Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:112/18.4BECTB
Secção:CT
Data do Acordão:05/18/2023
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ÂMBITO DE COGNIÇÃO NO DIREITO SANCIONATÓRIO
NULIDADE INSUPRÍVEL
FALTA DE DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
DIMINUIÇÃO DOS DIREITOS DE DEFESA
Sumário:I-A impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa tem um âmbito amplificado a toda a situação sob escrutínio, na medida em que o Juiz tem poderes de cognição alargados ao conhecimento do mérito da questão, podendo conhecer de todas as questões que pudesse conhecer. O Juiz não se encontra vinculado aos factos tidos como provados na decisão impugnada (cfr. n° 4 do artigo 64.°, n° 2 e do artigo 72.° ambos do RGCO) devendo, por isso, valorar todos os factos relevantes para a decisão, independentemente da proveniência destes.

II-A questão da nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima pode ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal, desde que da factualidade provada se possa concluir pela sua verificação, não traduzindo qualquer violação do princípio do contraditório.

III-Não é admissível no contexto sancionatório, a mera remissão para o Relatório de Inspeção Externa, e para o Auto de Notícia, na medida em que a decisão de administrativa de aplicação de coima deve ser suficiente, per se, para percecionar o iter atinente às infrações cometidas, para que possam ser contraditados os respetivos preenchimentos do tipo.

IV-Não contemplando a decisão administrativa de aplicação de coima no respeitante ao ilícito contraordenacional tipificado no artigo 114.º do RGIT, o montante de imposto exigível, o valor da prestação tributária entregue/valor da prestação tributária em falta, e o termo do prazo para cumprimento da obrigação, ter-se-á de concluir pela sua nulidade.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO


O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA, (doravante Recorrente) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que julgou verificada a nulidade da decisão administrativa de aplicação da coima proferida no processo de contraordenação nº 1228201706000064442, instaurado em nome de F. Unipessoal, Lda, no âmbito da qual lhe foi aplicada uma coima única no montante de €20.886,38, acrescida de custas, pela prática de duas infrações previstas nos artigos 27.º, n.º 1 e 41.º n.º 1, alínea b), ambos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), e punidas pelos artigos 114.º, n.º 2, n.º 5, alínea a) e 26.º, n.º 4 ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e, em consequência, decretou-se a anulação dos subsequentes termos do processo de contraordenação dependentes daquela decisão.


A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:


“a) Foi violado pela douta sentença o artigo 3/3 do CPC.

b) Deparamo-nos com uma decisão surpresa em virtude da douta sentença assentar em fundamentos, ainda que de conhecimento oficioso, que não foram anteriormente ponderados pelas partes, não constando os mesmos do pedido nem da causa de pedir da impetrante, que adere à fundamentação formal e “nada tem a opor à fixação da” coima no montante de 50,00€ referente ao período de tributação 201512T, verificando-se uma total desvinculação da solução adotada pelo tribunal “a quo” relativamente ao alegado.

c) Como salientado pela fazenda pública em sede de contestação/resposta, na sua p.i. a impetrante requer, por um lado, a suspensão da instância nos termos do artigo 55º do RGIT, e invoca, por outro lado, fundamentos que contendem com a legalidade da liquidação adicional de IVA subjacente ao processo de contraordenação, que depois explicita no processo de impugnação nº 103/18.5BECTB.

d) Mais referindo a impetrante no ponto 4 da sua p.i. que, “quanto ao pagamento da coima no montante de EUR 50,00, referente ao período de tributação 201512T a ora recorrente nada tem a opor à fixação da mesma, razão pela qual não a irá contestar” (sendo que, por lapso, a douta sentença faz referência ao período 2013/10T).

e) E é em virtude da não oposição ao pagamento da coima no montante de 50,00€, referente ao período de tributação 201512T, que a fazenda pública apenas se pronuncia sobre a decisão da fixação da coima contra a ora impetrante decorrente da falta de liquidação de IVA relativo ao 4º trimestre de 2014 (201412T), e apenas sobre os fundamentos explicitados pela recorrente antes elencados.

f) Vindo então o tribunal “a quo” a declarar a nulidade da decisão de aplicação da coima recorrida por não poder “ter-se como adequadamente cumprido … o requisito da «descrição sumária dos factos» a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 79.º do RGIT”, em virtude de considerar que não consta, na decisão de aplicação da coima, o valor do imposto em falta e “se a se a conduta da Recorrente consiste em falta de entrega de imposto liquidado ou de imposto que não foi liquidado e que o devesse ser”.

g) Foi, pois, violado pela douta sentença o artigo 3/3 do CPC, nos termos do qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

h) Violação, pela douta sentença, do artigo 71.º do Regime Geral das Contraordenações (D.L. 433/82, de 27/10).

i) A impetrante, na sua p.i., delimita o objeto do recurso referindo explicitamente que “nada tem a opor à fixação da” coima no montante de 50,00€, referente ao período de tributação 201512T.

j) O tribunal “a quo”, ao incluir na sua decisão a coima aplicada concernente ao quarto período trimestral de IVA/2015 (201512T, sendo que, por lapso, a douta sentença faz referência ao período 2013/10T), estará a violar o artigo 71/1 do RGCO, nos termos do qual “O recurso pode ser retirado até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º”, sendo que, na situação em apreço a coima no valor de 50,00€, não consta sequer do objeto do recurso de contraordenação.

k) Sem conceder, violação, pela douta sentença, do artigo 29/1, alínea c), do artigo 58/2, e do artigo 70º, todos do RGIT.

l) Como salientado nos autos, relativamente à contraordenação em apreço, a recorrente apresentou, no decorrer do procedimento de inspeção tributária, no serviço de finanças da Guarda, por forma a poder beneficiar da redução da coima para 75% do montante mínimo legal, pedido de redução de coima nos termos do artigo 29/1 alínea c) do RGIT, razão pela qual não foi levantado auto de notícia.

m) E, decorrido o prazo de pagamento da coima sem que o mesmo tenha sido efetuado nos termos do artigo 30/1 alínea b) do RGIT, o serviço de finanças da Guarda, em cumprimento do artigo 58/2 do RGIT, instaurou então um procedimento de contraordenação que teve por base a declaração da recorrente a pedir a regularização da situação tributária.

n) Deparamo-nos, pois, com um procedimento de contraordenação que tem origem num pedido de redução de coima do sujeito passivo, a demonstrar, “ab initio”, ser conhecedor dos factos e das normas violadas e punitivas subjacentes à contraordenação, sobre eles não se pronunciando na sua p.i., aceitando-os, sendo certo que os mesmos são de novo levados ao seu conhecimento no âmbito da notificação para defesa efetuada nos termos do artigo 70º do RGIT, junta aos autos.

o) Desta forma, a decisão de aplicação da coima em apreço não padecerá da nulidade insuprível que lhe vem assacada.

p) Assim, tal como requerido pela impetrante na sua p.i., tendo a recorrente interposto processo de impugnação no qual é discutida a situação tributária de cuja definição depende a qualificação da infração em apreço, e encontrando-se o prazo prescricional do processo de contraordenação suspenso “ope legis” em virtude da interposição da impugnação, não haverá obstáculo à suspensão do mesmo até ao trânsito em julgado da impugnação.

q) Quanto aos fundamentos de ilegalidade da liquidação adicional de IVA subjacente ao processo de contraordenação ora em apreço invocados, os mesmos haverão, pois, de ser dirimidos no processo de impugnação nº 103/18.5BECTB, o que se requer.

r) Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso e revogada a douta sentença recorrida, nos termos supra expostos.

Pelo que, com o mais que Vossas Excelências se dignarão suprir, deve ser dado provimento ao recurso e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida.”


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Notificada a Arguida e o Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP), nos termos e para os efeitos previstos no artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, ex vi artigo 3.º, al. b), do RGIT, mantiveram-se ambos silentes.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão, considera-se provada a seguinte factualidade constante dos autos:

A) Em 13/12/2017, no Serviço de Finanças da Guarda, foi levantado auto de notícia à Recorrente, sendo-lhe imputada a prática de duas infrações ao disposto nos artigos 27.º, n.º 1 e 41.º n.º 1, alínea b), CIVA, punidas pelos artigos 114.º, n.º 2, n.º 5, alínea a) e 26.º, n.º 4 do RGIT, relativamente aos períodos 2014/12T e 2015/12T [cf. fls. 36 dos autos].

B) Em Em 13/12/2017, com base no referido auto de notícia foi instaurado o processo de contraordenação n.º 1228201706000064442 [cf. fls. 35 dos autos].

C) Em 11/01/2018, no âmbito do referido processo de contraordenação, foi proferida decisão de fixação da coima, da qual se destaca o seguinte teor:

D) A Recorrente foi notificada de decisão de fixação da coima através de ofício expedido, por correio registado, em 22/01/2018 [cf. fls. 45 e 46-verso dos autos].

E) A petição do presente recurso deu entrada no Serviço de Finanças, em 19/02/2018 [cf. fls. 3 dos autos].


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Consta ainda consignado na decisão recorrida:

“Com interesse para a decisão a proferir nada mais se provou.”


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A motivação da matéria de facto assentou no seguinte:

“Os factos provados assentam na análise dos documentos constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.”


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III) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que julgou verificada a nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação da coima proferida no processo de contraordenação nº 1228201706000064442, pela prática de duas infrações previstas nos artigos 27.º, n.º 1 e 41.º n.º 1, alínea b), ambos do CIVA e punidas pelos artigos 114.º, n.º 2, n.º 5, alínea a) e 26.º, n.º 4 ambos do RGIT.


Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 411.º, do Código de Processo Penal (CPP) ex vi art.º 41.º, n.º 1, do RGCO, ex vi art.º 3.º, al. b), do RGIT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.


Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir se:

- Foi preterido o artigo 3.º, nº3, do CPC, encontrando-nos perante uma decisão surpresa;
- Face à delimitação do objeto do recurso, e à concreta assunção de conformidade e legitimidade com a coima fixada de €50,00, foi preterido o artigo 71.º do RGCO;
- Incorreu em erro de julgamento ao ter julgado verificada a nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima, violando, inclusive, os normativos 29.º, alínea c), 58.º, nº2, e 70.º, todos do RGIT;

Apreciando.

A Recorrente alega que foi, desde logo, violado o artigo 3.º, nº3, do CPC, na medida em que a Recorrida nunca havia convocado na sua petição inicial a nulidade insuprível por falta da descrição sumária dos factos, ocorrendo, assim, uma decisão surpresa.

Mais propugna pela violação do artigo 71.º do RGCO, porquanto na delimitação do objeto do recurso à uma assunção de conformidade e legitimidade com a coima fixada de €50,00.

Subsidiariamente, convoca, igualmente, a preterição dos artigos 29.º, alínea c), 58.º, nº2, e 70.º, todos do RGIT, na medida em que nos encontramos perante um procedimento de contraordenação que tem origem num pedido de redução de coima do sujeito passivo, donde conhecedor dos factos e das normas violadas e punitivas subjacentes à contraordenação, inexistindo, assim, a sentenciada nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima.

Comecemos, então, pela aduzida violação do artigo 3.º, nº3, do CPC.

Ab initio, importa, desde já, relevar que a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa tem um âmbito amplificado a toda a situação sob escrutínio, na medida em que o Juiz tem poderes de cognição alargados ao conhecimento do mérito da questão, podendo conhecer de todas as questões que pudesse conhecer (Cfr. Acórdão de Uniformização de Justiça, do STJ, proferido no processo nº 13/17.3T8PTB.G1-A.S1, datado de 23 de maio de 2019).

Acresce, outrossim, que a nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação da coima é de conhecimento oficioso, podendo, assim, o julgador dela conhecer se entender que a decisão padece de tal nulidade, não obstando, naturalmente, a sua falta de convocação no articulado inicial e não carecendo de ser previamente suscitada e arguida pelo julgador.

Com efeito, reitere-se o Juiz não está vinculado aos factos tidos como provados na decisão administrativa impugnada (cfr. as disposições conjugadas do n° 4 do artigo 64.°, n° 2 e do artigo 72.° ambos do RGCO) devendo, por isso, valorar todos os factos relevantes para a decisão, independentemente da proveniência destes. Assim, a questão da nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima pode ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal, desde que da factualidade provada se possa concluir pela sua verificação.

No concernente à violação do princípio do contraditório e uma vez que a questão já foi analisada no Aresto deste Tribunal, no âmbito do processo nº 2263/16, datado de 05 de junho de 2019, e uma vez que integrámos o Coletivo e, naturalmente, sufragamos a fundamentação jurídica nele contemplada, eximimo-nos de expender quaisquer considerações adicionais, transcrevendo-se infra o seu teor e na parte que, ora, se reputa de relevo:

“O recorrente aduz, em primeiro lugar, que o Tribunal “a quo” ao considerar nula a decisão de aplicação de coima, dado não terem sido ponderados os elementos determinantes para a graduação da mesma e elencados no artº.27, do R.G.I.T., tal decisão constitui uma surpresa, para ambas as partes. Que tal constitui violação do princípio do contraditório que tem consagração constitucional (cfr.artº.32, nº.5, da C.R.P.) e no processo penal, no artº.327, do C.P.P., aqui subsidiariamente aplicável (cfr. conclusões 6 a 8 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo consubstanciar, supomos, a preterição de uma formalidade legal e consequente existência de uma nulidade processual no âmbito dos presentes autos.

Deslindemos se o presente processo padece de tal vício.

Estatui o artº.3, nº.3, do C.P.Civil, que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório (actualmente entendido como "direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo"), não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Com o aditamento desta norma, operado pelo dec.lei 329-A/95, de 12/12, visou-se a proibição da prolação de decisões-surpresa e aplicando-se tal regra não apenas na 1ª. Instância mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos. Deve, pois, concluir-se que o princípio do contraditório, o qual se configura como um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, assegura não só a igualdade das partes, como, no que aqui interessa, é um instrumento destinado a evitar as citadas decisões-surpresa (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 29/1/2014, rec.663/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 24/5/2011, proc.3514/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 6/8/2013, proc.6900/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 21/05/2015, proc.8167/14; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 29/6/2017, proc.2035/09.9BELRA; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, IV volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.368).
Revertendo ao caso dos autos, deve concluir-se que o Tribunal “a quo” ao considerar nula a decisão de aplicação de coima, dado não terem sido ponderados os elementos determinantes para a graduação da mesma e elencados no artº.27, do R.G.I.T., não violou o citado princípio do contraditório e as normas constantes dos artºs.32, nº.5, da C.R.P., e 327, do C.P.P., pelos seguintes motivos, os quais passamos a enumerar:

1-A exigência do cumprimento do princípio do contraditório, prevista nos citados artºs.32, nº.5, da C.R.P., e 327, do C.P.P., remete-nos para as questões suscitadas durante a audiência de discussão e julgamento em processo penal, fase de processo que não existiu no caso dos autos, em que a decisão do Tribunal “a quo” foi estruturada através de despacho (cfr.artº.64, do R.G.C.O.; despacho exarado a fls.84 do processo físico);

2-A falta de requisitos da decisão de aplicação de coima consubstancia nulidade insuprível em processo de contra-ordenação tributária, de conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado da decisão final do processo (cfr.artº.63, nºs.1, al.d), e 5, do R.G.I.T.);

3-Encontramo-nos perante situação que se reconduz à interpretação e aplicação das regras de direito, face à qual o Tribunal não está sujeito às alegações das partes (cfr.artº.5, nº.3, do C.P.Civil).

Por último, sempre se dirá que será questionável a legitimidade da Fazenda Pública, enquanto entidade que estruturou a decisão administrativa de aplicação de coima, para em sede de recurso vir alegar a violação do princípio do contraditório, nesta fase processual (cfr.artº.80, nº.1, do R.G.I.T.; artº.59, nº.2, do R.G.C.O.).

Concluindo, sem necessidade de mais amplas considerações, nega-se provimento ao presente esteio do recurso.”

Face a todo o expendido anteriormente, conclui-se pela inexistência da aduzida violação do princípio do contraditório. Sem embargo do exposto, cumpre relevar que, in limite, a aludida alegação sempre estaria votada ao insucesso na medida em que a situação vertente sempre seria suscetível de enquadramento em “caso de manifesta desnecessidade”. (1)

Prosseguindo.

A Recorrente, convoca, outrossim, a violação do normativo 71.º do RGCO, no entanto, mais uma vez não lhe assiste razão, na medida em que o citado normativo se reporta, conforme resulta claramente da sua epígrafe à retirada do recurso, nele se preceituando que: “O recurso pode ser retirado até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º” consignando, adicionalmente, no seu nº2 que: “Depois do início da audiência de julgamento, o recurso só pode ser retirado mediante o acordo do Ministério Público.”

Ora, como é bom de ver, a situação alegada pela Recorrente não consubstancia a aduzida violação, em nada podendo ser entendida como uma “retirada do recurso”, sendo certo que, não é minimamente substanciada qualquer ultrapassagem dos poderes de cognição do Tribunal a quo, e aduzida, em conformidade, qualquer nulidade.

Ademais, atenta a decisão prolatada pelo TAF de Castelo Branco, no sentido da verificação da nulidade da decisão insuprível, a mesma agregava a nulidade no seu todo, razão pela qual, e sem necessidade de quaisquer considerandos adicionais, improcede a convocada violação do artigo 71.º do RGCO.

Subsiste, então, por aferir se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter decidido pela procedência da arguida nulidade insuprível.

Comecemos por chamar à colação a fundamentação expendida pelo Tribunal a quo para estear a verificação da convocada nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima.

O Tribunal a quo entendeu que a decisão administrativa de aplicação de coima padecia de nulidade prevista na alínea d), do n.º 1 do artigo 63.º do RGIT, porquanto “[a] decisão de aplicação da coima não indica o valor de imposto que, em cada um dos períodos de 2014/12T e 2013/10T, não foi entregue ao Estado.

Deste modo, não constando da decisão de aplicação da coima o valor do imposto em falta, enquanto elemento essencial da contraordenação em causa, então, desde logo é evidente que tal decisão não cumpre o requisito da «descrição sumária dos factos».

Acresce salientar que, para além da falta de indicação do valor da prestação tributária em falta, a decisão de aplicação da coima não descreve, ainda que de forma sumária, quaisquer factos imputáveis à Recorrente que sejam puníveis como falta de entrega da prestação tributária nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 114.º do RGIT, não dando a conhecer se a conduta da Recorrente consiste em falta de entrega de imposto liquidado ou de imposto que não foi liquidado e que o devesse ser, sendo certo que não satisfaz tal exigência a mera alusão ou remissão para o relatório de inspeção tributária.

Deste modo, concluímos que não pode ter-se como adequadamente cumprido, na decisão de aplicação da coima, o requisito da «descrição sumária dos factos» a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 79.º do RGIT, verificando-se, assim, a nulidade insuprível prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º do mesmo diploma legal.”

Vejamos, então, se a decisão recorrida merece a censura que lhe é gizada, inexistindo, assim, a sentenciada nulidade.

Preceitua o normativo 63.º, nº1, do RGIT, sob a epígrafe de nulidades no processo de contraordenação tributário, que:

“ 1 - Constituem nulidades insupríveis no processo de contraordenação tributário:

a) O levantamento do auto de notícia por funcionário sem competência;

b) A falta de assinatura do autuante e de menção de algum elemento essencial da infração;

c) A falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa;

d) A falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas, incluindo a notificação do arguido.”

Enunciando, por seu turno, o artigo 79.º do RGIT quais os requisitos que a decisão administrativa de aplicação de coima deve conter enumerando-os como se descreve:

a) - A identificação do arguido e eventuais comparticipantes;

b) - A descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas;

c) - A coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação;

d) - A indicação de que vigora o princípio da proibição da "reformatio in pejus";

e) - A indicação do destino das mercadorias apreendidas;

f) - A condenação em custas.”

No concernente ao requisito consignado na alínea b), conforme doutrinam JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, (2) , os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa de aplicação de coima, previstos no artigo 79.º do RGIT, e de entre eles, os que impõem a descrição sumária dos factos, e indicação das normas violadas e punitivas, “visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar aquela decisão”.

A narração dos factos visa assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, os quais poderiam ficar diminuídos se não constasse da decisão a descrição, ainda que sumária, dos factos que justificaram a aplicação da coima.

Sendo certo que o aludido requisito da decisão administrativa de aplicação de coima “descrição sumária dos factos” tem de ser interpretado em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê e pune a infração imputada ao arguido, donde os factos que importa descrever, ainda que sumariamente, na decisão de aplicação da coima não são senão os essenciais e integrantes do tipo de ilícito em causa.

Visto o direito que releva para o caso dos autos, importa, então, transpor o mesmo para o caso dos autos.

No caso vertente, no item atinente à descrição sumária dos factos é evidenciado o seguinte: “foi levantado auto de notícia pelos seguintes factos Artº 27 nº1 e 41 nº1 b) CIVA-Falta de pagamento do imposto (T), Período de Tributação 20142t. Data do Termo do Cumprimento da Obrigação 2015-02-15: Artº 27 nº1 e 41 nº1 b) CIVA-Falta de pagamento do imposto (T), Período de Tributação 201512t. Data do Termo do Cumprimento da Obrigação 2016-02-15; Suspen: Aguarda relatório da inspecção: Fixado mínimo leg. os quais se dão como provados.”

Ora, do supra expendido e no sentido ajuizado pelo Tribunal a quo, inexiste uma concreta identificação e descrição sumária dos factos, sendo que a mesma não pode ser realizada por mera e conclusiva remissão para o respetivo auto de notícia e bem assim para um “potencial” Relatório Inspetivo, porquanto ainda nem, tão-pouco, corporizado.

É certo que depois, no item “normas infringidas e punitivas” constam as normas infringidas supra identificadas e bem assim as punitivas, concretamente, os artigos e 114.º, nº2, 5, alínea a), e 26.º, nº4, ambos do RGIT, o respetivo período de tributação, a data da infração e a coima fixada em concreto.

Contudo, não obstante, constarem da decisão administrativa de aplicação de coima os preceitos legais que foram violados, as normas punitivas e o período a que respeita a infração, a verdade é que quanto à concreta contextualização da infração nada é densificado existindo, como visto, uma remissão para o respetivo Auto de Notícia e uma conclusiva alegação para um latente Relatório de Inspeção Tributária.

Sendo certo que, neste contexto, e como já evidenciado anteriormente, não é admissível uma fundamentação por remissão, tendo a decisão de administrativa de aplicação de coima de ser suficiente, per se, para se percecionar o iter atinente à infração cometida, para que possa ser contraditado o respetivo preenchimento do tipo. (3)

Note-se, neste particular, que a norma punitiva em questão se coaduna com a falta de entrega da prestação tributária (artigo 114.º do RGIT), e a verdade é que atentando no item da descrição sumária dos factos constante na decisão visada não é possível ter presente os elementos essenciais que integra o respetivo ilícito contraordenacional, não comportando, particularmente, o montante de imposto exigível, o valor da prestação tributária entregue/valor da prestação tributária em falta.

É certo que no concernente ao artigo 114.º do RGIT, a partir da nova redação dada à alínea a) do nº 5 do citado normativo, pela Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, a falta de menção do recebimento de IVA na decisão de aplicação de coima, por prestação não entregue à AT, não é suscetível de provocar nulidade insuprível prevista no artigo 63.º n.º 1, b), do RGIT, a verdade é que, ainda assim, tem sempre de constar, expressamente, na aludida descrição -ainda que por referência a um quadro pradonizado- o respetivo valor, o período e o termo do prazo de cumprimento da obrigação. (4)

Logo, não resultam minimamente claros e demonstrados na decisão administrativa de aplicação de coima os elementos essenciais para se percecionar as faltas em questão e em que termos essas faltas podem ser censuradas à Arguida, o que configura, efetivamente, insuficiência na descrição sumária dos factos, donde nulidade insuprível.

De relevar, ainda neste conspecto, que carece de qualquer relevo o aduzido em o), porquanto, como já evidenciado anteriormente, a decisão administrativa de aplicação de coima tem de ser suficiente por si só, sendo certo que, in casu, nem tão-pouco, é feita referência expressa ou implícita ao aludido processo de redução de coima.

Com efeito, como doutrinado no Aresto do STA proferido no processo nº 0218/15, de 17 de outubro de 2015: “Se os factos descritos não são factos tipicamente ilícitos e os factos tipicamente ilícitos alegadamente cometidos não vêm descritos na decisão de aplicação da coima, o processo de contra-ordenação enferma de nulidade insuprível (artigos 63.º e 79.º, n.º 1 alínea b) do RGIT).” (destaques e sublinhados nossos).

Note-se, ademais, que inexistindo os valores das prestações tributárias em falta, tal coarta, desde logo, a possibilidade de aferir se as coimas foram fixadas no mínimo ou em valor distanciado do mesmo, o que, como é bom de ver, assume relevância fundamental para a defesa cabal das coimas aplicadas, mormente, em sede de dosimetria das mesmas. Não podendo, naturalmente, relevar uma alusão conclusiva a “Fixado mínimo leg” sem qualquer substanciação para que se possa, desde logo, avaliar da concreta dosimetria da coima.

Neste particular, vide o Aresto do STA, prolatado no âmbito do processo nº 03155/16, datado de 16 de setembro de 2020, do qual se extrata, designadamente, o seguinte:

“Já em nota ao art. 212º do CPT, equivalente ao art. 79º do RGIT, Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão2 referiam que “a descrição dos factos, ainda que sumária, não pode limitar-se a afirmar conclusões vagas ou a reproduzir as expressões contidas na norma que prevê a contra-ordenação. É necessário descrever os actos materiais praticados pelo arguido, a data, o local, se possível, ou aqueles que deixou de praticar estando obrigado a fazê-lo”.

Entre os requisitos enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 79º do RGIT, o requisito da "descrição sumária dos factos" é sem dúvida o que serve de principal fundamento para a anulação das decisões administrativas de aplicação de coima. Mas o que vem a ser a "descrição sumária dos factos"? Não poderão deixar de ser os factos praticados ou omitidos pelo arguido que integram os elementos típicos da contraordenação e a sua imputação ao agente a título de dolo ou negligência.

Como se deixou exarado no acórdão da Rel. de Lisboa de 06/04/2011 (proc. nº 1724/09.2TFLSB) "No direito das contra-ordenações ao invés do que é corrente no direito criminal, existe em regra a separação entre a enunciação das normas de dever, das normas de conexão e das normas de sanção, com constante recurso a remissões".

Como se referiu supra, citando Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, (Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, Áreas Editora, 2010, 4ª ed., anotações ao art. 79º, pp. 517 e ss.), sendo necessário «assegurar que o arguido se apercebe dos factos que lhe são imputados, não pode considerar-se suficiente uma indicação factual implícita, dedutível do enquadramento jurídico que na decisão é dado à infracção.»

E se a apreciação dos termos concisos e sumários em que deve ser efetuada essa descrição sumária dos factos pode ser encarada de forma mais ou menos exigente, tanto mais que estamos perante decisões em que essa descrição é feita em aplicações informáticas com campos formatados, também é certo que esse entendimento deve ter como limite o direito do arguido a exercer a sua defesa.

Ora, no caso concreto, pese embora a arguida tenha relacionado a infracção imputada com as correcções e alterações decorrentes da apresentação da declaração de substituição de IRC, não resulta minimamente claro na decisão de aplicação de coima qual foi a forma de apuramento do montante ali consignado e que alegadamente devia ter sido entregue até 15/12/2013 e em que termos essa falta pode ser censurada à arguida, o que configura insuficiência na descrição sumária dos factos.” (destaques e sublinhados nossos).

No mesmo sentido, se decidiu no Aresto deste TCAS, prolatado no âmbito do processo nº 424/19, datado de 24 de março de 2022, cujo sumário, ora, se extrata:

“I-A narração dos factos visa assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, os quais poderiam ficar diminuídos se não constasse da decisão a descrição, ainda que sumária, dos factos que justificaram a aplicação da coima.

II-O requisito da decisão administrativa de aplicação de coima “descrição sumária dos factos” tem de ser interpretado em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê e pune a infração imputada ao arguido, donde os factos que importa descrever, ainda que sumariamente, na decisão de aplicação da coima não são senão os essenciais e integrantes do tipo de ilícito em causa.

III-Não é admissível no contexto sancionatório, a mera remissão para o Relatório de Inspeção Externa, e para o Auto de Notícia, na medida em que a decisão de administrativa de aplicação de coima deve ser suficiente, per se, para percecionar o iter atinente às infrações cometidas, para que possam ser contraditados os respetivos preenchimentos do tipo.

IV-Não contemplando a decisão administrativa de aplicação de coima no respeitante ao ilícito contraordenacional tipificado no artigo 123.º do RGIT, a natureza da operação que levou à assunção da falta de emissão da fatura, a data em que a fatura deveria ter sido emitida, o destinatário da mesma, o seu montante e quais as razões subjacentes à assunção da prática da infração, ou seja, da falta de emissão da fatura, e não comportando, outrossim, no atinente ao ilícito previsto no artigo 114.º do RGIT, o montante de imposto exigível, o valor da prestação tributária entregue/valor da prestação tributária em falta, e o termo do prazo para cumprimento da obrigação, ter-se-á de concluir pela nulidade da decisão administrativa de aplicação da coima.”

Assim, sendo fundamental que a descrição dos factos e a indicação das normas punitivas permita à arguida tomar cabal e esclarecido conhecimento da conduta que lhe foi reprovada e ao abrigo de que norma lhe foi imputada a contraordenação, de modo a assegurar-lhe a possibilidade do exercício efetivo do seu direito de defesa, face a todo o exposto, e no sentido ajuizado pelo Tribunal a quo, entendemos ser nula a decisão administrativa de aplicação da coima, pois que dela não constam os requisitos mínimos que a lei manda observar quanto ao dever de fundamentação da decisão e que visam permitir ao visado contra ela reagir no exercício do seu direito de defesa.

Uma nota final para evidenciar que não cumpre tecer quaisquer considerandos atinentes ao evidenciado em p), na medida em que a questão não foi objeto de apreciação na decisão recorrida. Com efeito, julgada verificada a nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação de coima tal inviabiliza o conhecimento das demais questões suscitadas pela Recorrente.

E por assim ser, a decisão recorrida que julgou nula a decisão administrativa de aplicação de coima recorrida ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 63.º do RGIT, com a consequente anulação dos termos subsequentes termos do processo de contraordenação dependentes dessa decisão, não padece dos invocados erros de julgamento, devendo, por isso, ser confirmada.



***


IV. DECISÃO

Nestes termos, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, manter a decisão recorrida.


Sem custas.

Registe e notifique.


Lisboa, 18 de maio de 2023

(Patrícia Manuel Pires)

(Jorge Cortês)

(Luísa Soares)


















1) Vide, designadamente, Acórdão prolatado no âmbito do processo nº 9919/19.4T8LSB.L1.S1, datado de 14.01.2021.
2) Regime Geral das Infrações Tributárias, Anotado, Áreas Editora, 2.ª edição, p. 468
3) Vide neste sentido, Acórdãos do STA proferidos nos processos nºs 361/09, e 1120/08, datados de 08.07.2009 e 18.02.2009, e TCAS processo nº 1026/12, de 11.04.2019.
4) Vide, Aresto do STA, interpretação a contrario, proferido no processo nº 0163/18.9BEBRG 0529/18, datado de 16.01.2020.