Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:112/20.4BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/18/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Sumário:É inconstitucional a norma do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol que possibilita a aplicação de uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência/defesa pelo arguido.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. A Federação Portuguesa de Futebol, Recorrente nos autos, notificada da decisão sumária proferida em 15.01.2021, não se conformando com o seu conteúdo, vem, ao abrigo do n.º 3 do artigo 652.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, requerer que sobre o recurso apresentado incida acórdão.

F... – Futebol SAD., respondeu à reclamação apresentada.

A decisão sumária reclamada, por remissão para a fundamentação do acórdão n.º 594/2020 do Tribunal Constitucional, no processo n.º 49/2020 (cuja cópia anexou), negou provimento ao recurso e manteve a decisão arbitral recorrida que havia declarado nula a deliberação do Conselho de Disciplina pela qual foi condenada em multa a ora Recorrida pela prática de infracção p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, com fundamento na inconstitucionalidade material do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.

1.1. A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo art. 635º, n.º 4, do CPC CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do art. 636º, n.º 1 CPC, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final. A reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária.

Cumpre, pois, reapreciar as questões suscitadas pela Recorrente em sede de conclusões, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular de mérito proferida.

1.2. Recapitulando as conclusões apresentadas no recurso interposto para este TCAS pela Federação Portuguesa de Futebol:

1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 27 de outubro de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o n.º 3/2020.

2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral em declarar nula a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de Acórdão, condenou em multa a ora Recorrida pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, porquanto decidiu que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.

3. A decisão arbitral de que ora se recorre é passível de censura porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado.

4. O Colégio Arbitral entendeu que o artigo 214.º do RD da LPFP é materialmente inconstitucional e, em consequência, não podendo ter aplicação, o ato punitivo sub judice, praticado no procedimento administrativo de primeiro grau é nulo, o mesmo valendo para a deliberação que o manteve, ou seja, para o ato colegial praticado no procedimento administrativo de segundo grau.

5. O TAD andou mal ao declarar a nulidade da deliberação impugnada, ignorando por completo todo o complexo normativo aplicável ao caso, designadamente o específico do ramo do Desporto, pelo que se impõe a confirmação da legalidade da decisão impugnada.

6. Atualmente, e no seguimento de um percurso histórico-legislativo, o quadro normativo que temos, constante do artigo 53.º do RJFD, é o seguinte: apenas é exigível processo disciplinar para as infrações mais graves; estabelecimento da necessidade de audiência do arguido apenas nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; garantia de recurso quer tenha ou não existido processo disciplinar.

7. Tal pressupõe, a contrario, que: nas infrações menos graves não há necessidade de existir processo disciplinar, podendo as mesmas ser sancionadas sem atender a essa formalidade; não existindo processo disciplinar, não existe necessidade de audiência do arguido; tal é perfeitamente admissível e pretendido pelo legislador, tanto que existe garantia de recurso das sanções aplicadas quer tenha ou não existido processo disciplinar.

8. A celeridade do procedimento é uma preocupação facilmente constatável ao longo do RD da LPFP, bastando olhar para os prazos reduzidos que são estabelecidos em todas as fases.

9. Tem lugar a aplicação do processo sumário quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP).

10. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito.

11. O Processo Sumário é configurado, também neste Regulamento Disciplinar, como um procedimento especial, propositadamente célere - Atente-se, ao disposto no artigo 259.º do RD da LPFP.

12. Nesse sentido, para garantir a necessária celeridade deste tipo de processos, determina o artigo 214.º do RD da LPFF que "Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.".

13. Ora, no âmbito do processo sumário (artigo 259.número 1 do RD da LPFP) não se encontra consagrado o direito de audiência prévia ao arguido. E tal ocorre por existir flagrante delito, que para estes efeitos se traduz na perceção direta e clara de que aquele agente cometeu uma infração (artigo 258.º, número 2), ou baseado no relatório dos árbitros, da polícia ou do delegado, cujos factos deles constantes foram diretamente visionados pelos respetivos signatários.

14. A celeridade que se exige na tramitação de determinadas infrações disciplinares, que sublinhe-se correspondem a infrações leves ou cuja sanção não ultrapassa determinados limites, não se compadece com um procedimento disciplinar que consagre as garantias de defesa do arguido em toda a sua amplitude (como se, na verdade, de um procedimento criminal se tratasse).

15. É pois exigível, no especifico mundo das competições desportivas, um tipo de obtenção de decisão sancionatória que seja célere, de forma a acompanhar a dinâmica das competições e provas, que muitas vezes levam a que o jogo ou jogos seguintes, se venham a disputar no espaço de 48 ou 72 horas. Na verdade, não raras vezes, existem jornadas ao fim de semana e ao meio da semana.

16. Tal implica que o Conselho de Disciplina - composto por pessoas e não por máquinas - analise vários relatórios elaborados após cada jogo - de arbitragem, dos delegados, de policiamento disciplinar - que nem sequer ficam disponíveis logo após o jogo respetivo, verifique e enquadre juridicamente as eventuais incidências disciplinares, elabore o ato final e o publicite, em tempo útil, ou seja, antes da próxima jornada.

17. Como se depreende do acima exposto, aquilo que se pretende (e exige) é que a aplicação de sanções seja efetiva, istoé, que se projete da forma mais breve possível na competição ou prova que se desenrola, sob pena de se perderem os seus efeitos úteis.

18. Dessa forma - e só dessa forma - a defesa dos valores desportivos e as finalidades da sanção - prevenção especial e geral - se veem alcançadas.

19. A preterição do direito de audiência prévia do arguido encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas, de forma a garantir a preservação da verdade desportiva e o equilíbrio da competição, através da aplicação de sanções em tempo célere e com efeito útil, para que as mesmas sejam cumpridas imediatamente ou nos jogos que se seguem.

20. As federações desportivas, embora sejam entidades de direito privado, participam na organização e gestão do serviço público desportivo, através da concessão do estatuto de utilidade pública desportiva.

21. A finalidade da atribuição desse estatuto às federações desportivas e, em particular, à ora Recorrente, é a de proporcionar meios e formas de atuação que revistam de interesse e utilidade para a comunidade em geral no âmbito do desporto.

22. Para isso são-lhe atribuídas um conjunto de prerrogativas de autoridade para o cabal exercício das suas legais competências, isto é, é investida dos poderes públicos, designadamente, de regulamentação e disciplina.

23. Através da concessão de poderes públicos, o Estado realiza as atribuições que lhe estão cometidas na lei Fundamental: as federações exercem poderes de autoridade sobre as entidades integradas na sua organização e submetidas à sua ação reguladora. 

24. O exercício do poder disciplinar, enquanto exercício de um poder público, no cumprimento de uma missão de serviço público, manifesta-se no sancionamento de uma multiplicidade de regras desportivas, de entre as quais, a violação das regras do jogo e as relativas à ética desportiva e ao combate à violência no desporto (cfr. artigo 52.º RJFD).

25. O exercício do poder disciplinar é, pois, não temos qualquer dúvida, um meio instrumental necessário da organização e gestão do desporto e uma forma de garantir o direito ao desporto constitucionalmente garantido.

26. Caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva, dever no qual foi, como infra melhor se explanará, constitucionalmente incumbida, levando inclusivamente a que as federações se vissem impossibilitadas de preencher o requisito da subalínea i, da alínea a) do artigo 2.º, com a epígrafe "Conceito de federação desportiva" do Regime Jurídico das Federações Desportivas.

27. Os factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa gozam de uma presunção de veracidade e é com base nesta presunção, ilidível em sede de recurso, que o Conselho de Disciplina irá aplicar as necessárias sanções, em prol do bom funcionamento e desenrolar das competições organizadas pela Recorrente e de uma boa administração da justiça.

28. O RD da LPFP consagra uma garantia mais ampla dos direitos do arguido do que aquela que é exigida pelo RJFD pois aquele Regulamento consagra uma real possibilidade de defesa, num segundo momento, através da previsão de recurso interno da decisão sumária, quer estejamos perante a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, ou não.

29. Atendendo, ainda, ao disposto no artigo 260.n.º 1 do RD da LPFP, a aplicação em sede de processo sumário só terá lugar quando o grau de certeza quanto à prática da infração disciplinar for quase absoluto. Existindo dúvidas quanto à prática da infração ou do infrator, dever-se-á proceder à instauração de processo disciplinar e cumprir-se com os trâmites, mais morosos, previsto para este procedimento comum.

30. A existência de processos sumários, sem audição do arguido, foi expressamente aprovada pela Recorrida, em sede de Assembleia Geral da LPFP pelo que, por essa via, operou uma verdadeira autorrestrição de direitos.

31. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá de se harmonizar com o direito ao desporto que, tal como aquele, é um direito constitucionalmente consagrado.

32. É que, consabidamente, mesmo no âmbito dos direitos fundamentais plasmados na Constituição da República Portuguesa, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, não existem direitos absolutos.

33. Desde logo, determina o artigo 79.º da CRP que "1. Todos têm direito à cultura física e ao desporto. 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto.".

34. Esta afirmação genérica de que todos têm direito ao desporto tem sido - e deve ser - lida com amplitude máxima, cobrindo todo o setor desportivo, incluindo o desporto profissional e o direito das pessoas coletivas, nos termos do disposto no artigo 12.2, n.2 2 da CRP, em dele serem também titulares não só na perspetiva da participação em competições e provas desportivas, mas ainda na da organização dessas mesmas competições desportivas.

35. A delimitação do «conteúdo essencial» dos direitos fundamentais só se coloca, porque estes podem ser objeto de restrições. Na verdade, como acima se mencionou, não existem direitos fundamentais absolutos. Sucede que, as restrições dos direitos fundamentais têm sempre um limite, já que não poderá ser ofendido aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, fica esvaziado enquanto tal.

36. Sendo verdade que o Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, não temos qualquer dúvida que no núcleo essencial deste direito estão incluídos o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.

37. Caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários que, sublinhe-se novamente, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva do Futebol nas suas diferentes variantes.

38. Ainda, não temos qualquer dúvida que a restrição do direito a uma audiência prévia, consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da CRP, operado por via do RJFD e pela existência do processo sumário tal como consagrado no RD da LPFP - com preterição dessa audiência tal como previsto no artigo 214.º do mesmo Regulamento - é proporcional, isto é, afigura-se necessária, adequada e proporcional em sentido estrito.

39. Uma das características do direito do desporto é a integração das federações desportivas nacionais em organizações desportivas internacionais (no caso, a UEFA e a FIFA) as quais são dotadas de fortes poderes normativos e sancionatórios sobre as federações nacionais, num designado fenómeno de "administração transnacional não estadual" do desporto.

40. Este domínio normativo - normas do ordenamento jurídico desportivo e normas do direito estatal - tem vindo nas duas últimas décadas, cada vez mais, a pautar-se por relações de integração, procurando-se e obtendo-se as soluções possíveis à luz dos dois ordenamentos normativos (o privado desportivo e o estatal).

41. Em suma, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP. Não obstante, esta audiência e defesa será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos.

42. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita do Tribunal, pura e simplesmente colapsariam.

43. Face ao exposto, fica demonstrado que o Acórdão recorrido merece a censura que lhe é apontada e deve ser revogado, sendo mantida a decisão proferida pelo CD.

Foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida, F... - Futebol SAD, pugnando pela manutenção do decidido.



2. Neste Tribunal, O Ministério Público não se pronunciou sobre o mérito do recurso.


3. Com dispensa de vistos, conhecendo do recurso, vem o processo agora à conferência para apreciação da reclamação deduzida.

4. Dá-se por reproduzida, nos termos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, a qual não é sujeita a impugnação.


5. A questão objecto do presente recurso, nos termos em que foi colocada pela Recorrente no presente recurso jurisdicional, tal como identificado na decisão sumária reclamada, consiste em saber se o tribunal a quo errou no julgamento de direito ao ter concluído pela nulidade da deliberação do Conselho de Disciplina que condenou em multa a ora Recorrida pela prática de infracção p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, porquanto decidiu que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.


6. Apreciando, temos que a Recorrente e ora Reclamante vem reclamar da decisão sumária do relator de 15.01.2021 que concluiu pela manutenção da sentença recorrida, com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol que possibilita a aplicação de uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência/defesa pelo arguido.

A decisão em causa do relator, na sua parte relevante, é do seguinte teor:

(…)

O presente recurso tem por objecto o acórdão arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 27.10.2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora RECORRIDA, que correu termos sob o n.º 3/2020. Em concreto, está em causa a decisão que anulou a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de acórdão, havia condenado em multa a ora RECORRIDA pela prática de infracção p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, considerando que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.

Ao que aqui releva entendeu o Tribunal: “Sem prejuízo do disposto no artigo 214.º do RD, o mesmo diploma prevê detalhadamente, nos artigos 236.º a 246.º do RD, a audiência do arguido no quadro do processo sancionatório comum, configurando-a como uma formalidade obrigatória, dado que se trata de uma garantia constitucionalmente consagrada no artigo 32.º, n.º 10, da CRP. // Impõe-se a conclusão de que a decisão sancionatória controvertida, ao aplicar o comando legal constante do artigo 214.º do RD e, dessa forma, ao precludir o direito de audição prévia do arguido, padece do vício de violação de lei, sancionado com a nulidade, por ofensa do núcleo essencial de um direito fundamental, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do Código de Procedimento Administrativo”.

Esta matéria - questão objecto do presente recurso - foi já alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, concretamente no Acórdão n.º 594/2020, processo n.º 49/2020, onde se decidiu «[j]ulgar inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional».

Entendeu o Tribunal Constitucional que:

«Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).

Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição».

Assim sendo, aderindo à fundamentação constante do aresto que vimos de citar, haverá que negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida que declarar nula a deliberação do Conselho de Disciplina que havia condenou em multa a ora RECORRIDA pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, com fundamento precisamente na inconstitucionalidade material do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP..

A decisão proferida pelo relator sobre o mérito da causa é de manter integralmente, nos exactos termos da sua fundamentação que aqui se reitera. Sendo feita, também nesta sede, a remissão para a fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional supra citado.

Pelo que, nada mais importando apreciar, na improcedência da presente reclamação, terá que manter-se a decisão do relator.



7. Sumariando, como se fez na decisão sumária reclamada:

É inconstitucional a norma do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol que possibilita a aplicação de uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência/defesa pelo arguido.



8. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em indeferir a reclamação apresentada e confirmar a decisão sumária do relator.

Custas pela Recorrente/Reclamante.

Notifique.

Registe, com cópia do acórdão do TC n.º 594/2020, processo n.º 49/2020.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2021

Pedro Marchão Marques (relator). O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento: Alda Nunes e Lina Costa.