.11) Foi à 2.ª autora cateterizada uma veia, ficando assim a receber soro: ionosteril G.
1.12) A 2.ª autora e o feto ficaram em vigilância, com monitorização permanente dos sinais vitais.
1.13) À 2.ª autora foi colhido sangue para análises, prestados ensinos, efetuada tricotomia e enema.
1.14) Pelas 21h00 horas do mesmo dia 16.01.2007, o 3.º réu concluiu o seu turno, tendo abandonado as instalações.
1.15) A equipa médica de Especialistas em obstetrícia de serviço no 1.º réu passou então a compor-se pelos chamados Dr. A......, que iniciou serviço às 21h00, horas, e com os Drs. G...... e B......, que prosseguiram a cumprir os respetivos turnos.
1.16) Apenas cerca das 0h15m do dia 17.01.2007 a 2.ª autora manifestou dores abdominais, que justificaram o recurso à analgesia com 50 mg de Petidina e 2 mg de Haloperidol.
1.17) Pelas 01h30m do dia 17.01.2007 foi aberto o partograma na sequência da rotura espontânea de membranas e de nova observação que confirmou o decurso do trabalho de parto.
1.18) A 2.ª autora permaneceu sob os cuidados diretos das enfermeiras especialistas, N...., 2.ª ré, e A....., chamada.
1.19) O trabalho de parte decorreu sem que as enfermeiras referidas em 1.18) sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica.
1.20) O primeiro estadio do parto, iniciado com a instalação de contrações uterinas regulares e terminado com a dilatação completa do colo, decorreu até próximo das 06h00m.
1.21) O tempo normal previsto para o primeiro estadio do parto, para uma nulípara, como a 2.ª
1.22) O segundo estadio do parto ou período expulsivo, que termina após expulsão do feto, iniciou-se pouco depois das 05h30m do dia 17.01.2007, momento em que a dilatação do colo atingiu 7 cm, e decorreu até às 06h30m. autora, pode ir até 26 horas.
1.23) O tempo normal previsto para o segundo estadio do parto, para uma nulípara, como a 2.ª autora, pode ir até 45 a 60 minutos.
1.24) A 2.ª autora permaneceu ligada a um monitor de cardiotocografia computadorizada.
1.25) A Frequência Cardíaca Fetal revelou-se dentro dos parâmetros normais, entre 120 e 160 pulsações por minuto.
1.26) As enfermeiras referidas em 1.18) não sentiram necessidade de utilizar instrumentos para libertar a cabeça fetal.
1.27) Durante o período expulsivo, já com o pólo cefálico liberado, surgiu, de modo imprevisível, o encravamento anómalo do diâmetro biacromial, verificando-se uma dificuldade na libertação do ombro direito do feto, qualificável como distócia de ombros.
1.28) Perante tal dificuldade, a 2.ª ré realizou de imediato uma única manobra de libertação do ombro, por rotação, através da aplicação digital na parte de trás do ombro direito, ajudando a fazer a rotação do diâmetro biacromial do diâmetro antero-posterior da pelve para o diâmetro oblíquo, onde o espaço para a progressão do feto é maior.
1.29) A manobra referida em 1.28) surge identificada na literatura médica como «Manobra de Rubin», como sendo utilizada para ultrapassar situações de distócia de ombros.
1.30) Em situações de distócia, caso a enfermeira parteira ou o médico cirurgião não aplique manobra adequada com prontidão, ou as aplique sem sucesso, o bebé corre risco imediato de asfixia e morte.
1.31) Em caso de aplicação sem sucesso da manobra referida em 1.28) será necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro.
1.32) A 2.ª ré era enfermeira há 28 anos, e especialista há 16 anos à data dos factos, e já tinha realizado várias vezes a manobra referida em 1.29).
1.33) A manobra referida em 1.29) foi executada com sucesso.
1.34) O 3.º autor nasceu sem necessidade de reanimação, com índice na escala de Apgar de 8 e 10, respetivamente, após o 1.º e 5.º minutos de vida.
1.35) O recém-nascido pesava 3720g.
1.36) Face à dificuldade surgida, a 2.ª ré ficou triste e apreensiva.
1.37) O bebé foi examinado pelo Pediatra do 1.º réu, Dr. J......, que já tinha sido chamado devido a suspeita de existência de líquido amniótico meconial, ao segundo minuto de vida, tendo aquele clínico, em diagnóstico, admitido a possibilidade de existir uma lesão do plexo braquial à direita.
1.38) No dia seguinte, 18.01.2007, foi confirmada a lesão do plexo braquial direito do 3.º autor, com limitações da abdução do ombro (+/- 90.º) e da rotação externa do mesmo (0.º).
1.39) Foram dados conselhos à 2.ª autora quanto ao auxílio dos movimentos do R....., atenta a referida limitação, designadamente acerca do modo como posicioná-lo e do modo como vesti-lo.
1.40) No mesmo dia 18.01.2007 o 3.º autor foi encaminhado para consulta externa de Fisiatria, por causa da lesão referida em 1.38).
1.41) O bebé saiu do 1.º réu no dia 20.01.2007, com a 2.ª autora, tendo tido alta na véspera.
1.42) O 3.º autor, antes da alta referida em 1.41), não chegou a ser observado por nenhum ortopedista enquanto esteve internado no 1.º réu, nem aí iniciou qualquer tipo de tratamento durante os primeiros dias de vida.
1.43) A 19.02.2007 o menor R..... foi observado na consulta de Fisiatria do 1.º réu, iniciando um programa de recuperação, ministrado por aquele demandado, numa fase inicial e pelo menos até à instauração da presente ação numa regularidade de duas vezes por semana.
1.44) A par da fisioterapia, e por indicação do médico de família, o 3.º autor R..... fez hidroginástica uma vez por semana, nas Piscinas Municipais de Alcobaça, integralmente custeadas pelos 1.º e 2.ª autores.
1.45) Além da fisioterapia e da hidroginástica, o 3.º autor foi ainda seguido no Centro Hospitalar de Coimbra - Hospital Pediátrico, onde periodicamente se deslocou com os pais.
1.46) Os 1.º e 2.ª demandantes despenderam, em custos de transporte, uma quantia não inferior a € 15,00 por cada deslocação ao 1.º réu para as sessões de fisioterapia referidas em 1.43), num total de 60 km de ida e volta ao domicílio dos autores.
1.47) Os 1.º e 2.ª demandantes despenderam, em custos de transporte, uma quantia não inferior a € 50,00 por cada deslocação ao Centro Hospitalar de Coimbra - Hospital Pediátrico, referidas em 1.45), num total de 200km de ida e volta ao domicílio dos demandantes.
1.48) Nalgumas dessas ocasiões o 1.ª autor viu-se forçado a faltar ao trabalho e, consequentemente, a ver a sua remuneração reduzida em € 64,66 por cada dia de falta, ou a descontar esses dias às suas férias, por forma a evitar a perda de um dia de salário.
1.49) Os custos e perdas referidas em 1.43) a 1.48), e até 24.007.2008, data da instauração da presente ação, ascendiam aos seguintes montantes:
a. 145 deslocações do 1.º autor ao 1.º réu para sessões de fisiatria:
€ 15,00 x 145 = € 2175,00;
b. 4 deslocações do 1.º autor ao CHC - H. Pediátrico para consulta:
€ 50,00 x 4 = € 200,00;
c. Aulas de hidroginástica € 253,20;
d. 2 Deslocações ao 1.º réu para consulta externa de fisiatria:
€ 15,00 x 2 = € 30,00;
e. 2 dias de falta justificada ao emprego pelo 1.º autor:
€ 64,66 x 2 = € 129,32.
1.50) Os 1.º e 2.ª autores auferiam, à data da instauração da presente ação, € 682,58e e € 379,14, respetivamente.
1.51) A gravidez da 2.ª autora decorreu sem incidentes, devidamente acompanhada por especialistas desde início e com todos os exames realizados sempre com um prognóstico bastante favorável.
1.52) O 3.ª autor é naturalmente destro, tentando natural e insistentemente manipular os objetos preferencialmente com a mão direita.
1.53) Como não pôde fazer grande parte dos movimentos em função da lesão referida em 1.38), o 3.º autor cansava-se rapidamente, desistia, desanimava e chorava durante os primeiros meses.
1.54) Acabando por se deixar estar quieto, desinteressado e sem a vivacidade característica de um bebé da sua idade.
1.55) As circunstâncias referidas em 1.53) e 1.54), para além de frustrarem o 3.º autor, também desgostavam os 1.º e 2.ª autores, que desde cedo foram forçados a ter cuidados redobrados com o menor.
1.56) Nos primeiros tempos de vida do R....., a 2.ª autora temia pegá-lo ao colo e dar-lhe banho, por recear agravar ainda mais o problema com algum movimento desadequado.
1.57) A lesão referida em 1.38) foi fonte das maiores angústias, tristeza, desânimo, preocupação e permanente estado de sobressalto dos 1.º e 2.ª autores.
1.58) O menor R..... sofreu, ao longo da infância e meninice, sequelas no braço e ombro direitos.
1.59) Das sequelas referidas em 1.58) advieram, entre outras, prejuízos no desenvolvimento da sua personalidade e autoconfiança, dependência de terceiros na realização de certas tarefas diárias e limitações nas brincadeiras com as outras crianças.
1.60) À data da instauração dos presentes autos revelava-se desaconselhada uma microcirurgia do plexo, não se perspetivando então uma recuperação do 3.º autor a 100% da lesão referida em 1.38).
1.61) O 3.º autor foi seguido desde maio de 2011 em consulta de Reabilitação do plexo braquial, no âmbito do acompanhamento referido em 1.45).
1.62) No âmbito das consultas referidas em 1.61) fez inicialmente aplicação de toxina botulímica nos músculos rotadores internos (grande peitoral e subescapular) e programa de reabilitação, incluindo fisioterapia e hidroterapia.
1.63) A terapêutica referida em 1.62) resultou em benefícios em termos de ganho de rotação externa e capacidade funcional do membro lesado.
1.64) A 13.01.2016 o 3.º autor foi submetido a tratamento cirúrgico pela equipa de Ortopedia do estabelecimento referido em 1.45), tendo sido efetuada osteotomia desrotativa externa do úmero proximial direito (cerca de 30.º) e osteossíntese com placa DCP.
1.65) Após a intervenção cirúrgica referida em 1.64), o 3.º autor retomou programa de fisioterapia no pós-operatório no 1.º réu e teve indicação para manter programa de hidroterapia.
1.66) A 29.07.2016 o 3.º autor:
a. apresentava membro superior direito integrado no esquema corporal e funcional em atividades de vida diária, embora ainda apresentasse lateralidade esquerda;
b. fazia abdulação ativa de 140.º e flexão ativa de 170.º com o membro superior direito;
c. levava a mão direito à nuca (grau 4 na escala de Mallet modificada);
d. levava a mão direita à vértebra L5 com dificuldade (grau 4 na escala de Mallet modificada);
e. levava a mão direita à boca com trompete parcial (G3).
1.67) Apesar da evolução favorável referida em 1.61) a 1.66), o 3.º autor não recuperou totalmente a mobilidade e funcionalidade do membro superior direito e pode mesmo não a recuperar a 100%.
1.68) A incidência da lesão referida em 1.38) ocorre num universo superior a 1 caso em cada 4000 nascimentos.
1.69) A interveniente Axa celebrou com os chamados referidos em 1.15) contratos de responsabilidade civil Modalidade ordens Profissionais – Condição Especial 21, com o objeto seguro «Responsabilidade Civil, - Ginecologia / Obstetríca», vigentes à data do parto referido em 1.28), que excluía da cobertura da apólice, nos termos da alínea i) do art. 5.º das Condições Gerais da Apólice, os danos indiretos de qualquer natureza, como o fossem lucros cessantes ou paralisações.

*

II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se:
- ocorre erro de julgamento da decisão da matéria de facto;
- ocorre erro de julgamento da decisão de direito, ao não considerar verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos réus.

a) do erro de julgamento de facto

Sustentam nesta sede os recorrentes que o Tribunal a quo errou na decisão da matéria de facto, designadamente:
- ao dar como provados os factos constantes dos pontos 1.19, 1.31 e 1.33 do probatório;
- ao dar como não provados os factos constantes dos pontos 2.3, 2.4 e 2.5 do probatório;
Vejamos se assiste razão aos recorrentes.
Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos.
Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementados os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Isto sem que, nesta reapreciação, especificamente quando se trate de analisar a gravação dos depoimentos prestados em audiência, como ocorre no caso, se olvide a livre apreciação da prova obtida em primeira instância, assente nos princípios da imediação e da oralidade, cf. artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do CPC.
Para sustentar o erro quanto à prova dos factos constantes dos pontos 1.19, 1.31, 1.33, 2.3, 2.4 e 2.5 do probatório, invocam os recorrentes, em síntese, o seguinte:
- deveria ter sido dado como provado que a distócia de ombros é uma emergência médica, a que deve acorrer um obstetra, o que não aconteceu por omissão da co-ré N.....;
- os co-réus A....., G..... e B......, médicos obstetras de serviço na data do parto, atestaram que não foram chamados para intervir no caso;
- consta do ponto 5 do relatório pericial a necessidade de pedir ajuda de um obstetra (se disponível) ou de outro enfermeiro;
- resulta do depoimento dos co-réus M...... e C...... que a manobra de extração dos ombros adotada pela co-ré N..... não é isenta de riscos, nomeadamente o de provocar uma lesão do plexo braquial, quando a manobra de Roberts não comportaria tantos riscos, que podia ter sido realizada
- não consta de qualquer registo clínico a chamada de médico;
- só poderia ter-se dado como provado o facto de que a manobra de Rubin foi aplicada com sucesso pela co-ré N..... na medida em que o A. R..... nasceu rapidamente e sem sinais de sofrimento, daí não se retirando que o alegado sucesso implica não se ter causado nenhuma lesão;
- segundo um critério de probabilidade prevalecente, a lesão derivou da manobra de extração adotada, em vez de outra possível e da falta de médico obstetra.
Vejamos então.
Quanto aos disputados factos constantes dos pontos 1.19, 1.31 e 1.33 do probatório, a decisão recorrida fundamentou como determinantes para a formação da convicção do tribunal o relatório pericial, documento 1 junto com a petição inicial, o processo de averiguações n.º 3/2008 junto pelo 1.º réu, assim como os depoimentos de parte dos 1.º e 2.ª corréus particulares e dos chamados G......, A..... (médicos) e M…… (enfermeira).
Já relativamente ao ponto 2.5), a. e b. dos factos não provados resultou dos mesmos documentos, relatório clínico e processo de averiguações, dos esclarecimentos prestados pelo 3.º réu em sede de audiência final, através de depoimento de parte que se revelou cooperante, com conhecimento direto da factualidade por si reportada, com facilidade em contextualizar as vicissitudes por si relatadas, num depoimento articulado, assertivo e ademais corroborado pelos depoimentos de parte dos chamados G......, A...... e B.......
No que concerne ao ponto 1.19, o trabalho de parto ter decorrido sem que as enfermeiras N...., 2.ª ré, e A....., chamada, sentissem a necessidade de requerer a intervenção médica, apenas estas intervenientes o podiam asseverar. O que efetivamente fizeram. Pelo que, neste particular, improcede a argumentação sustentada pelo recorrentes.
Quanto ao ponto 1.31, em caso de aplicação sem sucesso da manobra de libertação do ombro, por rotação, ser necessária a intervenção de um médico ou de outro enfermeiro, igualmente não procede aquela argumentação. Com efeito, tal necessidade de intervenção é o que precisamente resulta do relatório pericial. Aí não se conclui ser imperativo chamar um médico, mas sim, em alternativa, chamar um médico ou chamar outro enfermeiro. Pelo que bem se andou ao dar como assente tal facto.
Relativamente ao ponto 1.33, a execução com sucesso da manobra de libertação do ombro, por rotação, conhecida como manobra de Rubin, afigura-se um facto indesmentível, como os próprios recorrentes reconhecem. Ao passo que já não se mostra assente um facto distinto, que desta manobra efetivamente bem sucedida resultou a lesão, segundo um critério de probabilidade prevalecente, que os recorrentes não logram demonstrar.
Do que fica dito resulta já a conclusão quanto aos disputados factos não assentes.
Como resulta do relatório pericial, repise-se, não se afigurava imperativo chamar um médico, mas sim, em alternativa, chamar um médico ou chamar outro enfermeiro. Não estava, pois, assente, que a 2ª ré deveria ter de imediato requerido a intervenção de um médico.
E igualmente já se assestou a falta de demonstração da realização deficiente da aludida manobra e que desta tenha resultado a lesão.
Porque assim é, necessariamente improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


b) do erro de julgamento de direito

Invocam ainda os recorrentes que a sentença recorrida violou as regras de aplicação do direito ao caso, nomeadamente o preceituado nos artigos 6.º do Decreto-Lei n.º 48051 de 21/11/1967 e, concomitantemente, 483.º do Código Civil.
Com a improcedência da impugnação sobre a decisão relativa à matéria de facto, queda assente a questão da ilicitude da atuação dos recorridos.
O que leva à inequívoca solução da questão da respetiva responsabilização.
A responsabilidade das entidades públicas encontra-se prevista no artigo 22.º da CRP, onde se estatui que “[o] Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”
Está em causa a responsabilidade civil extracontratual dos recorridos decorrente do parto realizado no dia 16/01/2007.
Constava do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21/11/1967, que “[o] Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos e agentes assenta nos mesmos parâmetros do conceito civilístico da responsabilidade civil extracontratual (cf. artigos 483.º e ss. do Código Civil), exigindo-se a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos legais:
- o facto, que se pode traduzir numa ação ou numa omissão;
- a ilicitude, ação ou omissão violadora de normas ou deveres objetivos de cuidado, podendo ainda traduzir-se em funcionamento anormal do serviço;
- a culpa, juízo de censura dirigido ao agente, em função da diligência e aptidão exigíveis no caso concreto;
- o dano, lesão ou prejuízo, patrimonial ou não patrimonial, resultante da ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos;
- o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Verificados estes pressupostos, constitui-se na esfera do Estado a obrigação de indemnizar.
Ora, com a resposta negativa à verificação de facto ilícito, queda inapelavelmente improcedente a pretensão dos recorrentes.

Em suma, impõe-se negar provimento ao recurso.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.

Lisboa, 17 de novembro de 2022
(Pedro Nuno Figueiredo)

(Ana Cristina Lameira)

(Ricardo Ferreira Leite)