Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:347/17.7BELRS
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/19/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
FACTOS DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário:I - O contraditório, princípio jurídico-processual fundamental e conexo com a proibição da indefesa, previsto, v.g., no artigo 3º/2/3 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, significa, acima de tudo, que o juiz deve dar às partes a possibilidade de influenciarem todas as suas decisões, salvo casos de manifesta inutilidade dessa diligência.

II - Trata-se, pois, de uma formalidade processual essencial, quase absoluta.

III - A violação de tal formalidade essencial do direito processual é uma nulidade processual nos termos previstos no artigo 195º do CPC.

IV - Quando o tribunal se socorra de factos de que tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (cf. artigo 412º do CPC), deve fazer juntar ao processo documento que os comprove e cumprir o princípio do contraditório.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO
ALINA ……….., cidadã estrangeira, m.i. no r.i., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa processo cautelar contra
M.A.I. – SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS.
Por decisão cautelar, o referido tribunal veio a prolatar a decisão ora recorrida, intimando o requerido a emitir, provisoriamente, o título de residência solicitado pela requerente.
*
Inconformado com tal decisão, o REQUERIDO interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. A Entidade Recorrente imputa à sentença recorrida várias invalidades, desde logo a sua nulidade por falta de fundamentação, erro na fixação da matéria dada como provada, erro de julgamento.
B. A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, não sendo possível à ora Entidade Recorrente acompanhar o raciocínio efetuado (porque inexistente) que permita descortinar as razões de facto e direito que sustentaram a decisão da providência cautelar e do decretamento provisório.
C. Quando a existência de uma situação de especial urgência o justifique o tribunal pode conceder, a título provisório, a providência cautelar, procedendo ao decretamento da providência cautelar (cf. art. 131º CPTA).
D. Este instituto destina-se a evitar o periculum in mora do próprio processo cautelar, que assume forma qualificada, na medida em que não toma como referência a morosidade do processo principal, mas a morosidade do próprio processo cautelar: não está em causa o perigo de constituição de uma situação irreversível se nada for feito até ao momento em que venha a ser proferida sentença no processo principal, mas o perigo da constituição de uma situação irreversível se nada for feito de imediato, durante a pendência do processo cautelar.
E. A ora recorrida não concretizou qualquer situação da qual resulte a indispensabilidade de uma decisão de mérito seja proferida num processo urgente, e não numa ação administrativa, não dando satisfação ao ónus de alegação e prova que lhe está cometido, mas a douta sentença recorrida também não fundamenta os motivos que a levaram a admitir aquele meio processual urgentíssimo, em que a celeridade é obtida através do sacrifício, em maior ou menor grau, de outros valores.
F. A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, na medida em que não esclarece as razões que levaram a impor aquela decisão e não a outra. A sentença recorrida não só não explicita as causas de utilização de um processo urgente, como também não afere da verificação dos requisitos processuais da providência cautelar intentada.
G. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre essa matéria em violação dos deveres judiciais a que está vinculado.
H. No que concerne à da matéria de facto dada como provada, a Entidade Recorrente vem arguir a eliminação dos factos 7 e 8 da matéria assente, na medida em que são factos trazidos à lide pelo próprio tribunal a quo que deles teve conhecimento oficioso.
I. Os citados Despachos da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foram preponderantes para a decisão, sem que a Entidade Recorrente pudesse exercer o contraditório.
J. Não obstante a natureza urgente do processo, impunha-se que a matéria de facto fosse fixada por despacho, atenta a inclusão na mesma de factos de conhecidos oficiosamente pelo Tribunal a quo, dando oportunidade às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a matéria de facto e, se assim o entendessem, reclamarem contra a sua eventual deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação.
K. Não tendo o Tribunal a quo procedido desta forma, há um clamoroso uso abusivo dos poderes que lhe estão confiados.
L. Por outro lado, os citados Despachos da Diretora Nacional consubstanciam meras regras procedimentais, não tendo a virtualidade de derrogar o regime jurídico plasmado na Lei 23/2007, de 4 de julho, com as posteriores alterações. e no Dec. Reg. 84/2007, de 5 de novembro.
M. Por último, a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, por violação do princípio da separação de poderes.
N. A concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada está subordinado ao regime jurídico previsto no art. 88° n.º 2 da Lei 23/2007, de 4 de julho, na sua atual redação, e ao art. 4º do Dec. Reg. 84/2007, de 5 de novembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Reg. 2/2013, de 18 de Mar90.
O. A manifestação de interesse apresentada pelo cidadão estrangeiro consubstancia uma exposição para eventual enquadramento no regime excecional e oficioso de concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada.
P. Apresentada a manifestação de interesse e mediante verificação dos demais requisitos, seguir-se-á a análise pela ora Entidade Recorrente para averiguar da suscetibilidade ou não de proposta de abertura do procedimento oficioso.
Q. Havendo proposta de abertura do procedimento oficioso, a decisão terá que respeitar os trâmites e os critérios previstos na lei, nomeadamente no que respeita à excecionalidade, que se reconduz a motivos de força maior, ou razões pessoais ou profissionais atendíveis.
R. É inequívoco que o legislador pretendeu disciplinar o exercício de uma competência administrativa que prossegue e beneficia o interesse público.
S. Assim, não se verifica um direito da ora recorrida à concessão da autorização de residência requerida que possa ser-lhe reconhecida judicialmente. Tal concessão está, quanto ao preenchimento da excecionalidade, dependente de valorações próprias da atividade administrativa, não sendo possível identificar a partir do caso concreto uma solução como legalmente possível (cf. art. 71° nº 2 do CPTA), pelo que, em respeito pelo principio da separação de poderes não podia o Tribunal a quo determinado o conteúdo do ato a praticar.
T. A manifestação de interesse apresentada pela ora recorrida não tem a virtualidade de despoletar, isto é, de iniciar o procedimento administrativo; perante a manifestação de interesse apresentada, apenas impende sobre a ora Entidade Recorrente um dever de resposta, que implica a ponderação sobre a abertura (ou não) do procedimento administrativo, e não um dever de decisão sobre a solicitação de concessão de autorização de residência, ou seja sobre a pretensão jurídica da ora recorrida.
U. Contrariamente ao determinado na douta sentença recorrida, não estamos perante um ato vinculado da Administração, pelo que não se entende como pôde o Tribunal a quo decidir como decidiu, determinando ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a prática de um ato não vinculado.
V. Termos em que deve o Tribunal julgar procedente, por provado, o presente recurso, determinando a nulidade da sentença ou revogando a decisão sob recurso, com todas as legais consequências, só assim se fazendo justiça.
*
O magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.
Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.
*
DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:
Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).
Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos.
As questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida - estão identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
II.1 - FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido
1 – A A. pagou no dia 17.2.2016, as taxas devidas pela emissão do título de residência e respetivo envio pelo correio, cf. consta do documento de fls 48 do p.a.;
2 – Em 26.1.2017 dirigiu aos serviços do R. o requerimento junto ao r.i. sob o doc. 2, no qual solicitava informação sobre o andamento do procedimento;
3 - No dia 17.2.2016 foi autorizada pela Exmª Inspetora Adjunta .................a prorrogação de permanência por 348 dias, nos termos do n.º 1 do art.º 71.º e do n.º 2 do art.º 72.º ambos da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, cf. doc. constante de fls 47 do p.a.;
4 – No referido documento consta que a A. possuía visto de curta duração desde 2.6.2015, válido até 16.2.2016 e que no dia 17.2.2016 lhe foi concedida a referida prorrogação;
5 – No dia 17.2.2016, a Exmª Inspetora Adjunta .............. elaborou proposta de concessão de autorização de residência ao abrigo do regime excecional previsto no n.º 2 do art.º 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, afirmando “estarem reunidas as condições para que V. Ex.ª utilize o poder discricionário previsto no n.º 2 do art.º 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua atual redação e determine que seja concedida autorização de residência para trabalho a favor da cidadã Alina ..........., cf. doc. constante de fls 49 do p.a.;
6 – Tal autorização não foi ainda proferida (acordo);
7 – Em 21.3.2016 veio a ser proferido o despacho da Exmª Diretora Nacional do SEF do seguinte teor:
« Texto no original»

Facto conhecido do tribunal, no exercício das suas funções, concretamente, no proc. n.º 1898/16BELSB.
8 – O referido despacho veio a ser alterado nos seguintes termos:
« Texto no original»
Facto conhecido do tribunal, no exercício das suas funções, concretamente, no proc. n.º 1898/16BELSB.
9 – A A. apresenta os descontos para a Segurança Social constantes do doc. 4 junto ao r.i.;
10 – A entidade patronal do A. apresenta o registo de remunerações pagas à A. constante do doc. de fls 23 do p.a.;
11 – O A. celebrou contrato de trabalho escrito com a sua entidade patronal, cf. documento constante de fls 28-29 do p.a..
*
II.2 - APRECIAÇÃO DO RECURSO
A sentença ou decisão cautelar recorrida, pela sua especial natureza e brevidade, coloca não poucos problemas.
Tendo presentes as alegações, cumpre-nos apreciar o seguinte contra a decisão recorrida:
- Falta de fundamentação da decisão cautelar;
- Violação do artigo 131º do CPTA;
- Nulidade processual, por violação do contraditório, pela inserção no probatório de 2 factos (nº 7 e nº 8) de conhecimento oficioso do tribunal, sem ouvir antes as partes;
- Violação do princípio constitucional da separação de poderes, já que o TAC exerceu uma competência administrativa, regulada na Lei 23/2007 (vd. artigo 88º/2) e no artigo 54º do DR 84/2007 alt. pelo DR 2/2013.
*
Na decisão jurisdicional, o tribunal, no pressuposto da existência prévia de lei no sentido lato do artigo 1º/2/1ª parte do Código Civil português, procede a várias operações consecutivas, relativas à correção externa e à correção interna da sua decisão: (1ª) a obtenção legal racional da premissa menor da sentença, isto é, da factualidade relevante e integrante da previsão das disposições legais em causa; (2ª) a interpretação jurídica prescritiva das fontes de direito objetivo, de acordo com os artigos 9º e 10º do Código Civil(1), orientada pela Constituição (em que o tribunal deve ter particular contenção na utilização do delicado argumento teleológico-objetivo, devido aos artigos 3º/3, 111º/1, 203º e 204º da Constituição), para a obtenção da premissa maior da sentença, que são as normas jurídicas a aplicar, o direito objetivo aplicável ao caso concreto; e, finalmente, (3ª) a escolha racional-prática da solução que, no estrito espectro das possibilidades reveladas pelo direito objetivo efetivamente aplicável, (i) seja aceitável de um ponto de vista jurídico-racional e (ii) possa ser generalizável para casos análogos futuros (cf. artigos 2º, 13º e 202º ss da Constituição e artigos 9º ss do Código Civil).
*
Passemos, assim, à análise do mérito do recurso.
1 – Sobre a falta de fundamentação da decisão cautelar
A ausência absoluta de fundamentação de facto e ou de direito na sentença é uma ilegalidade grave.
Mas aqui não se verifica esta causa de nulidade decisória, prevista no artigo 615º/1-b) do CPC (cf. LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa…, 3ª ed., nº 21.3.2 e 21.3.3; e LEBRE DE FREITAS/IS.ALEX., CPC Anotado, II, 3ª ed., no comentário ao artigo 615º), ex vi artigo 1º do CPTA, porque a decisão recorrida tem mesmo fundamentação de facto e de direito, ainda que pouco clara e demasiado breve.
2 – Sobre a violação do artigo 131º do CPTA
O artigo 131º dispõe o seguinte: “Quando reconheça a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo, o juiz, no despacho liminar, pode, a pedido do requerente ou a título oficioso, decretar provisoriamente a providência requerida ou aquela que julgue mais adequada, sem mais considerações, no prazo de 48 horas, seguindo o processo cautelar os subsequentes termos dos artigos 117.º e seguintes”.
Consultado o processo no SITAF, bem como o processo físico, vemos que a pretensão cautelar apresentada (cf. artigo 112º do CPTA), no seguimento da aplicação do artigo 110º-A do CPTA, parece ter sido, utilizando embora outras expressões menos rigorosas, de “intimação do SEF para emitir o título de residência solicitado pelo Requerente ao abrigo do artigo 88º da Lei 23/2007”, ao que parece se ter acrescido uma pretensão ao abrigo do artigo 131º do CPTA.
O artigo 88º/2 da Lei nº 23/2007 dispõe o seguinte:
“Excecionalmente, mediante proposta do diretor nacional do SEF ou por iniciativa do membro do Governo responsável pela área da administração interna, pode ser dispensado o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 77.º, desde que o cidadão estrangeiro, além das demais condições gerais previstas nessa disposição, preencha as seguintes condições: a) Possua um contrato de trabalho ou tenha uma relação laboral comprovada por sindicato, por associação com assento no Conselho Consultivo ou pela Autoridade para as Condições de Trabalho; b) Tenha entrado legalmente em território nacional e aqui permaneça legalmente; c) Esteja inscrito e tenha a sua situação regularizada perante a segurança social”.
Mas, a verdade é que a decisão recorrida – a única emitida - não é nenhuma das previstas no artigo 131º do CPTA (artigo invocado no r.i. e ignorado pelo TAC), mas sim a decisão cautelar prevista nos artigos 119º e 120º do CPTA.
Pelo que, logicamente, não houve violação do artigo 131º cit.
3 – Sobre a nulidade processual por violação do contraditório
De acordo com o artigo 5º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA:
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos (essenciais ou principais) articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais (probatórios ou acessórios) que resultem da instrução da causa; factos a incluir, na nossa opinião, na motivação do julgamento de facto e não no probatório;
b) Os factos (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., 2017, pp. 168 ss), desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
O contraditório, princípio jurídico-processual fundamental e conexo com a proibição da indefesa, previsto, v.g., no artigo 3º/2/3 do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA (“2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”), significa, acima de tudo, que o juiz deve dar às partes a possibilidade de influenciarem todas as suas decisões, salvo casos de manifesta inutilidade dessa diligência.
Cf. assim, além da imensa jurisprudência do TC, do STA e do STJ, LEBRE DE FREITAS, Introdução… 4ª ed., 2017, pp. 126 ss; F. FERREIRA DE ALMEIDA, D.P.C., I, 2ª ed., pp. 90 ss; VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Adm., 15ª ed., pp. 444-445.
Trata-se, pois, de uma formalidade processual essencial, quase absoluta.
A violação de tal formalidade essencial do direito processual é uma nulidade processual nos termos previstos no artigo 195º do CPC (“1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes. 3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.”) – cf. assim, por ex., F. FERREIRA DE ALMEIDA, DPC, I, 2ª ed., pp. 92-93.
Ora, os cits. factos provados sob os nº 7 e nº 8 não resultaram dos articulados, sendo do conhecimento oficioso do TAC. E foram, natural e legalmente, factos essenciais ou principais, atendendo à tese constante da decisão recorrida, de uma suposta discricionariedade reduzida a zero no âmbito do artigo 88º da Lei nº 23/2007, precisamente com base - também - nesses factos.
Mas, efetivamente, os autos demonstram-nos que as partes não foram previamente ouvidas sobre a consideração dos mesmos pelo TAC. E esses 2 factos, essenciais ou principais, foram decisivos para a Mmª juiza de direito concluir pela existência de uma suposta discricionariedade reduzida a zero em sede de artigo 88º/2 da Lei 23/2007 e, assim, pelo “fumus boni iuris”.
São factos que, podendo ser pouco relevantes ou operantes (como refere o recorrente), foram decisivos na fundamentação do efetivamente decidido e agora impugnado.
No contexto presente, não há, pois, condições para reduzir tal nulidade processual relativa (ou secundária) a uma mera irregularidade, na linguagem de A. ANSELMO DE CASTRO, in D.P.C.D., III, 1982, pp. 108 ss; redução essa prevista no artigo 195º cit.
Isto quer dizer que, ao abrigo do previsto no artigo 3º do CPC, a Sra. Juiza deveria ter aplicado o contraditório (cf. assim LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 3ª ed., 2017, p. 129), ouvindo as partes sobre a inclusão no probatório de tal factualidade não alegada, mas decisiva para o TAC. Mas não o fez.
Pelo que, ao abrigo do artigo 195º/1-in fine do CPC, há que invalidar o processado desde a ocorrência da omissão do contraditório quanto aos cits. factos - de conhecimento oficioso do TAC.
É ainda de sublinhar que não foi cumprido o previsto no artigo 412º/2-in fine do CPC (“Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.”), ex vi artigo 1º do CPTA.
O TAC, além disso, nada referiu sobre o requisito do periculum in mora.
E se assim não fosse:
4 – Sobre a violação do princípio constitucional da separação de poderes
Está logicamente em causa não apenas o princípio consagrado no artigo 111º/1 da CRP e no artigo 3º/1 do CPTA, mas também o erro de direito quanto ao “fumus boni iuris” relativo à suposta redução a zero da discricionariedade administrativa prevista no cit. artigo 88º/2 da Lei 23/2007 (“Excecionalmente, mediante proposta do diretor nacional do SEF ou por iniciativa do membro do Governo responsável pela área da administração interna, pode ser dispensado o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 77.º, desde que o cidadão estrangeiro, além das demais condições gerais previstas nessa disposição, preencha as seguintes condições: a) Possua um contrato de trabalho ou tenha uma relação laboral comprovada por sindicato, por associação com assento no Conselho Consultivo ou pela Autoridade para as Condições de Trabalho; b) Tenha entrado legalmente em território nacional e aqui permaneça legalmente; c) Esteja inscrito e tenha a sua situação regularizada perante a segurança social”) e ao suposto dever de a A.P. deferir o requerimento do interessado.
Para o recorrente, o TAC exerceu uma competência administrativa, regulada na Lei nº 23/2007 (vd., por ex., o artigo 88º/2) e no D.R. 84/2007 alt. pelo DR 2/2013 (vd., por ex., o artigo 54º). No fundo, diz o recorrente que o TAC errou ao considerar que os factos nº 7 e nº 8, aliados aos demais, criaram uma vinculação absoluta da A.P. a favor da pretensão da cidadã estrangeira interessada.
E, com efeito, o artigo 88º/2 prevê expressamente uma exceção; e exige ainda uma proposta do diretor nacional do SEF ou uma iniciativa do membro do Governo responsável pela área da administração interna, que não existem aqui.
Isto quer dizer, sobretudo num processo cautelar (cf. artigo 120º/1 do CPTA), que o procedimento em que se integra o artigo 88º do regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, bem como a ali prevista margem de livre decisão administrativa (com inevitável aplicação do princípio da proporcionalidade e respetivas ponderações), apelavam a uma especial contenção do juiz quanto à conclusão do deferimento “necessário” da pretensão administrativa apresentada à A.P. ao abrigo do cit. artigo 88º. Este exige valorações próprias da atividade administrativa, não sendo possível identificar a partir do caso concreto uma solução como legalmente possível.
Não há, portanto, aqui, a redução a zero da ampla margem de “liberdade decisória” dada à A.P. no início do nº 2 do artigo 88º da Lei nº 23/2007.
Ou seja, não há “fumus boni iuris”.
Isto sempre lembrando que o TAC nada disse sobre o “periculum in mora”.
Não obstante, o mais importante é que o processado é inválido desde a omissão do contraditório nos termos acima expostos.
*
III - DECISÃO
Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo provimento ao recurso, julgá-lo procedente, e declarar nulo ou anular todo o processado desde a decisão ora recorrida, assim se permitindo ao TAC, se nada mais a isso obstar, (i) cumprir o princípio do contraditório quanto a todos os factos essenciais ou principais – nomeadamente os referidos no artigo 412º/2 do CPC -, (ii) eventualmente ter presente o artigo 131º do CPTA invocado no r.i. e (iii) emitir depois a decisão prevista nos artigos 119º e 120º do CPTA.
Sem custas.
Lisboa, 19-12-2017

Paulo H. Pereira Gouveia, relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre




(1) Enunciados normativos cujo melhor lugar seria a Constituição