Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:546/21.7BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:02/10/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
DAÇÃO EM PAGAMENTO
INTERESSE PÚBLICO
Sumário:I. A dação em pagamento, requerida na sequência de instauração de execução fiscal, pode não ser aceite pela AT, com fundamento em desinteresse na mesma.

II. A prossecução do interesse público não se compadece necessariamente com a aceitação de qualquer dação em pagamento, designadamente quando o Estado invoque a falta de estruturas funcionais para atuar no mercado livre imobiliário, dada a falta de liquidez imediata inerente à dação em pagamento que tenha por objeto um bem imóvel.

III. Não há paralelismo entre a dação em pagamento e a penhora.

IV. A apreciação da violação do princípio da igualdade não se compadece com alegações de caráter genérico, não cabalmente concretizadas.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

T..., S.A. (doravante Recorrente ou Reclamante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 03.12.2021, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, na qual foi julgada improcedente a reclamação de ato do órgão de execução fiscal, por si apresentada, que teve por objeto o despacho proferido pela Subdiretora Geral da Área da Justiça Tributária, em subdelegação de competências, em 22 de abril de 2021, na informação elaborada pela Direção de Serviços da Gestão de Créditos Tributários, que indeferiu o pedido de dação em pagamento do prédio urbano (fração “AD”), sito na freguesia de Algueirão, Mem Martins, concelho de Sintra, descrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ..., para garantia da dívida exequenda em cobrança coerciva nos processos de execução fiscal (PEF) n.ºs 1384202101024639 e 1384202101024914.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

I.

A douta sentença em mérito, julgou improcedente a reclamação apresentada pela Reclamante contra o ato que lhe indeferiu o pedido de dação em pagamento com o fundamento louvando-se no essencial na não verificação dos vícios apontados pela Reclamante, a saber: erro nos pressupostos de direito e de facto que presidiram o indeferimento da dação em pagamento e vício de violação de lei, por violação do artigo 201.º, nº 1 e 203.º do CPPT e artigos 13.º e 20.º da CRP

II.

Sem quebra do mui respeito devido, não se pode a Recorrente conformar com tal entendimento pois considera e sustenta que a decisão em mérito faz uma errada interpretação/aplicação dos princípios e normativos que regulam a atividade da administração fiscal, especificadamente naquilo que diz respeito ao instituto da dação em pagamento.

Ora,

III.

A Reclamante, em sede de reação contra o ato de indeferimento do pedido de dação em pagamento, suscitou questões que se prendiam com a violação da discricionariedade na apreciação do pedido, violação da prossecução do interesse público e, violação do princípio da igualdade.
IV.

Estando em causa a entrega de prestação diversa daquela que é devida para que com ela se proceda à extinção da obrigação tributária e, para que se almeje tal desiderato, imprescindível se torna o assentimento por banda do credor da obrigação.
V.

Pois bem, no âmbito tributário a questão passa-se da mesma forma, não se pode, contudo, ignorar, o amplo poder discricionário ao dispor da administração fiscal apenas balizado pelo princípio da legalidade e pelo princípio da prossecução do interesse público – arrecadação de receita.
VI.

É certo que, a margem de livre apreciação ao dispor da administração fiscal, não será, pois, uma margem absolutamente discricionária, porquanto, ela encontra-se balizada pela obediência ao princípio da legalidade e pelo princípio da prossecução do interesse público.
VII.

Ora, no caso em apreço, essa discricionariedade é ainda mais patente da medida em que, o que fundamenta a decisão não é uma análise pormenorizada e casuística, antes sim, a aplicação do chavão utilizado pela administração fiscal em situações de idêntica natureza, não podendo, tal comportamento merecer o respaldo que lhe é dado pela decisão em mérito.
VIII.

Não será, pois, despiciendo referir, ainda quanto à matéria da amplitude da apreciação do bem dado em dação, que não raras vezes, o imóvel que a administração repudia em sede de dação em pagamento é o mesmíssimo que penhora em sede de execução fiscal.
IX.

É o mesmíssimo imóvel que, uma vez penhorado e realizada a venda, o valor do mesmo é mais do que suficiente para fazer extinguir a obrigação tributária.
X.

Daí que, mal se compreenda a resistência a este instituto por parte da administração fiscal e, muito menos se compreenda a amplitude dada na apreciação deste instituto.
XI.

É manifesto que a sentença em mérito, concedendo nesta parte razão à Fazenda Pública enferma a douta decisão de0 erro de julgamento – mostrando-se violada o princípio a discricionariedade por violação dos limites que impõe tal atuação.
XII.

De igual modo, a douta decisão em mérito viola o princípio da prossecução do interesse público.
XIII.

Na verdade, toda a atuação da administração deverá ser voltada para a prossecução do interesse público que, neste caso concreto, passa pela arrecadação de receita fiscal.
XIV.

Nos autos de execução fiscal, objeto da presente lide, constatamos que os processos de execução fiscal mencionados foram instaurados no decurso do corrente ano de 2021, cujo prazo de prescrição de 8 (oito) anos não está longe de expirar.
XV.

Os imóveis dados, só por si, atenta a sua valia, eram bens de enorme interesse que permitiriam à administração fiscal almejar com maior celeridade e eficácia o interesse público.
XVI.

O princípio da prossecução do interesse público é um princípio que não apenas deverá servir de farol da atuação da administração fiscal como, igualmente, deverá servir de estribo a essa mesma ação.
XVII.

Pois bem, no caso dos autos é patente que a atuação da administração se encontra totalmente alheada da prossecução do interesse público, violando tal princípio de atuação.
XVIII.

De igual modo, o Tribunal a quo, a julgar da decisão em mérito não se ter por verificada a violação do referido princípio, incorreu igualmente em erro de julgamento, impondo-se nesta parte, a revogação da douta sentença a qual, deve ser substituída por outra que, pelo menos nesta parte, reconheça a existência da violação do princípio de prossecução do interesse público.
XIX.

Na interposição da reclamação dos atos praticados pelo órgão de execução fiscal, a qual esteve na génese da decisão sob escrutínio, foram suscitadas pela aqui Recorrente, questões que se prendem com o princípio da igualdade e a sua violação, para tanto, foram invocados casos concretos, de conhecimento generalizado de situação em que o comportamento da administração fiscal é no sentido de aceitação dos pedidos de dação formulados, onde, é caso paradigmático, o famigerado totonegócio.
XX.

Relativamente à matéria articulada pela Reclamante, resulta manifesto a existência de casos reais que cotejados com a situação da Reclamante consubstancia indelével uma violação do princípio da igualdade.
XXI.

Do mesmo modo, não permitir que a dação em pagamento possa ser requerida, como modo de extinção das obrigações que é, para além do prazo de oposição, viola os direitos do cidadão no sentido de proceder à regularização da situação tributária perante a Administração Fiscal.

TERMOS EM QUE,

Concedendo provimento ao recurso e revogando a douta sentença impugnada, farão Vossas Excelências a habitual,

JUSTIÇA!!!”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do CPPT, que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atenta a sua natureza urgente (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro de julgamento de facto, em virtude de se mostrar violado o princípio da discricionariedade, o princípio da prossecução do interesse público e o princípio da igualdade?

b) Verifica-se erro de julgamento, uma vez que, não permitir que a dação em pagamento possa ser requerida para além do prazo de oposição, viola os direitos do cidadão, no sentido de proceder à regularização da situação tributária perante a Administração Tributária (AT)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 09 de fevereiro de 2021 foi emitida pela Direção de Finanças de Leiria a certidão de dívida n.º 2021/274380, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1384202101024639, para cobrança coerciva de IVA do período tributário 2020/11T, no montante de 28.832,09€ - cfr. certidão de dívida e doc. “Quantia Exequenda”, a fls. 1 e 1-v do respetivo processo de execução fiscal.

2. Em 10 de fevereiro de 2021 foi emitida pela Direção de Finanças de Leiria a certidão de dívida n.º 2021/278091, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1384202101024914, para cobrança coerciva de IVA do período tributário 2020/04T, no montante de 412,68€ - cfr. certidão de dívida e doc. “Quantia Exequenda”, a fls. 1 e 1-v do respetivo processo de execução fiscal.

3. Em 13 de abril de 2021 foi pela Direção de Serviços de Créditos Tributários elaborada informação, com o assunto “CO-DAÇÃO EM PAGAMENTO PEF 1384202101024639”, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e se extrai o seguinte:

(…)

DOS FACTOS

A divida exequenda da responsabilidade da executada nos presentes autos diz respeito a IVA de abril de 2020.A obrigação legal existe e consubstancia-se na dívida total de € 29.455,94 (Vinte e nove mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos), correspondendo-lhe a quantia exequenda, no montante de € 29.244,77 e o acrescido no valor de € 211,17, constituído por juros de mora no montante de € 0,00 e custas processuais no valor de € 211,77. Relativamente à citação pessoal nos processos executivos verifica-se que, para ambos os processos, esta ainda não foi concretizada. Já em 17-11-2020 para o PEF 1384201901124765 (entrada n.º 2020E002740825) e para o PEF 1384201901185519 (entrada n.º 2020E002740691), em 04-06-2020 para os PEF’s 1384201701059807 e outros (entrada n.º 2020E001374037), e em 11-02-2021 para os PEF’s 1384201701053914 e outros (entrada n.º 2021E000332753), a executada requereu, que fosse aceite a dação em pagamento para extinção dos referidos processos executivos, o mesmo bem imóvel, entre outros, agora indicado em dação, até ao montante da dívida, nos termos dos artigos 201.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), tendo todos os pedidos sido indeferidos e/ou rejeitados por Despacho da Subdiretora-Geral para a área da Justiça Tributária.

O imóvel agora indicado em dação é a Fração “AD” do artigo Urbano nº ... da freguesia de Algueirão e Mem Martins, Concelho de Sintra, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de Sintra com o nº ....

O valor patrimonial do imóvel ascende ao montante de € 31.789,12, no entanto, não é possível aferir o valor disponível tendo em conta que a executada não junta nos termos da a) do nº 1 do art.º 201º do CPPT, certidão predial dos imóveis indicados. O imóvel indicado não pertence à executada, mas sim a terceiro pertencente ao mesmo grupo empresarial, nomeadamente a empresa G... - UNIPESSOAL LDA NIF: ...., no entanto, a executada indica que, caso seja a presente dação em pagamento aceite, a proprietária dos imóveis dará o competente consentimento.

(…)

INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

Como já referimos, o Estado não dispõe de qualquer estrutura que, em concorrência com o sector privado, se dedique com carácter geral à comercialização de bens imóveis, não sendo, pois, suficiente a mera eventualidade daquele obter rendimentos com a posterior revenda dos bens imóveis dados em pagamento.

Pelas razões que já mencionámos, entendemos que os bens oferecidos não têm qualquer interesse para a Fazenda Nacional.

No processo de dação em pagamento, torna-se necessário o acordo do credor, o que, no âmbito da legislação tributária, se traduz, tal como está previsto no art. 201º do CPPT, no interesse da Fazenda Nacional na aceitação dos bens. A obrigatoriedade de acordo resulta do disposto no art. 837º do CC, segundo o qual “a prestação de coisa diversa da que for devida, (…) só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”.

Consequentemente a dação pressupõe a realização de um “aliud”, isto é, uma prestação diferente, por acordo entre as partes, para cumprir/extinguir a obrigação.

A dação tem como fim a extinção da obrigação que perdura nas relações entre as partes. A forma, o meio de extinção da obrigação, sendo diferente, pressupõe, como vimos referindo, um acordo concertado entre os intervenientes.

Ora, se os bens não têm qualquer interesse para a AT, como é o caso dos bens oferecidos por esta contribuinte, aquela não é “obrigada” a aceitá-los. Assim, o devedor não pode, por esta forma, extinguir as suas dívidas fiscais.

Como já várias vezes referimos, o facto de a dação em pagamento estar tipificada na lei, não “obriga” a Administração Tributária a aceitar os bens que os devedores entendem dar em pagamento para extinguir as suas dívidas fiscais.

No que se refere ao pedido de avaliação dos bens oferecidos, de forma a serem e aceites a título de prestação de garantia, para efeitos de suspensão da execução, atendendo a que se se trata de uma matéria, cuja competência pertence ao órgão de execução fiscal, deve o presente requerimento ser remetido à Direção de Finanças de Lisboa, para análise e comunicação da respetiva decisão à requerente.

CONCLUSÃO:

Na presente situação, o requerimento a solicitar a extinção das dívidas da requerente, através da dação em pagamento do imóvel Fração “AD” do artigo Urbano nº ... da freguesia de Algueirão e Mem Martins, Concelho de Sintra, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial de Sintra com o nº ....

Contudo conforme supra reiterado o Estado não dispõe de qualquer estrutura que, em concorrência com o sector privado, se dedique com carácter geral à comercialização de bens imóveis, não sendo, pois, suficiente a mera eventualidade daquele obter rendimentos com a posterior revenda dos bens imóveis dado em pagamento;

O facto de estar tipificada na lei a dação em pagamento, não “obriga” a Administração Tributária a aceitar os bens que os devedores entendem dar em pagamento para extinguir as suas dívidas.

PROPOSTA

Perante os factos expostos, se assim for entendido superiormente, o pedido de dação em pagamento deve:

Ser indeferido quanto aos processos executivos, relativamente aos quais o pedido é tempestivo porquanto:

a) O Estado não dispõe de qualquer estrutura que, em concorrência com o sector privado, se dedique com carácter geral à comercialização de bens imóveis, não sendo, pois, suficiente a mera eventualidade daquele obter rendimentos com a posterior revenda dos bens imóveis dado em pagamento;

b) O facto de estar tipificada na lei a dação em pagamento, não “obriga” a Administração Tributária a aceitar os bens que os devedores entendem dar em pagamento para extinguir as suas dívidas. (…)” – cfr. informação, a fls. não numeradas dos autos (em suporte físico).

4. Em 22 de abril de 2021 foi pela Subdiretora Geral da Direção de Serviços de Gestão de Créditos Tributários proferido despacho de concordância com os fundamentos de indeferimento constantes na informação aludida no ponto anterior – cfr. despacho, a fls. não numeradas dos autos (em suporte físico).

5. Através do ofício n.º 501/3, de 20 de agosto de 2020, remetido através de correio registado com aviso de receção assinado em 11 de maio de 2021, foi a Sociedade Reclamante notificada do teor do despacho referido no ponto que antecede – cfr. ofício, a fls. não numeradas dos autos (em suporte físico)”.

II.B. Refere-se, ainda, na sentença recorrida:

“Não existem quaisquer outros factos com relevo que importe fixar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes do processo de execução fiscal, conforme é especificado nos vários pontos do probatório supra”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo errou no seu julgamento, dado o não respeito pelo princípio da discricionariedade, por violação dos limites que impõe tal atuação, e, bem assim, dos princípios da prossecução do interesse público e da igualdade.

Vejamos então.

A dação em cumprimento ou em pagamento é uma das causas da extinção das obrigações, consubstanciada na prestação de coisa diversa da que for devida, mediante assentimento do credor, prevista nos art.ºs 837.º e ss. do Código Civil. Com a mesma, o devedor pretende extinguir imediatamente a obrigação (1).

Ao nível da legislação tributária, este instituto está previsto como uma das formas de extinção das prestações tributárias, nos casos legalmente previstos [cfr. o art.º 40.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT)], podendo a mesma ser requerida antes ou depois da instauração da execução fiscal.

Sendo o requerimento de dação em pagamento apresentado antes de instaurada a execução fiscal, há que atentar no regime previsto no art.º 87.º do CPPT.

Já caso o mesmo seja apresentado depois de instaurada a execução fiscal, como aconteceu in casu, o respetivo regime encontra-se previsto nos art.ºs 201.º e ss. do CPPT, do qual extraímos as seguintes caraterísticas:

a) Pode ser requerida pelo executado ou terceiro, no prazo de oposição;

b) Tem de ser feita uma descrição pormenorizada dos bens dados em pagamento;

c) Os bens dados em pagamento não podem ter valor superior à dívida exequenda e acrescido, salvo os casos de se demonstrar a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação se efetuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado.

Apresentado o requerimento:

a) O dirigente máximo do serviço poderá remetê-lo para despacho, com fundamento no desinteresse da dação; ou

b) O dirigente máximo do serviço poderá solicitar a avaliação dos bens oferecidos em pagamento, após o que os elementos seguem para despacho, que poderá autorizar ou não a dação.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, como resulta provado, foram instaurados, em fevereiro de 2021, os PEF 1384202101024639 e 1384202101024914, no âmbito dos quais foi apresentado o requerimento de dação em pagamento, que não veio a ser aceite pela AT, com os fundamentos constantes no despacho reclamado.

O Tribunal a quo sustentou o seu entendimento, desde logo, no Acórdão proferido neste TCAS, no âmbito dos autos n.º 931/20.1BELRA, no qual a ora Relatora interveio na qualidade de 1.ª adjunta, decisão essa que seguiremos de perto [em sentido idêntico, v. o Acórdão deste TCAS, de 27.01.2022 (Processo: 545/21.9BELRA), também relativo às mesmas partes].

No despacho reclamado, a pretensão da ora Recorrente veio a ser indeferida, sendo de salientar o seguinte, do discurso fundamentador do mesmo:

“Como já referimos, o Estado não dispõe de qualquer estrutura que, em concorrência com o sector privado, se dedique com carácter geral à comercialização de bens imóveis, não sendo, pois, suficiente a mera eventualidade daquele obter rendimentos com a posterior revenda dos bens imóveis dados em pagamento.

Pelas razões que já mencionámos, entendemos que os bens oferecidos não têm qualquer interesse para a Fazenda Nacional.

No processo de dação em pagamento, torna-se necessário o acordo do credor, o que, no âmbito da legislação tributária, se traduz, tal como está previsto no art. 201º do CPPT, no interesse da Fazenda Nacional na aceitação dos bens. A obrigatoriedade de acordo resulta do disposto no art. 837º do CC, segundo o qual “a prestação de coisa diversa da que for devida, (…) só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”.

Consequentemente a dação pressupõe a realização de um “aliud”, isto é, uma prestação diferente, por acordo entre as partes, para cumprir/extinguir a obrigação.

A dação tem como fim a extinção da obrigação que perdura nas relações entre as partes. A forma, o meio de extinção da obrigação, sendo diferente, pressupõe, como vimos referindo, um acordo concertado entre os intervenientes.

Ora, se os bens não têm qualquer interesse para a AT, como é o caso dos bens oferecidos por esta contribuinte, aquela não é “obrigada” a aceitá-los. Assim, o devedor não pode, por esta forma, extinguir as suas dívidas fiscais.

Como já várias vezes referimos, o facto de a dação em pagamento estar tipificada na lei, não “obriga” a Administração Tributária a aceitar os bens que os devedores entendem dar em pagamento para extinguir as suas dívidas fiscais”.

Portanto, como decorre do teor do despacho reclamado, a dação em pagamento requerida pela ora Recorrente foi indeferida, com fundamento em desinteresse na mesma.

Insurge-se a Recorrente contra a decisão do Tribunal a quo, que considerou não padecer o mencionado ato dos vícios que lhe foram assacados, entendendo, desde logo, que a margem de discricionariedade da administração encontra-se balizada pelos princípios da legalidade e da prossecução do interesse público, o que não sucedeu in casu.

Vejamos.

“A discricionariedade consiste numa liberdade conferida por lei à administração para que esta escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis” (2). Portanto, em contraposição com as situações em que a atuação da Administração é vinculada, em virtude de haver uma única solução possível decorrente da lei, nos casos em que a lei se limita a definir o fim ou interesse a prosseguir, há uma margem de autonomia na atuação administrativa (3).

Estamos, no caso, perante um ato no qual, não obstante poder haver alguma margem de discricionariedade da administração, o mesmo é judicialmente controlável, não só em termos de controlo externo, aqui não posto em causa, mas mesmo em termos de controlo intrínseco, onde se inclui o respeito pelos princípios que devem nortear a atividade da administração (4).

No caso, como referido, a AT, de forma sustentada, não aceitou a dação em causa, na medida em que não reconheceu interesse em tal aceitação, dado que o Estado “não dispõe de qualquer estrutura que, em concorrência com o sector privado, se dedique com carácter geral à comercialização de bens imóveis, não sendo, pois, suficiente a mera eventualidade daquele obter rendimentos com a posterior revenda dos bens imóveis dados em pagamento”.

Portanto, desde logo, não se acompanha o entendimento da Recorrente, no sentido de o ato reclamado não fazer uma análise pormenorizada e casuística, dado que a mesma foi feita e foi explanada a motivação inerente à falta de interesse na aceitação da dação.

Não se acompanha, igualmente, o entendimento no sentido de que a decisão em causa atenta contra o interesse público.

Concretizando.

“O ‘interesse público’ é o interesse colectivo, é o interesse geral de uma determinada comunidade, é o bem-comum...” (5); é “um interesse que, sendo colectivo, pertence a um grupo indistinto e não se identifica com os interesses próprios dos eventuais membros” (6) .

Dentro do conceito de interesse público, há que discernir entre interesse público primário e interesses públicos secundários (7).

O primeiro é o “interesse público por excelência (...) que se pode exprimir sinteticamente na composição de necessidades do grupo para a realização da Paz social segundo uma ideia de Justiça” (8). Os segundos são interesses instrumentais, visando atingir o fim representado pelo interesse público primário.

Nos termos do art.º 266.º, n.º 1, da nossa Lei Fundamental:

“A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.

Por seu turno, dispõe o art.º 55.º da LGT que:

“A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.

Naturalmente que essa prossecução pela AT do interesse público tem franca relação com a arrecadação de receitas (apesar de não se reduzir à mesma), configurando-se como salvaguarda desse interesse uma atuação em respeito pelos princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade e em respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.

In casu, como referimos, a Recorrente considera que a prossecução do interesse público, sob o ponto de vista da arrecadação de receitas, foi violada.

No entanto, não acolhemos tal entendimento.

Como se refere no já citado Acórdão deste TCAS, de 28.10.2021 (Processo: 931/20.1BELRA):

“[N]ão tem razão a Recorrente, por não haver paralelismo entre a figura da dação em pagamento e a penhora, entendida esta última como uma apreensão judicial dos bens do devedor/ executado, para posterior venda forçada dos mesmos, inserido num procedimento de cobrança coerciva ou coativa da prestação tributária.

A dação em pagamento, sendo, como vimos, uma forma de extinção das prestações tributárias, implica naturalmente a transmissão da propriedade, recebendo o credor, neste caso, bens imóveis, em substituição do valor pecuniário em dívida.

A lei determina que o credor aceite a dação, ou seja, o devedor só fica desonerado da dívida com o consentimento do credor.

Recebendo o credor um bem diferente, no caso bens imóveis, é um argumento admissível, atendível, que o credor não esteja interessado, posto que o Estado, dono de um vasto património imobiliário, tem que atender às necessidades financeiras para satisfazer o seus objetivos económico-sociais e necessita em primeira linha de liquidez para fazer face às suas obrigações decorrentes da Constituição e da Lei.

Como claramente resulta do artigo 201º CPPT tem de haver interesse público na aceitação da dação em pagamento.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, embora de forma pouco densificada, afasta a dação em pagamento com bens imóveis, por não estar vocacionada para administrar imóveis e não ter estruturas funcionais para atuar no mercado livre imobiliário.

Ora, não se pode dizer que esta não é uma razão atendível e plausível, conhecendo, como conhecemos, a dificuldade de atuação do Estado no mercado livre, bastando esta razão para não aceitar a dação em pagamento. Não se mostra violado o princípio da prossecução do interesse público, pois, que no caso concreto, seria a Recorrente que teria de demonstrar que tais imóveis permitiriam, com facilidade, satisfazer a arrecadação de receita ou então estariam aptos, de forma imediata, à satisfação das obrigações do Estado de cariz económico-social” [neste sentido veja-se igualmente o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 29.04.2021 (Processo: 00938/20.9BEPRT)].

Aderindo, pois, a este entendimento, consideramos inexistir qualquer violação do interesse público nos termos alegados, não tendo pertinência o alegado em torno de, em abstrato, um imóvel não aceite em dação poder ser penhorado em sede de execução fiscal (situação, acrescente-se, nem equacionável, in casu, dado que o imóvel em causa pertence a terceiro).

Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, também não assiste razão à Recorrente.

Com efeito, esta limita-se a alegar, de forma lata, a existência de casos reais, designadamente o chamado totonegócio.

Ora, uma alegação nestes termos não tem a virtualidade de pôr em causa a atuação da AT, sendo, como referimos, uma alegação lata, desprovida da concreta especificação que permitiria aferir a eventual violação do princípio da igualdade.

Assim sendo, não assiste razão à Recorrente.

III.B. Do erro de julgamento, em virtude de a dação em pagamento dever poder ser requerida para além do prazo de oposição

Considera ainda a Recorrente que não permitir que a dação em pagamento possa ser requerida, como modo de extinção das obrigações que é, para além do prazo de oposição, viola os direitos do cidadão no sentido de proceder à regularização da situação tributária perante a Administração Fiscal”.

Ora, no caso dos autos, esta alegação não tem qualquer pertinência fática.

Veja-se que a dação em causa foi requerida no âmbito dos PEF 1384202101024639 e 1384202101024914, em momento anterior à citação, tendo a pretensão sido apreciada e não tendo sido rejeitada por motivos de extemporaneidade.

Assim, carece de relevância apreciar o alegado, por não respeitar a qualquer fundamento da decisão reclamada.

Como tal, improcede o alegado pela Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 10 de fevereiro de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)


(1) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 120.

(2) Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, D. Quixote, Lisboa, 2004, p. 180.

(3) Cfr. Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 137.

(4) Cfr. Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 153 e 154.

(5) Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2003, p. 35.

(6) José Carlos Vieira de Andrade, «Interesse Público», Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. V, Lisboa, 1993, p. 275.

(7) V. Rogério Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, pp. 101 e ss.; José Carlos Vieira de Andrade, «Interesse Público», cit., pp. 277 e ss.

(8) José Carlos Vieira De Andrade, «Interesse Público», cit., p. 277.