Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11422/14
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/14/2015
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:SERVIDÃO AERONÁUTICA CIVIL – INDEMNIZAÇÃO – TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:1.À determinação do valor da indemnização por decorrência da constituição da servidão aeronáutica civil, matéria não regulada no DL 45 987 de 22.10.1964, é aplicável o regime do Código das Expropriações, artº 8º nº 3, Lei 168/99, 18.09.

2. A discussão litigiosa da eventual indemnização dela decorrente é da competência dos tribunais judiciais - artºs. 38º e ss., CE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:M……..– Sociedade …………………., SA, comos sinais nos autos, inconformada com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. A constituição de uma servidão administrativa consubstancia o exercício de um poder-dever da Administração pública que dá origem a uma relação jurídico-administrativa complexa, composta por um feixe de direitos e deveres recíprocos entre os quais avulta o direito do particular a reclamar da Administração o pagamento de uma indemnização pelas limitações impostas ao seu direito de propriedade.
2. As normas de direito administrativo não são apenas aquelas que conferem poderes de autoridade à Administração pública, mas também aquelas que conferem aos particulares direitos e garantias perante a Administração pública, quando esta actua no exercício da função administrativa.
3. Por conseguinte, as normas que reconhecem ao particular o direito a ser indemnizado pelo sacrifício decorrente da constituição de uma servidão administrativa são também elas normas administrativas, na exacta medida em que concedem ao particular um direito perante a Administração pública no caso de esta última exercer um poder de autoridade que lhe assiste.
4. Por dizerem respeito a relações jurídico-administrativas, reguladas por normas de direito administrativo, os litígios relacionados com a indemnização devida pela constituição de servidões administrativas são da competência dos tribunais administrativos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.°, n.° l, e 4.°, n.° l, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 212.°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa.
5. O artigo 38º do Código das Expropriações está pensado para o caso das indemnizações devidas pelas expropriações ditas "clássicas", que envolvem a transferência do bem da propriedade de um particular para o domínio da Administração pública, e nas quais, portanto, se coloca apenas o problema da liquidação do quantitativo da indemnização.
6. A indemnização devida pelas servidões administrativas enquadra-se na categoria mais ampla da indemnização pelas chamadas “expropriações de sacrifício”, nas quais o bem permanece na titularidade do particular mas sujeito a encargos e limitações que diminuem de forma especial ou anormal as utilidades que o mesmo produzia ou era apto a produzir.
7. No caso das "expropriações de sacrifício", o problema não se coloca apenas a jusante, ao nível da liquidação do quantitativo da indemnização, mas surge logo a montante, quanto à questão de saber se o encargo ou limitação impostos pela Administração atingem um grau de relevância suficiente para justificar o arbitramento de uma indemnização (no que às servidões administrativas diz respeito, vejam-se as diversas alíneas do nº 2 do artigo 8.° do Código das Expropriações).
8. Portanto, quando confrontado com um pedido de indemnização pela constituição de uma servidão administrativa, o tribunal tem necessariamente de apreciar previamente se estão reunidos os pressupostos de que depende o direito do particular à indemnização.
9. Ora, o artigo 38º do Código das Expropriações - justamente porque está pensado para as expropriações ditas "clássicas" - só atribui competência aos tribunais judiciais para conhecerem de litígios relativos ao quantitativo da indemnização, como, aliás, resulta do próprio texto do mencionado artigo.
10. Atenta a reserva de competência dos tribunais administrativos consagrada no artigo 212.° n.° 3, da Constituição o artigo 38.° do Código das Expropriações é uma norma excepcional, não podendo ser aplicado analogicamente em termos de fundar a competência dos tribunais judiciais para apreciar os litígios relativos à existência do direito do particular a uma indemnização pela constituição de servidões administrativas ou outros casos de expropriação de sacrifício.
11. Em face do exposto os tribunais administrativos são necessariamente competentes para apreciar as acções de indemnização por constituição de servidões administrativas e outros tipos de expropriação de sacrifício, sob pena de inconstitucionalidade.
12. É que a atribuição de competência aos tribunais judiciais para dirimir questões emergentes de relações jurídico-administrativas requer disposição legal expressa (artigos 212º, nº 3, e 165º, nº 1 alínea p), da Constituição da República Portuguesa), sendo que tal disposição não existe, dado que o artigo 38.° do Código das Expropriações só diz respeito a litígios acerca do quantitativo da indemnização e não já a litígios acerca da própria existência do direito à indemnização.
13. Acresce que o reconhecimento do direito do particular a ser indemnizado pela servidão administrativa exige a análise dos encargos e limitações por ela impostos sobre o bem serviente, que é uma análise de normas de direito administrativo - já que o conteúdo das servidões é determinado por normas de direito administrativo - para a qual só os tribunais administrativos se encontram devidamente habilitados, sendo inteiramente injustificado deferir essa competência aos tribunais comuns, em violação do preceituado no nº 3 do artigo 212º da Constituição.
14. Por conseguinte, não pode haver dúvidas de que os tribunais administrativos são materialmente competentes para apreciar os litígios relativos ao direito dos particulares a serem indemnizados pelos encargos e limitações impostas por servidões de direito administrativo.
15. E, consequentemente, também não pode haver dúvidas de que os tribunais administrativos são materialmente competentes para conhecer da pretensão da Recorrente de ser indemnizada pelos encargos e limitações que foram impostos sobre os bens de que é proprietária em virtude da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira.
16. De acordo com a doutrina do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26 de março de 2009 consistindo o pedido principal deduzido pela Recorrente no reconhecimento do seu direito a ser indemnizada pelas limitações impostas em virtude da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira, têm os tribunais administrativos igualmente competência para proceder ao cálculo e ao arbitramento da indemnização devida.
17. Ora, sendo os tribunais administrativos competentes para conhecer do pedido formulado na acção principal - leia-se, o pedido de reconhecimento do direito da Recorrente a ser indemnizada pela constituição da servidão aeronáutica da Madeira e de arbitramento da competente indemnização -, serão igualmente competentes para conhecer do mesmo pedido, formulado agora a título cautelar, na presente providência de regulação provisória de pagamento de quantia devida,
18. Ao decidir exactamente o oposto - ou seja, que os tribunais administrativos eram materialmente incompetentes para decretar uma providência cautelar de regulação provisória de pagamento das quantias devidas por conta da indemnização a que a Recorrente tem direito pela constituição da servidão aeronáutica do aeroporto da Madeira - o tribunal a quo aplicou erradamente os artigos 1.°, n.° l, e 4.°, n.° l, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os artigos 8.° e 38.°, n.° l do Código das Expropriações, os artigos 112.°, 113.° e 133.° do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e, por último, os artigos 212.°, n.° 3, e 165.°, n.° l, alínea p) da Constituição da República Portuguesa.

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A ANAM – Aeroporto e Navegação Aérea da Madeira, SA, ora Recorrida, contra-alegou concluindo como segue:

A. A MATUR pretende receber uma quantia não inferior a 20M€ como "adiantamento" de uma indemnização devida por via da constituição da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira.
B. A constituição de servidões aeronáuticas encontra-se regulada em primeira linha no DL nº 45987, sendo subsidiariamente aplicável o regime aplicável às servidões militares, constante do DL nº 45986, mas em nenhum desses diplomas se regula, directa ou indirectamente, a matéria da determinação de indemnizações eventualmente devidas a particulares onerados com a constituição de uma servidão aeronáutica.
C. Do disposto no nº 3 do artigo 8º do CE resulta ser o regime constante desse diploma aplicável, com as necessárias adaptações e a tudo o que não seja expressamente regulado no DL nº 45987 (e no DL nº 45986), à constituição de servidões aeronáuticas e à determinação da inerente (e eventual) indemnização daí resultante,
D. Não havendo no DL nº 45987 qualquer regulação de uma eventual indemnização devida por força da constituição de uma servidão aeronáutica, então, se a M………. tem efectivamente direito a essa indemnização, a mesma tem de ser regulada pelo regime constante do CE - é a própria Recorrente que, nas suas Alegações, refere que "o montante da indemnização a que este [o particular] tem direito é, em última análise, o que resultar dos critérios legalmente fixados nos artigos 23º a 32º do Código das Expropriações.
E. Se a M……….., a RAM e a ANAM não chegarem a um acordo sobre a indemnização que a Recorrente alega ter direito, então a mesma será fixada por arbitragem, podendo qualquer das partes recorrer "para os tribunais comuns" (cf. artigo 38.°, n.° l, do CE).
F. O que significa que nunca os tribunais da jurisdição administrativa poderão ter qualquer intervenção na fixação da indemnização que a M………… reclama, pois são materialmente incompetentes para o efeito.
G. Sendo o TAF do Funchal, como bem se decidiu no Acórdão recorrido, incompetente para apreciar o pedido de indemnização por via da constituição da servidão aeronáutica, então é também incompetente para apreciar um pedido antecipatório de pagamento dessa indemnização.
H. Independentemente de a relação material subjacente a estes autos ter ou não natureza administrativa, a verdade é que, havendo lei específica que entrega tais litígios à jurisdição dos tribunais (ditos) comuns, serão eles os competentes, não os tribunais da jurisdição administrativa.
I. Como bem explica (toda) a doutrina que se invocou nestas contra-alegacões (Freitas do Amaral, Aroso de Almeida, Carlos Cadilha, Mário Esteves de Oliveira), o artigo 38º/l do CE constitui uma norma especial de competência que derroga a regra geral de delimitação da competência dos tribunais administrativos.
J. Também o Tribunal de Conflitos, em Acórdão de 20.10.2011 confirma que o disposto no artigo 38°/l do CE atribui aos tribunais comuns o conhecimento de recurso sobre o valor de indemnizações decorrentes da constituição de servidões administrativas e "sendo assim e tendo em conta o que acima se disse sobre a competência residual da jurisdição administrativa, havendo disposições especiais que regulam a competência, atribuindo-a aos tribunais comuns, não resta senão concluir que compete a estes o conhecimento dos referidos pedidos".
K. No mesmo sentido, a reforma do CPTA e do ETAF, actualmente em curso, confirma que à luz da legislação vigente o TAF do Funchal (ou qualquer outro tribunal da jurisdição administrativa) é materialmente incompetente para apreciar o pedido cautelar que a M…………formula nestes autos. E é porque é esse o estado actual do problema, que no anteprojecto se antecipa a hipótese de "fazer ingressar na jurisdição administrativa matérias que (...) estavam atribuídas à jurisdição comum, como sejam os processos para fixação da justa indemnização devida por expropriação, servidão" - o que, repete-se, significa (só pode significar) que neste momento são os tribunais judiciais os competentes para apreciar estes litígios.
L. O decidido no Acórdão do TAF do Funchal não ofende qualquer preceito da CRP na medida em que, conforme entende o próprio Tribunal Constitucional e a doutrina que acima se invocou, do nº 3 do artigo 212º da Constituição não resulta qualquer reserva absoluta dos tribunais administrativos e fiscais para julgar litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.

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A Região Autónoma da Madeira, ora Recorrida, contra-alegou nos termos que, por síntese, seguem:

1. Na acção principal a ali A., e ora recorrente, deduziu vários pedidos, sendo um deles O seguinte: «c) As RR. Devem também ser condenadas, solidariamente, no pagamento à A., a título de responsabilidade civil por acto lícito, de indemnização devida nos termos do art. 8° do Código das Expropriações, pelo prejuízos causados pela constituição da servidão aeronáutica a que se refere o pedido formulado em a), em montante a liquidar em execução de sentença, mas nunca inferior ao que resulta da aplicação dos critérios utilizados para o cálculo do montante fixado pela Comissão Arbitrai a 22 de Fevereiro de 1999, devidamente actualizado à data em que vier a ser fixada aquela indemnização, a que acrescem juros vincendos e a vencer até a data do seu integral pagamento, contados desde a data da entrada em funcionamento do Aeroporto da Madeira, ou seja, 15 de Setembro de 2000;»
2. A providência cautelar peticionada nestes autos foi requerida como pedido instrumental e dependente apenas do citado pedido principal, como resulta, aliás, claro da redacção do pedido: "Nestes termos, deve a presente providência cautelar de regulação provisória do pagamento de quantia devida ser decretada, e em consequência, a AN AM e RAM intimadas a prestar a quantia devida a título de indemnização por constituição da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira, em montante não inferior a € 20.000.000,00"
3. A questão está, pois, em saber se a jurisdição administrativa será competente para o julgamento do citado pedido deduzido a título principal, e, em consequência, também, para a apreciação da providência de regulação provisória de quantias requerida a título cautelar, instrumental face àquele pedido.
4. Não regulando a legislação especial relativa às servidões aeronáuticas (que resulta do Dec-Lei n° 45.987, de 22 de Outubro de 1964 e, subsidiariamente, do D.L. 45.986, de 22 de Outubro de 1964), a matéria da constituição e fixação do montante da eventual obrigação de indemnizar é aplicável o regime previsto no Código das Expropriações.
5. Já que esse regime se aplica exactamente em tudo quanto não esteja expressamente previsto em legislação especial.
6. O que, naturalmente, inclui o procedimento de atribuição e fixação da obrigação de indemnizar, como resulta de forma clara da disposição citada.
7. Em suma, como já acima referimos, não resultando do regime legal especial relativo à constituição de servidões aeronáuticas quaisquer normas relativas à constituição da obrigação de indemnizar e à sua fixação, é aplicável o regime previsto no Código das Expropriações.
8. Regime esse que prevê a fixação da indemnização através de arbitragem e recurso da decisão arbitrai para os tribunais comuns.
9. Salvo o devido respeito, não tem nenhum sentido, nem encontra fundamento legal, face à citada disposição do art. 8°, n°3 do CE, sustentar que regime previsto nos artigos 38° e 42° e segs. só seria aplicável à "impugnação do valor indemnizatório" na expropriação clássica, quando a remissão contida no referido preceito legal não exclui do seu âmbito nenhuma disposição ou segmento do código.



DO DIREITO



A presente providência foi instaurada por dependência do processo principal nº 166/06, cujo pedido múltiplo é o seguinte:
§ condenação das Requeridas, ora Recorridas ANAM e RAM,
o na prática dos actos administrativos legalmente devidos para a constituição de servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira – artº 3º da p.i, fls.2;
o em indemnização por prejuízos causados pela constituição da referida servidão aeronáutica (responsabilidade civil por acto lícito), nos termos do artº 8º do CE – artº 4º da p.i., fls. 2;
o em indemnização por prejuízos causados por omissão legal do dever de constituição da referida servidão aeronáutica (responsabilidade civil por acto ilícito) – artº 5º da p.i., fls. 2.
Na presente intimação para pagamento por conta do valor de prestações pecuniárias peticionadas e em dívida (artº 133º nº 1 CPTA), vem requerido que as Recorridas sejam “intimadas a prestar a quantia devida a título de indemnização por constituição da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira, em montante não inferior a 20.000.000,00 €” (vinte milhões de euros).
O Tribunal a quo declarou a incompetência da jurisdição administrativa para fixar o valor indemnizatório por constituição da servidão aeronáutica, atribuindo-a a tribunal arbitral nos termos do artº 38º CE/99, que nos casos previstos no artº 42º do citado CE/99 podem, a requerimento do particular interessado, ser assumidas pelo Tribunal Comum de 1ª Instância verificados os pressupostos ali referidos, sendo certo, ainda, que a decisão arbitral é susceptível de recurso para os Tribunais da Relação.


1. relação de instrumentalidade cautelar; competência regulamentar regional;

A questão da competência de jurisdição trazida a recurso para o efeito cautelar requerido nos presentes autos [a saber, de intimação das ora Recorridas para proceder ao pagamento a favor da ora Recorrente de quantias pecuniárias por conta de valores indemnizatórios em dívida] exige o prévio enquadramento normativo da questão principal conexionada com o processo cautelar, a saber, a condenação das Recorridas nos actos devidos à constituição de uma servidão aeronáutica.
Efectivamente, é necessário proceder ao enquadramento normativo no que respeita à peticionada constituição de uma servidão aeronáutica em ordem a definir o nexo de dependência da providência requerida face ao objecto da acção principal e, só então, ficará claro o domínio jurídico da questão trazida a recurso em matéria de competência do Tribunal de 1ª Instância para conhecer do pedido cautelar formulado.

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Neste plano de análise da relação de instrumentalidade cautelar com a acção principal, importa ter presente que a pretensão condenatória substantivada na adopção dos actos jurídicos necessários à constituição da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira em princípio terá como meio de acção correspondente o artº 77º CPTA em ordem a reagir judicialmente contra a omissão ilegal de norma administrativa “necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação” naquela Região.
A natureza normativa do acto constitutivo, modificativo ou extintivo destas tipologias de servidões administrativas decorre da Lei 2078 de 11.07.1955 para as servidões militares ou não militares mas de interesse para a defesa nacional e de aeródromos ou instalações de apoio à aviação, mediante decreto referendado pelo Ministro da Defesa Nacional [artºs. 3º e 4º § 2º], regulamentada pelo DL 45986 de 22.10.1964 em sede de competência para o respectivo estudo das servidões para aeródromos civis ou instalações de apoio à aviação civil ao Ministério das Comunicações e à Secretaria de Estado da Aeronáutica [artº 1º c)], constando os princípios gerais destas servidões aeronáuticas de aeródromos civis ou instalações de apoio à aviação civil do DL 45987 de 22.10.1964, que no respectivo artº 11º remete para o disposto no DL 45986 já citado.
Ou seja, quanto às servidões aeronáuticas civis em matéria não regulada no DL 45987 aplica-se supletivamente o regime das servidões militares constante do DL 45986.
Por sua vez o DL 181/70 de 28.4, considerando no respectivo preâmbulo que todas as servidões administrativas são sempre impostas por lei, prossegue com a distinção entre servidões administrativas cuja constituição resulta automaticamente da lei e as carecidas de acto administrativo seja (i) para a declaração de utilidade pública justificativa seja para (ii) a definição de aspectos específicos de regime – nestas últimas se incluindo as servidões aeronáuticas e militares segundo refere expressamente o preâmbulo do citado DL 181/70 que pretendia instituir com carácter geral o direito de audiência dos interessados (proprietários e utentes dos prédios onerados) já instituído para as servidões militares e aeronáuticas civis a todas as outras espécies de servidões.(1)
Naturalmente que o conteúdo normativo do DL 181/70 tem de se conjugar com o regime assente no Código das Expropriações aprovado pela Lei 168/99, de 18.09, v.g. com o disposto no artº 8º . (2)

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Exemplificativamente, e de harmonia com o quadro normativo acabado de referir, temos a servidão aeronáutica respeitante ao Aeroporto de Faro constituída pelo DL 51/80 de 25.3 e a relativa ao Aeroporto de João Paulo II em Ponta Delgada constituída pelo DL 116/2006 de 16.6, ou seja, em ambos os casos temos um acto legislativo do Governo da República, cfr. artº 112º nº 1 CRP..

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No que respeita ao caso dos autos a competência regulamentar radica no Governo Regional da Madeira – cfr. artº 227º nº 1 d) CRP – na vertente do poder regulamentar de legislação nacional. (3)
No caso, por densificação das competências substantivas autonómicas com assento no respectivo Estatuto Político Administrativo aprovado pela Lei 13/91, 5.6 alterado pelas Leis 130/99, 21.8 e 12/2000, 21.6, expressa no Decreto Regulamentar Regional nº 1/2014/M de 30.1 cujo artº 1º dispõe,
“Fica sujeita a servidão aeronáutica a área confinante com o Aeroporto da Madeira abrangida pela planta anexa ao presente diploma e que dele faz parte integrante. A elaboração desta planta teve como referência a Projecção UTM – Elipsóide Internacional – DATUM Ilha de Porto Santo, e como DATUM Vertical o Marégrafo do Porto do Funchal”,
sendo as zonas e tipologias objecto da servidão bem como as condicionantes e restrições de exercício e previsão contraordenacional, discriminadas nos artºs 2º a 22º do citado diploma.
De modo que, independentemente de considerações de direito que aqui não têm lugar, o objecto dos pedidos nos autos principais - condenação das ora Recorridas ANAM e RAM, na prática dos actos administrativos legalmente devidos para a constituição de servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira – artº 3º da p.i, fls.2 bem como em indemnização por prejuízos causados por omissão legal do dever de constituição da referida servidão aeronáutica (responsabilidade civil por acto ilícito) – artº 5º da p.i., fls. 2 dos autos. - mostra-se preenchido pelo artº 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 1/2014/M de 30.1 impositivo da servidão aeronáutica do Aeroporto da Madeira.


2. constituição de servidão aeronáutica civil – artº 62º nº 2 CRP;

Em sede de análise da relação de instrumentalidade da presente acção cautelar com a causa principal resta saber do pedido indemnizatório por prejuízos causados pela constituição da referida servidão aeronáutica (responsabilidade civil por acto lícito), nos termos do artº 8º do CE – artº 4º da p.i., fls. 2 dos autos.
Impõe-se, todavia, salientar alguns pontos do DRR nº 1/2014/M de 30.1 que importam ao objecto do presente recurso.
A servidão aeronáutica civil na área confinante com o Aeroporto da Madeira segundo a planta anexa ao DRR 1/2014/M, é constituída directamente pelo acto normativo regional à margem de qualquer procedimento administrativo.
Em segundo lugar, em matéria das servidões constituídas, os artºs. 3º e 4º DDR 1/2014-M dispõem como segue:
No artº 3º do DRR, os terrenos objecto da servidão aeronáutica civil em causa são,
“(..) os terrenos compreendidos nas zonas 1, 2, 7 (sectores A, D, F e I) e 8, ficam sujeitos a servidão areonáutica geral nos termos e para os efeitos do artº 4º do Decreto-Lei nº 45 987, carecendo as actividades, as construções ou a criação de obstáculos, mesmo que de carácter temporário, seja qual dor a sua natureza, de licença prévia da autoridade legalmente competente. (..)”-
O artº 4º do DL 45987 enumera nas alíneas a) a i) os trabalhos de construção e actividades que ficam sujeitos a licenciamento prévio.
No artº4º do DRR , os terrenos objecto da servidão aeronáutica civil em causa são,
“(..) as áreas de terreno ou de água compreendidas nas zonas indicadas nos artigos 5º a 15 do presente diploma, ficam sujeitas a servidão particular, de harmonia com o disposto no artº 5º do Decreto-Lei nº 45 987, dependendo do parecer favorável da autoridade aeronáutica competente a execução de quaisquer obras, instalações e construções sujeitas a licenciamento municipal, seja qual for a sua natureza, e de autorização prévia, de carácter vinculativo, a criação de quaisquer outros obstáculos, mesmo de carácter temporário, e o exercício de actividades, nos termos e condições expostos nos artigos seguintes. (..)”.
O artº 5º do DL 45987 reporta aos trabalhos de construção e actividades referidos no anterior artº 4.
Os artºs. 5º a 14º DDR 1/2014-M dispõem relativamente às zonas 3, 4, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 sobre a sujeição a parecer favorável ou autorização prévia vinculativa da autoridade aeronáutica competente quanto a actividades e construções.
O artº 23º DDR 1/2014-M designa a ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira SA como entidade competente para o exercício da servidão aeronáutica mencionadas no Diploma e o artº 24º determina a aplicabilidade à servidão “em tudo o que não estiver expressamente regulado, o regime do Decreto-Lei nº 45987 e, subsidiariamente, o regime estabelecido para as servidões militares no Decreto-lei nº 45986, ambos de 22de Outubro de 1964.”

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De bloco normativo citado e relativamente à constituição de zonas non aedificandi estamos perante normas ablativas da propriedade traduzidas na subtracção de concretas posições jurídicas garantidas constitucionalmente sobre a propriedade para a realização de um fim específico de interesse público, nos termos do artº 62º nº 2 CRP, que impõem perante o particular um sacrifício grave e especial indemnizável.
Já no que respeita aos casos em que se exige um licenciamento, autorização ou parecer favorável prévio às construções ou actividades nos ditos terrenos, estamos face a uma mera conformação do exercício do direito de propriedade na utilização privada dos ditos imóveis através da delimitação genérica do seu conteúdo e limites, uma ordem de regulação administrativa imposta pelo Governo da Região da Madeira e, neste caso, a situação subsume-se na previsão do artº 62º nº 1 CRP, de conformação da propriedade pelo legislador de acordo com os seus próprios valores, que não conferem direito a indemnização. (4)
Na lógica do que vem de ser dito, para definição da relação de instrumentalidade cautelar importa atender apenas à questão das servidões administrativas por constituição de zonas non aedificandi.


3. indemnização das servidões administrativas – artº 8º nº 3 CE – competência dos tribunais judiciais, artº 38º CE;

Neste domínio do regime indemnizatório conexo com as servidões administrativas a doutrina é clara no sentido em que “(..) a indemnização dos danos especiais e anormais decorrentes das servidões administrativas segue o regime de indemnização da expropriação por utilidade pública como resulta claramente do artº 8º nº 3 do Código das Expropriações e não o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, constante da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro (..)
(..) pergunta-se se há algum critério que tenha sido adoptado pelo legislador para, nuns casos, considerar que os actos impositivos de encargos ou causadores de danos especiais e anormais devem ser indemnizados de acordo com o regime da indemnização pelo sacrifício e, noutros casos, segundo os ditames da expropriação de sacrifício.
Não é uma questão fácil.
Mas cremos que, pelo menos tendencialmente, o legislador optou pela indemnização de acordo com os cânones da expropriação de sacrifício naquelas situações em que o acto do poder público revela uma intencionalidade ablativa de um direito de conteúdo patrimonial ou de alguma ou algumas “faculdades” ou “irradiações” desse direito. (..)”.(5)
Estamos, pois, em sintonia com a doutrina firmada no Acórdão citado do Tribunal Constitucional, no sentido de que a concessão indemnizatória como condição de licitude constitucional dos actos do legislador ordinário exige que esses actos consubstanciem uma lesão da propriedade “(..) geradora para o particular de um sacrifício grave e especial valorativamente idêntico ao previsto pelo instituto que o nº 2 do artº 62º da CRP consagra. Nesse caso e só nesse, seria a concessão de uma indemnização a conditio sine qua non da licitude constitucional da medida legislativa. (..)” – vd. Ac. TC nº 480/2014 de 25.06.2014 (Maria Lúcia Amaral), pág. 24007 do DR , 2ª Série, nº 179 de 17.Set.2014.

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O artº 8º nº 3 CE diz o seguinte - “À constituição das servidões e à determinação da indemnização aplica-se o disposto no presente Código.com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial”.
O que significa que no tocante à determinação do valor da indemnização por decorrência da constituição da servidão aeronáutica civil, matéria não regulada no DL 45 987, é aplicável o regime do Código das Expropriações/99, artº 8º nº 3 Lei 168/99 e, consequentemente, como nos diz a doutrina que vimos seguindo, “(..) a discussão litigiosa do valor da indemnização é cometida à competência dos tribunais judiciais pelo CE, na esteira da nossa tradição legislativa (cfr. os artigos 38º e seguintes do Código das Expropriações) (..)” – Alves Correia, Obra citada, pág. 767.

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Pelo que vem de ser dito improcedem todas as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 18 das conclusões.



Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.

Custas a cargo do Recorrente.

Lisboa, 14.Maio.2015


(Cristina dos Santos) ………………………………………………………………

(Paulo Gouveia) …………………………………………………………………

(Nuno Coutinho) ………………………………………………………………….


(1) Marcello Caetano, Manual de direito administrativo, Vol II, Almedina/1983, 9ª ed., págs.1052/1055, com chamada a que as mencionadas servidões constituídas por acto administrativo no Estatuto das Estradas Nacionais e no Reg. Geral das Estradas e Caminhos Municipais “não passam de casos de utilização ou ocupação temporárias. A falta de conhecimentos técnico-jurídicos, em matéria administrativa, de quem legisla origina destas confusões, infelizmente mais frequentes e mais numerosas do que seria para desejar.”
(2) Alves Correia, Manual de direito do urbanismo, Vol. I, 4ª ed. Almedina/2008, págs.327-329.
(3) Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora/2007, págs. 308-309.
(4) Acórdão do Tribunal Constitucional nº 480/2014 de 25.06.2014 (Maria Lúcia Amaral), in DR, 2ª Série, nº 179 de 17.Set.2014.
(5)Alves Correia, Manual …, Vol. I, 4ª ed. Almedina/2008, págs.337 nota 79 e 765-766 nota 43.