Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:88/21.0BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:VITAL LOPES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL;
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES;
DÉFICIT INSTRUTÓRIO.
Sumário:1. A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 42.º da LGT e do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, inclui o IVA (cf. art. 37.º do respectivo Código), mas apenas nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido).

2. A exclusão da possibilidade geral do pagamento em prestações de imposto repercutido a terceiros (mantém-se uma possibilidade extraordinária de pagamento em prestações, mas em condições mais restritivas, nos termos do n.º 3 do art. 196.º do CPPT) resulta do juízo de desvalor associado nas leis tributárias a esse tipo de condutas (que podem mesmo ser qualificadas como crime ou contra-ordenação, de acordo com os arts. 105.º e 114.º do RGIT), em que o devedor do imposto, pese embora tenha tido em seu poder o montante do mesmo, que foi suportado por terceiros, o não entregou integral e de uma só vez nos cofres do Estado, como se lhe impunha.

3. Não contendo os autos elementos factuais que permitam decidir de acordo com a interpretação normativa acolhida pelo tribunal ad quem, devem os mesmos baixar ao tribunal recorrido para instrução complementar.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2.ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

A Exma. Representante da Fazenda Pública, recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou procedente a reclamação deduzida por “P... A... UNIPESSOAL, LDA.”, contra o despacho proferido na execução fiscal n.º 3530202001... (IVA), de indeferimento do pedido de pagamento da dívida em prestações.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes e doutas conclusões:
«
I. Com todo o respeito devido, entende-se que a Douta Sentença errou quer nos factos dados como provados, quer do regime jurídico aplicável aos factos dados, vindo assentar a sua decisão final num duplo argumento interpretativo: argumento literal e argumento teleológico, mas nenhum deles apto a concluir como concluiu;

II. Primeiramente não se considera admitido por acordo, os factos fixados nas alíneas A) e B) da matéria assente”, o que consta do art. 14 da PI da Reclamante é a posição da Reclamante, tal como o que consta das fls. 39 do PA é novamente o entendimento da Reclamante, não se encontra em nenhum dos documentos mencionados a posição da Administração Tributária quanto a este facto, para que seja fixado com matéria assente admitida por acordo.

III. Posto isto, a interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT, e quanto ao elemento literal, defende o Tribunal “a quo” que, «caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou outra de sentido equivalente.»;

IV. Veja-se, porém, que o legislador começa por referir “imposto retido na fonte”, para de seguida utilizar a expressão “legalmente repercutido a terceiros”. Assim, na mesma frase, utiliza o legislador duas diferentes expressões. Para a retenção na fonte “o imposto retido”. Para a repercussão do imposto, imposto “legalmente repercutido a terceiros”, e não o “imposto repercutido”. Pelo n.º 3 do art. 9.º do CC, ao qual a Sentença recorrida faz menção, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

V. E não existem quaisquer dúvidas que o IVA é imposto legalmente repercutido, o que resulta logo do disposto no art.º 37.º do CIVA, sendo a repercussão intrínseca ao funcionamento do mesmo;

VI. Ao procurar o aplicador da Lei unir onde o legislador intencionalmente distinguiu, está necessariamente a fazer incorreta aplicação da norma. Teria feito uma correta análise do elemento literal caso o que estivesse inscrito na letra da norma fosse: “o imposto retido na fonte ou repercutido a terceiros”. Mas não é isso que lá está. Não remete, o legislador, para a efetiva repercussão (já o faz para a retenção), mas antes para o imposto em que existe repercussão legalmente fixada, pelo que, independentemente de ter existido no caso;

VII. No mesmo erro interpretativo caiu o Tribunal quanto ao elemento teleológico quando, partindo de uma análise que se mostrou não ter adesão na letra da Lei vai procurar reforçar a conclusão a que chegou: «o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º (RGIT)];

VIII. Com efeito, a Lei atribui tanto ou maior desvalor às situações em que existiu liquidação, dedução, repercussão, como nas situações em que nenhuma destas realidades se verificou. É assim porque também nos casos em que, não existindo liquidação, pelo que não há efetiva repercussão, estamos diante de uma ação tipificada quer criminal, quer contraordenacionalmente. Veja-se, por exemplo, o disposto no n.º 1 do art.º 103.º do RGIT, segundo o qual, “Constituem fraude fiscal, punível com prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária (…)”;

IX. Também (e principalmente) a não repercussão do imposto acarreta distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Para mais, a não liquidação e respetiva não repercussão do imposto concretiza-se, a maior das vezes, em atuação claramente demonstrativa de maior desvalor, concretizada muitas das vezes pelo recurso a meios ilícitos, pelo que seria sempre insólito terem estes casos tratamento favorecido em regime de pagamento prestacional na execução fiscal – situação que se verificaria também nas situações de repercussão ilegal, com indevido recebimento do imposto;

X. O IVA é imposto legalmente repercutido a terceiros. Caso o legislador, no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT pretendesse apenas abranger os casos de efetiva repercussão não teria que constar expressão distinta da expressão utilizada na mesma frase para as retenções na fonte. Como na situação da retenção na fonte não ficou a constar legalmente retido na fonte, também para as situações do IVA bastaria ter ficado a expressão “repercutido a terceiros” caso o entendimento adotado fosse aquele que o Tribunal lhe atribui;

XI. Por outro lado, como ficou já decidido, entre outros, no Acórdão do STA, de 15.04.2015, proc.º 0331/15, não pode a Autoridade Tributária conceder moratórias de pagamento para além das legalmente permitidas – art.º 36.º da LGT e n.º 3 do art.º 85.º do CPPT, as quais são mesmo fundamento de responsabilidade tributária subsidiária. Também como concluiu já o mesmo STA, entre outros, em Douto aresto com data de 20.12.2011, emitido no proc.º 01074/11: “As dívidas resultantes da falta de entrega de imposto legalmente repercutido a terceiros, como é o caso do IVA, só excepcionalmente podem ser pagas em prestações, sendo, para isso, necessário que se demonstre dificuldade financeira excepcional do devedor e previsíveis consequências económicas gravosas. E esse pagamento só pode ser efectuado num máximo de 12 prestações mensais, não podendo o valor de qualquer delas ser inferior a uma unidade de conta no momento da autorização.” [atualmente 24 prestações];

XII. Estando em causa dívida de IVA, imposto legalmente repercutido a terceiros, está, no caso, legalmente impedido o seu pagamento prestacional em número superior a 24 prestações, não padecendo o Despacho reclamado de qualquer ilegalidade. Fez, o Tribunal recorrido, incorreta aplicação do direito, a qual teve por base uma errada interpretação quer do elemento literal – não distinguindo o que o legislador expressamente separou -, quer do elemento teológico – diferenciando desvalor de ação que o legislador não diferencia;

XIII. Ao decidir, como decidiu, incorreu o Tribunal em erro de julgamento de Direito, e violou o disposto no art.ºs 85.º e 196.º do CPPT e art.º 36.º da LGT.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem a julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta Sentença ora recorrida, declarada nula, ou revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o pedido improcedente.».

Contra-alegações, não foram apresentadas.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo ser de negar provimento ao recurso e manter integralmente o julgado.

Com dispensa dos vistos legais dada a natureza urgente do processo, e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, a questão nuclear que importa decidir reconduz-se a saber se a sentença incorreu em erro de julgamento (i) quanto à decisão de facto vertida nos pontos A) e B) da matéria assente e (ii) na interpretação que fez do disposto no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«
1 - Factos provados
De acordo com a prova documental junta aos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão:

A) Em 24-06-2020, foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Almada-3, contra a ora Reclamante, o PEF n.º 3530202001..., para a cobrança coerciva de dívidas relativas a IVA, no montante de € 456.574,15, e respetivos acréscimos legais (cf. fls. 34 do PA);

B) O IVA referido na alínea antecedente não foi recebido dos clientes da Reclamante (por acordo, cf. fls. 39 do PA e artigo 14.º da Petição Inicial);

C) Em 13-10-2020, a Reclamante apresentou, junto do Serviço de Finanças de Almada-
3, requerimento em que solicitou o pagamento da quantia de € 339.001,94, no âmbito do PEF referido na alínea anterior, em 60 prestações mensais (cf. fls. 43 a 49 do PA);

D) Em 24-11-2020, os serviços da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças
de Setúbal emitiram a “Informação n.º EGDE-219/2020” a propor o indeferimento do
requerimento referido na alínea anterior, da qual se extrai o seguinte teor:
“A executada solicita o pagamento em 60 prestações mensais, nos termos do n.° 5 do artigo 196.° do CPPT, invocando dificuldades económicas, não podendo satisfazer de uma só vez o montante da dívida e acrescido, da seguinte forma:
a) No primeiro ano propõe-se liquidar a quantia anual de € 30.000,00 (trinta mil euros), em 12 (doze) prestações, mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a começar em Novembro de 2020;
b) No segundo ano propõe-se a liquidar a quantia anual de € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros), em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), a começar em Novembro de 2021;
c) No terceiro ano propõe-se a liquidar a quantia anual de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros), em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de € 6.000,00 (seis mil euros), a começar em Novembro de 2022;
d) No quarto ano propõe-se a liquidar a quantia anual de € 84.000,00 (oitenta e quatro mil euros), em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de € 7.000,00 (sete mil euros), a começar em Novembro de 2023;
e) No quinto ano propõe-se a liquidar a quantia anual de € 111.001,94 (cento e onze mil e um euros e noventa e quatro cêntimos), em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de € 9.250,161 (nove mil duzentos e cinquenta euros e cento c sessenta e um cêntimos), a começar em Novembro de 2024
Estatui o n.° 4 do artigo 196.° do CPPT. que "o pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 7 unidades de conta no momento da autorização."
Estabelece ainda o n.° 5 do artigo 196.° do CPPT, que "nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a divida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades de conta."
No entanto e nos termos dos n.°s 2 e 3 do 196.° do CPPT o regime de pagamento em prestações das dívidas exigíveis em processo executivo não é aplicável às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respetivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, como é o caso das retenções na fonte de IRS e do IVA, sendo excepcionalmente admitida essa possibilidade quando se demonstre dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, e apenas com o limite máximo de 24 prestações mensais.
Analisado o PEF em causa, verifica-se que o mesmo diz respeito a IVA, pelo que qualquer plano de prestações que possa ser autorizado enquadra-se apenas nos n.°s 2 e 3 do artigo 196.° do CPPT, não podendo as prestações autorizadas serem superiores a 24.
Acresce ainda referir que nos termos do n.º 1 do artigo 196° do CPPT "as dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais" (sublinhado nosso).
Temos assim que, nos termos do artigo 198.º n.º 2 e 3 do CPPT e, de harmonia com o entendimento veiculado através do Oficio Circulado n.º 60 087 da DSGCT, de 2012.03.06, a emissão de despacho de deferimento, ou de indeferimento, dos pedidos de pagamento em prestações passe a ser efectuada imediatamente.
Face ao atrás mencionado, somos de parecer que não se encontram preenchidos os requisitos para a autorização do pagamento da dívida em 60 prestações, nos termos e condições solicitadas.” (cf. fls. 96 a 102 do PA);

E) Em 26-11-2020, o Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de
Setúbal emitiu despacho na informação referida na alínea antecedente, do qual se extrai o seguinte teor:
“Confirmo.
Pelo que, de harmonia com os fundamentos que constam nesta informação, INDEFIRO o pedido de pagamento da divida exigível nestes autos em 60 prestações mensais” (cf. fls. 96 do PA).

*

Não existem outros factos alegados relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito, que importe referir como provados ou não provados.

*
2 - Motivação da decisão de facto

Nos termos conjugados do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT, e dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT, o tribunal aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Nestes termos, a convicção deste Tribunal fundou-se na análise crítica de toda a prova constante dos autos, nomeadamente nos documentos carreados pelas partes e constantes do PA, e ainda na falta de contestação dos factos pelas mesmas aduzidos, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório, tendo sido considerados os factos relevantes para a decisão, dentro das várias soluções plausíveis da questão de direito.».

*

Pretende a Recorrente que a sentença incorreu em erro de julgamento ao dar como provado (no ponto B)) que o IVA em cobrança na execução referida no precedente ponto A), “não foi recebido dos clientes da Reclamante”, facto que motivou no acordo das partes, expresso a fls.39 do PA e artigo 14.º da douta P.I.

De facto, compulsados os autos e o PA (digitalizado), tudo o que se pode retirar é que no procedimento, através de mensagem electrónica dirigida à execução, a fls.39 do PA, a Reclamante, ora Recorrida, referia o seguinte: “Agradecia que levassem em consideração [na apreciação do pedido de pagamento em prestações] que o IVA que vai liquidar, a empresa não recebeu dos respectivos clientes em causa, pelo que se torna um encargo da mesma”; e no processo (artigo 14.º da P.I.), alegava que “…o IVA que está a ser cobrado coercivamente à reclamante, não foi pela mesma cobrado a terceiros”.

Na verdade, não alcançamos qualquer instrumento de prova do qual se possa extrair a concordância da AT com o alegado pela reclamante, ainda que tácita, porquanto, na posição de jure que perfilha em nada releva que o executado tenha, ou não, repercutido a terceiros o IVA que lhe está ser exigido coercivamente na execução fiscal.

Como assim, haverá que suprimir o ponto B) da matéria assente, procedendo a impugnação da decisão de facto ali vertida.

B.DE DIREITO

Como muito bem sinaliza o Exmo. Senhor PGA, a questão controvertida dos autos – que consiste em indagar se a referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 42.º da LGT e do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, inclui o IVA (cf. art. 37.º do respectivo Código), mas apenas nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido) – já foi objecto de apreciação no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07/04/2018, tirado no proc.º 0580/18 (Rel. Conselheiro Francisco Rothes), cuja linha decisória vamos seguir pela excelência dos argumentos convocados, embora com as adaptações necessárias:

Por regra, as dívidas tributárias devem ser pagas integralmente e de uma só vez. No entanto, a lei – que não é alheia às dificuldades económicas dos devores e à necessidade de assegurar a efectiva cobrança dos impostos e, assim, a arrecadação da receita em ordem à satisfação das necessidades financeiras do Estado – permite, nalgumas circunstâncias e observado que seja determinado condicionalismo, que o pagamento seja feito em prestações. Esta forma de pagamento, porque constitui uma moratória, só é admissível nos termos da lei, pois o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, como decorrência dos princípios da legalidade e igualdade tributárias, impede que a AT conceda quaisquer facilidades de pagamento que não estejam expressamente consagradas na lei (…).

O pagamento em prestações das dívidas tributárias está previsto no art. 42.º da LGT nos seguintes termos:
«1- O devedor que não possa cumprir integralmente e de uma só vez a dívida tributária pode requerer o pagamento em prestações, nos termos que a lei fixar.
2- O disposto no número anterior não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários e, nos termos da lei, às quantias retidas na fonte ou legalmente repercutidas a terceiros ou ainda quando o pagamento do imposto seja condição da entrega ou transmissão dos bens».

Deste artigo resulta, desde logo e sem mais, a exclusão deste regime de pagamento em prestações relativamente às dívidas de recursos próprios comunitários (Os quais são regulados pelas normas de direito da União Europeia que, de acordo com o art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, com o art. 1.º da LGT e com o art. 1.º do CPPT, prevalecem sobre o direito interno.); resulta também, que «nos termos da lei» – ou seja, nos termos da lei que regular o pagamento em prestações desse tipo de dívidas –, não será possível o pagamento das quantias que provenham de retenção na fonte, das quantias «legalmente repercutidas a terceiros» e daquelas que resultem de imposto que houvesse de ser pago como «condição da entrega ou transmissão dos bens».

Cumpre agora considerar a regulamentação do pagamento em prestações das quantias que respeitam a quantias «legalmente repercutidas a terceiros».

Essa regulamentação, no que respeita ao pagamento em prestações requerido depois de instaurada a execução fiscal, consta do art. 196.º do CPPT que, no que ora nos interessa, dispõe:
«1- As dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal.
2- O disposto no número anterior não é aplicável às dívidas de recursos próprios comunitários e às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, salvo em caso de falecimento do executado.
3- É excepcionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas referidas no número anterior, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso couber, quando:
a) O pagamento em prestações se inclua em plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação, e decorra do plano ou do acordo, consoante o caso, a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano; ou
b) Se demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
4- O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
5- Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.
[…]
8- A importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, os quais serão incluídos na guia passada pelo funcionário para pagamento conjuntamente com a prestação.
[…]».

Deste regime resulta que para as dívidas provenientes de imposto “legalmente repercutido a terceiros” a regra é a da não possibilidade de pagamento em prestações, como resulta dos n.ºs 1 e 2 do citado artigo. No entanto, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a lei consagra excepções a essa regra, sendo uma delas a prevista na alínea b) daquele n.º 3: quando «[s]e demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização».

Regressando aos autos, constata-se que a sentença recorrida interpretou de modo restritivo o preceituado no n.º2 do art.º 196.º do CPPT, limitando a sua aplicação às situações em que o IVA em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros, posição com que se não conforma a Recorrente, para quem também estão abrangidas por aquela norma as situações em que o imposto liquidado e não entregue, não foi repercutido.

Antes do mais, impõem-se alguns breves considerandos sobre a repercussão tributária, «fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através na sua integração no preço de um qualquer bem» (SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2.ª edição, pág. 399.), característico dos impostos indirectos e que é usado como critério de distinção relativamente aos impostos directos. Assim, os impostos sobre o consumo «tomam como sujeito passivo pessoa distinta do titular da riqueza que se quer ver onerada, só se atingindo este por meio da repercussão. O IVA dir-se-á assim um imposto indirecto na medida em que, sendo por regra exigido do vendedor, o legislador pressupõe que através da repercussão sobre os preços ele acabe “indirectamente” por ser suportado pelo comprador, cuja riqueza se pretende afinal onerar» (SÉRGIO VASQUES, idem, pág. 217.). O facto de a lei pôr a cargo de outrem, que não aquele que pretende tributar, a obrigação da entrega do imposto prende-se, essencialmente, com razões de praticabilidade (Como diz SÉRGIO VASQUES, idem, pág. 400, «seria impraticável exigir o imposto de um número incontável de compradores, muitos deles sem preparação sequer para o efeito, mostrando-se indispensável concentrar a gestão do imposto nos vendedores, em número mais limitado e com melhor organização».), mas também de anestesia fiscal.

Em sede de IVA a repercussão está consagrada no art. 37.º do respectivo Código, que dispõe no seu n.º 1: «A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços».

Esta exigência legal de repercussão do IVA tem duas finalidades: uma, a de garantir que o imposto incida exclusivamente sobre o valor acrescentado em cada fase do circuito económico até à oneração do consumidor final e, assim, obviar a que se produza o efeito cumulativo ou “de cascata” típico dos impostos plurifásicos; outra, que seja o consumidor (que é o titular da riqueza que se visa tributar) a suportar o encargo tributário (Cfr. SÉRGIO VASQUES, idem, págs. 401/402.).

Tendo isto presente, não podemos deixar de observar que (…) a letra da lei aponta no sentido de que só as dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, do imposto efectivamente repercutido impede que as mesmas sejam sujeitas ao regime geral do pagamento em prestações dos créditos tributários.

Na verdade, caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou outra de sentido equivalente.

Por outro lado, a utilização do particípio passado do verbo repercutir refere-se a «uma acção que já se encontra finalizada»; parece-nos inclusive que a noção de conclusão da acção verbal comportada pelo particípio passado se refere a um concreto acto, afastando a possibilidade de se referir à repercussão legal em abstracto.

É certo que a letra da lei, constituindo o ponto de partida da tarefa hermenêutica e limite para extrair o sentido da norma (Com a função de «eliminar aqueles sentidos que não tenha qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 182 e 189).), não é o elemento decisivo, nem sequer o mais importante, papel que está reservado à unidade do sistema, nos termos do n.º 2 do art. 9.º do CC. Na verdade, na interpretação da lei, para além do referido elemento gramatical, há ainda que atender ao elemento lógico, exigindo este, designadamente, que se considere o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma (elemento teleológico) e que se atente nas demais disposições que regulam o pagamento em prestações, designadamente as por dívidas de imposto retido, a fim de perscrutar a sua natureza e o seu âmbito de relevância, bem como haverá também que atender ao lugar que aí ocupa a norma interpretanda (elemento sistemático), sendo que apenas da conjugação de todos esses elementos interpretativos surgirá o verdadeiro sentido daquela norma (cf. BAPTISTA MACHADO, Idem, págs. 175 a 192.).

Interroguemo-nos, pois, sobre a teleologia da norma: porque impede o n.º 2 do art. 196.º o pagamento em prestações sob o regime geral do imposto legalmente repercutido?

A nosso ver – e buscando apoio também no impedimento paralelo que existe relativamente ao imposto retido –, o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT)] (Neste sentido, LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotado, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pág. 202.).

A não ser assim, i.e., caso a lei autorizasse o pagamento em prestações do imposto repercutido a terceiros (ou do imposto retido) ao abrigo do regime geral de pagamento em prestações, estaria a permitir-se ao devedor do imposto financiar-se à custa do repercutido (contribuinte de facto) e da AT, com as consequentes distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Por outro lado, admitir-se-ia que quem recebeu de terceiros a totalidade do imposto, com a obrigação de o entregar integralmente e de uma só vez, o entregasse faseadamente em igualdade de circunstâncias com quem tivesse de suportar ele mesmo o encargo com o imposto, numa solução que o legislador não pode ter querido.

Vista a letra da lei e a sua teleologia, concluímos, com a sentença que a lei apenas veda o recurso ao regime geral do pagamento das dívidas em prestações quando o imposto em cobrança coerciva tenha sido efectivamente repercutido a terceiro pelo devedor, nada obstando a que quando o não tenha sido, apesar da previsão legal o impor, o devedor usufrua daquele regime.

Esta interpretação normativa do n.º2 do art.º 196.º do CPPT, já se entrevê, não prescinde da prova de que o IVA que está a ser cobrado coercivamente à Recorrida, não foi por ela repercutido a terceiros (como alega).

Sucede, porém, que suprimido o ponto B) da matéria assente por eficazmente impugnado, não contêm os autos suporte factual que permita decidir de acordo com a interpretação normativa por nós secundada.

Importa, pois, que os autos baixem à 1.ª instância para instrução e posterior decisão conforme a interpretação normativa preconizada, o que se determinará no dispositivo do acórdão.


IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para instrução e prolação de nova decisão conforme a interpretação normativa preconizada.

Sem custas.

Lisboa, 30 de Setembro de 2021

[O Relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes–Desembargadores integrantes da formação de julgamento, Luísa Soares e MÁRIO REBELO].


Vital Lopes