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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08216/14
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:02/05/2015
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:ACTO TRIBUTÁRIO E FACTO TRIBUTÁRIO. NOÇÃO.
CONCEITO DE RENDIMENTO TRIBUTÁRIO EM SEDE DE C.I.R.S. (CONCEPÇÃO DE RENDIMENTO-ACRÉSCIMO).
INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA.
RENDIMENTOS DE CAPITAIS. ARTº.5, Nº.1, DO C.I.R.S.
ARTº.5, Nº.2, AL.H), DO C.I.R.S. ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS.
ARTº.7, DO C.I.R.S.
ARTº.6, Nº.4, DO C.I.R.S.
ÓNUS DA PROVA.
Sumário:1. O acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos. Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada.
2. Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva.
3. As normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação.
4. A definição de rendimentos de capitais, introduzida pela Lei 30-G/2000, de 29/12, no artº.5, nº.1, do C.I.R.S., traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias de rendimentos em que opera o I.R.S.
5. O artº.5, nº.2, al.h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de I.R.S. os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados.
6. Por sua vez, o artº.7, do C.I.R.S., define o momento da sujeição à tributação dos rendimentos de capitais, ou seja, define o momento em que o imposto se torna exigível.
7. O artº.6, nº.4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
8. Não se encontram reunidos os factos índice que permitem à A. Fiscal fazer o enquadramento de valores contabilísticos como rendimentos da categoria E, colocados à disposição dos sócios, nos termos previstos no artº.5, nºs.1 e 2, al.h), do C.I.R.S., quando não se pode valer da presunção prevista no artº.6, nº.4, do C.I.R.S.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
"....................................-........................................, L.DA.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mmº. Juiz do T.A.F. de Loulé, exarada a fls.62 a 71 do presente processo, através da qual julgou totalmente improcedente a impugnação intentada pelo recorrente, tendo por objecto liquidações oficiosas de I.R.S. (retenções na fonte), relativas aos anos de 2009, 2010 e 2011 e no montante total de € 32.755,53.
X
O recorrente termina as alegações (cfr.fls.94 a 99 dos autos) do recurso formulando as seguintes Conclusões:
1-O cofre da sociedade não dispunha, aquando da inspecção em Janeiro de 2013, do saldo físico correspondente ao saldo contabilístico constante da escrituração;
2-De tal facto não é lícito que se presuma arbitrariamente ter havido distribuição de lucros da sociedade;
3-O direito a lucros numa sociedade depende da vontade dos sócios e decorre de uma deliberação dos mesmos em assembleia geral e constante de acta, o que não aconteceu;
4-Não tiveram lugar quaisquer deliberações sociais nesse sentido, facto que teria de obedecer ao cumprimento dos formalismos previstos nos artigos 246 e 376 do Código Sociedades Comerciais;
5-Quanto muito, poderia concluir-se que a sociedade teria mutuado tal importância aos sócios, o que seria mais lógico e aceitável, mas nunca uma distribuição de lucros;
6-Não foi assim que a AT entendeu, fundamentando o seu procedimento na al. h) do n° 2 do art.º 5 conjugada com o n° 1 e subalínea 2 da alínea a) do n° 3 do art.º 7 ambos do CIRS;
7-Tais disposições legais não consagram qualquer presunção de distribuição efectiva de lucros da sociedade pelos sócios;
8-A AT não pode confundir a presunção de distribuição de lucros com os pressupostos legais de incidência a que a distribuição efectiva de lucros está sujeita, por força daquelas supra citadas normas;
9-A distribuição de lucros pelos sócios de uma sociedade depende da vontade dos sócios reunidos em assembleia geral e não de vontades externas à sociedade, o que decorre das normas do Código das Sociedade Comerciais , designadamente da alínea e) do n° 1 do art.º 246 e da al. b) do n° 1 do art.º 376, C.S.C.;
10-A AT não pode presumir arbitrariamente que houve distribuição de lucros pelos sócios da ora recorrente, pois tal presunção teria de estar consagrada e ínsita nas disposições legais invocadas (artºs 5 e 7 do CIRS), o que não acontece por mais extensiva que façamos a sua interpretação, quer gramatical, quer do espírito do legislador (art.º 73 da LGT);
11-Se tal presunção se vislumbrasse, o que não é o caso, ela seria ilidível, de acordo com a regra geral constante do art.º 73 da LGT;
12-Os factos em que se baseiam os Serviços de Inspecção - que não havia saldos físicos em cofre nas datas de 31/12/2009, 31/12/2010 e 31/12/2011- não estão provados;
13-Os Serviços só podem provar que, em Janeiro de 2013, não se encontrava saldo físico no cofre da sociedade e não naquelas ditas datas de 31/12/2009, 31/12/2010 e 31/12/2011;
14-A situação verificada pelos Serviços de Inspecção poderá, sim, configurar porventura uma outra figura jurídica, nomeadamente a de mútuo aos sócios, mas nunca a de distribuição de lucros;
15-Não houve assembleias gerais da sociedade, ora recorrente, em que tivesse sido deliberado pelos sócios qualquer distribuição de lucros;
16-Das actas de aprovação de contas relativas aos anos em causa, não constam deliberações de distribuição de lucros;
17-As normas em que os serviços de Inspecção pretensamente "fundamentam" a presunção de distribuição de lucros (artº 5 n° 2 al. h) e artº 7 n° 1 e 3 al. a) subalínea 2) todos do CIRS) não são mais que os pressupostos de incidência de IRS para os casos em que há distribuição efectiva de lucros;
18-A ora recorrente somente declarou os seus resultados na Declaração mod. 22 e anexos, para efeitos de tributação em IRC e;
19-Não declarou os lucros que "distribuiu" através da Declaração Mod. 10, pois não procedeu a qualquer distribuição de lucros como, certamente por lapso, o julgador pretendeu fazer crer no Relatório da Sentença (pág. 7), pelo que se refuta a construção de tal raciocínio e da sua conclusão;
20-Não cabe à ora recorrente provar que não houve distribuição de lucros, cabe sim à AT provar que houve, pois é quem invoca os factos;
21-O ónus da prova cabe a quem invoca os factos de harmonia com o artigo 74 n° 1 da LGT;
22-Em suma e por último, a falta do dinheiro em cofre, em Janeiro de 2013, quanto muito poderá configurar um mútuo aos sócios e nunca uma distribuição de lucros;
23-Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida e, consequentemente, anuladas as liquidações referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, bem como dos respectivos juros.
X
Não foram produzidas contra-alegações.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido do não provimento do presente recurso (cfr.fls.111 e 112 dos autos).
X
Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.64 a 67 dos autos - numeração nossa):
1-A impugnante foi alvo de uma ação de inspeção externa, a coberto das ordens de serviço n.ºs ........................... e ......................., de 26/07/2012 e de 7/02/2013, respetivamente, em relação aos exercícios de 2009 e 2010, alargada ao ano de 2011, mediante a nº. ....................... (cfr.cópia do relatório de inspeção tributária junta a fls.26 a 37 do processo administrativo apenso);
2-No âmbito da inspeção identificada no nº.1 foram projetadas correções, designadamente, nos valores de € 9.294,20, € 6.237,85 e € 14.791,53, retenções na fonte de IRS, a título definitivo, nos termos dos artigos 5, 7 e 71 do CIRS, relativamente às quais a impugnante exerceu o direito de audição prévia (cfr.documentos juntos a fls. 34 a 38 dos presentes autos);
3-Por carta datada de 21/01/2013, assinada pelo gerente da impugnante, dirigida aos Serviços de Inspeção Tributária, e entrada naquele serviço em 22/01/2013, a impugnante comunicou que «conforme solicitado pelos senhores inspectores tributários o valor que constitui o saldo de caixa está a ser reunido e vai ser depositado na conta bancária da firma, muito em breve» (cfr.documento junto a fls.33 dos presentes autos);
4-Em 28/03/2013 foi elaborado o RIT que, no que à presunção de distribuição de lucros respeita, concluiu, do seguinte modo:
"(...)
Foi efectuada uma análise aos valores constantes da conta de caixa da sociedade (conta 11 do POC/SNC - Caixa), tendo-se verificado o seguinte:
No início de 2009, constava um saldo devedor de € 28.026,80, saldo este que aumentou nos exercícios de 2009, 2010 e 2011, respectivamente em € 46.471,84, € 29.013,10 e € 68.797,82, totalizando deste modo no final de cada um dos anos € 74.498,64, € 103.511,90 e € 172,309,72.
No quadro seguinte podemos verificar os totais movimentados a débito e a crédito na conta caixa, ascendendo o acréscimo global destes três anos a € 144,282,92.

Ano
Débitos
Créditos
Acréscimo
2009
75.760,90
29.239,06
46.471,84
2010
62.693,21
33.679,96
29.013,26
2011
92.470,99
23.673,17
68.797,82
Total
230.925,10
86.642,18
144.282,92

Determinados os acréscimos, importa analisar a proveniência dos mesmos, ou seja, dos movimentos registadas a débito que traduzem as entradas na conta de caixa. Podemos afirmar que as entradas reflectem na sua essência os recebimentos verificados na actividade operacional da empresa pelos serviços prestados aos clientes e seguradoras convencionadas, podendo-se resumir da seguinte forma:

Proveniência dos movimentos a débito na conta caixa
Entrada
2009
2010
2011
Total
Recebimento
13.207,57
11.667,95
9.124,45
33.999,97
Outros Rec
58,33
1.075,26
166,71
1.300,30
Estornos
75,00
0,00
199,83
274,83
Levantamentos
Bancários
62.420,00
49.950,00
82.980,00
195.350,00
Total
75.760,90
62.693,21
92.470,99
230.925,10

(…)
O capital próprio é variável ao longo da sua existência, pois altera-se de forma positiva com os lucros e de forma negativa com os prejuízos.
Como tal, podemos afirmar que sendo o capital social inicial de € 5.000,00, através da actividade da empresa ao longo dos anos, tendo registado lucros e não os tendo distribuído, a situação líquida cresceu € 204.161,19, que não é mais do que o capital adquirido.
A situação líquida, no fundo, reflecte o seu património líquido, verificando-se neste caso e em 2011.12.31, valores que se podem considerar da mesma ordem de grandeza entre o capital adquirido e o saldo da conta de caixa.
De modo a tentar comprovar os valores constantes do saldo da caixa, ou pelo menos a sua constituição, foi emitido no dia 2013.01.15, o Despacho n.º DI201300083, com esse fim.
Refira-se que tal não foi possível, conforme certidão de diligências, que se anexa ao presente relatório (anexo 2). Entretanto, deu entrada nestes Serviços uma carta assinada pelo gerente da sociedade, onde é dado conta que o valor que constitui o saldo de caixa está a ser reunido e que vai ser depositado na conta bancária da firma, muito em breve (anexo 3).
Depreende-se assim que o saldo de caixa (e o capital adquirido - lucros obtidos ao longo dos anos) não se encontra de facto na sociedade, pelo que se poderá presumir como tendo sido distribuídos sob a forma de lucros aos detentores do capital.
Porque o saldo da conta caixa se tem vindo a formar ao longo dos anos, será de se considerar, somente, como lucros distribuídos a importância de € 144.282.92, que corresponde ao acréscimo verificado nos exercícios de 2009, 2010 e 2011, nos montantes anuais da € 46.471,84, € 29.013,26 e € 68.797,82, respectivamente.
A saída de fundos da sociedade (inexistência física do saldo devedor de caixa) afigura estarmos perante a distribuição de lucros obtidos, uma vez que foram colocados à disposição dos respectivos titulares de capital e sujeitos a tributação nos termos da al.h), do n.º 2, do art.º 5.º do Código do Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS), conjugado com o n.º 1 do artigo 7.º e ainda o mesmo artigo n.º 3, alínea a), subalínea 2), incidindo sobre os mesmos retenção na fonte a título definitivo à taxa de 20% para 2009 e 21,5% para 2010 e 2011 (a taxa foi alterada pela redacção da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho), calculada nos termos da al. c), do n.º 1, do art.º 71 do CIRS.

Nestes termos, verifica-se que à sociedade competiria a retenção na fonte de IRS, a título definitivo, no montante abaixo calculado, não o tenda feito, pelo que se apura o imposto em falta nos respectivos exercícios:
Retenção taxa liberatória em falta
Ano
Presunção lucros distribuídos
Valor
2009
46.471,54
9.294,20
2010
29.013,26
6.237,85
2011
68.797,82
14.791,53
Total
144.282,92
30.323.58

(...)"
(cfr.cópia do relatório de inspeção tributária junta a fls.26 a 37 do processo administrativo apenso);

5-Em 23/04/2013 foram emitidas as seguintes liquidações relativas a retenções na fonte de IRS:
a) Liquidação n.º ........................., relativa ao ano de 2009, no valor de € 9.294,20, acrescido de juros compensatórios de € 1.184,56, no total de € 10.478,76;
b) Liquidação n.º ..........................., relativa ao ano de 2010, no valor de € 6.237,85, acrescido de juros compensatórios de € 545,51, no total de € 6.783,36, e
c) Liquidação n.º ..........................., relativa ao ano de 2011, no valor de € 14.791,53, acrescido de juros compensatórios de € 701,88, no total de € 15.493,41.
(cfr.documentos juntos a fls.5, 12 e 18 do processo administrativo apenso);
6-A Assembleia Geral da sociedade impugnante reuniu em 31/03/2010, 31/03/2011 e 31/03/2012, não constando das respetivas atas de reunião deliberação de distribuição de lucros (cfr.documentos juntos a fls.9 a 14 dos presentes autos);
7-Em 24/09/2013 a presente impugnação judicial foi apresentada no Serviço de Finanças de Faro (cfr.data de entrada aposta a fls.5 dos presentes autos).
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Não se mostram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão do mérito da causa de acordo com as possíveis soluções de direito…”.
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, referenciados em cada uma das alíneas do probatório e na posição assumida pelas partes nos articulados…”.
X
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
X
Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida considerou, em síntese, julgar totalmente improcedente a presente impugnação e, consequentemente, manteve os actos tributários objecto do processo (cfr.nº.5 do probatório).
X
Antes de mais, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, redacção da Lei 41/2013, de 26/6; artº.282, do C.P.P.Tributário).
O apelante discorda do decidido aduzindo, em síntese e conforme supra se alude, que não cabe ao recorrente provar que não houve distribuição de lucros, cabe sim à A. Fiscal provar que houve, pois é quem invoca os factos de harmonia com o artº.74, nº.1, da L.G.T. Que o direito a lucros numa sociedade depende da vontade dos sócios e decorre de uma deliberação dos mesmos em assembleia geral e constante de acta, o que não aconteceu. Que a Fazenda Pública não pode presumir, arbitrariamente, que houve distribuição de lucros pelos sócios da ora recorrente, pois tal presunção teria de estar consagrada e ínsita nas disposições legais invocadas (artºs.5 e 7, do C.I.R.S.), o que não acontece por mais extensiva que façamos a sua interpretação, quer gramatical, quer do espírito do legislador. Que a situação verificada pelos Serviços de Inspecção Tributários poderá configurar, porventura, uma outra figura jurídica, a de mútuo aos sócios, mas nunca a de distribuição de lucros (cfr.conclusões 1 a 22 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo, supõe-se, consubstanciar erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
O acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos (cfr.Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág.324; Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1996, pág.57; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.269). Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 26/2/2013, proc.5713/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/12/2013, proc.7073/13).
Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva (cfr.nº.5 do preâmbulo do C.I.R.S.; Paulo de Pitta e Cunha, A Fiscalidade dos Anos 90, O Novo Sistema de Tributação do Rendimento, Almedina, 1996, pág.20; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.379).
Revertendo ao caso dos autos, deve, antes de mais, fazer-se a exegese da norma constante do artº.5, nº.2, al.h), do C.I.R.S., na redacção em vigor nos anos de 2009, 2010 e 2011 (redacção da Lei 109-B/2001, de 27/12 - cfr.artº.12, nº.1, do C.Civil), norma que tinha o seguinte conteúdo:
ARTº.5
(Rendimentos da categoria E)
1 – Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 – Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente:
(...)
h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;
(...)

Por sua vez, o artº.7, nºs.1 e 3, al.a), 2), do C.I.R.S., na redacção em vigor nos anos de 2009, 2010 e 2011 (redacção da Lei 30-B/2002, de 30/12 - cfr.artº.12, nº.1, do C.Civil), tinha o seguinte conteúdo:
ARTº.7
(Momento a partir do qual ficam sujeitos a tributação os rendimentos da categoria E)
1 - Os rendimentos referidos no artigo 5º. ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respectivo quantitativo, conforme os casos.
(...)
3 - Para efeitos do nº.1, entende-se:
a) Quanto ao nº.2 do artigo 5º.:
(...)
2) A colocação à disposição, para os rendimentos referidos nas alíneas h), i), j), l) e r), assim como dos certificados de consignação;
(...)
Releve-se que as normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/10/2012,proc.5320/12;ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/12/2013, proc.7073/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.7384/14).
A definição de rendimentos de capitais, introduzida pela Lei 30-G/2000, de 29/12, no artº.5, nº.1, do C.I.R.S., traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias de rendimentos em que opera o I.R.S. (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 20/12/2012, proc.3410/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.7384/14; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.226 e seg.).
O artº.5, nº.2, al.h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de I.R.S. os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados (cfr.José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.258 e seg.; Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 2ª. edição, Almedina, 2010, pág.112 e seg.).
Por sua vez, o citado artº.7, do C.I.R.S., define o momento da sujeição à tributação dos rendimentos de capitais, ou seja, define o momento em que o imposto se torna exigível, sendo que, no caso concreto, relevam os nºs.1 e 3, al.a), 2), da norma em causa (cfr. José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.332 e seg.).
“In casu”, atenta a factualidade provada (cfr.nº.3 do probatório), o próprio recorrente reconheceu que o valor que constitui o saldo da conta de caixa da empresa estava a ser reunido e iria ser depositado na conta bancária da firma, muito em breve, assim admitindo que o mesmo não se encontrava fisicamente na mesma conta.
Mas será que tal reconhecimento incidente sobre o saldo da conta de caixa da empresa legitimava a A. Fiscal a avançar para a estruturação das liquidações oficiosas relativas a retenções na fonte de I.R.S. identificadas no nº.5 do probatório.
Pensamos que não.
Expliquemos porquê.
É que, atendendo aos elementos contabilísticos existentes e ao esclarecimento prestado pelo próprio sujeito passivo, na pessoa do seu gerente, não se encontravam reunidos os factos índice que permitiam à A. Fiscal fazer o enquadramento daquele valor como rendimentos da categoria E, colocados à disposição dos sócios, nos termos previstos no artº.5, nºs.1 e 2, al.h), do C.I.R.S., visto que tais factos índice estão relacionados com as presunções consagradas no artº.6, do mesmo diploma.
Por outras palavras, a Fazenda Pública não se podia valer da presunção, prevista no artº.6, nº.4, do C.I.R.S., de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, se presumem feitas a título de lucros ou adiantamento dos lucros (com esta presunção o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja "causa" jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos). Assim é, porque, no caso “sub judice”, o que está em causa é o saldo devedor da conta de caixa, fisicamente inexistente na mesma no final de cada um dos exercícios em apreço, que não contas de sócios.
A inexistência desse saldo devedor não legitimava a A. Fiscal a presumir a distribuição de lucros, como defende o recorrente, visto que tal situação contabilística podia ter origem noutros vectores, nomeadamente, na constatação de erros de contabilização da própria conta caixa da sociedade.
Concluindo, competia à A. Fiscal fazer prova dos pressupostos do seu agir (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.), sendo que, no caso concreto tal não se verificou, assim padecendo as liquidações oficiosas impugnadas de vício de violação de lei.
Por tudo o que deixámos dito, o recurso merece provimento e, em consequência, revoga-se a decisão do Tribunal “a quo”, a qual padece do vício que lhe é imputado pelo recorrente, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO E REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA, MAIS JULGANDO PROCEDENTE A IMPUGNAÇÃO QUE ORIGINOU O PRESENTE PROCESSO.
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Condena-se o recorrido em custas, sem prejuízo da dispensa de pagamento da taxa de justiça devida em recurso.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 5 de Fevereiro de 2015



(Joaquim Condesso - Relator)


(Catarina Almeida e Sousa - 1º. Adjunto)



(Bárbara Tavares Teles - 2º. Adjunto)