Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1357/16.7 BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRC
DOCUMENTAÇÃO DE SUPORTE AOS GASTOS
SANAÇÃO DE LACUNAS DA DOCUMENTAÇÃO
PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário:I. O recurso a métodos indiretos de avaliação da matéria tributável exige, entre outras situações, que haja uma impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável de qualquer imposto.

II. Dado o caráter subsidiário da aplicação de métodos indiretos, deve a AT lançar mão de métodos diretos sempre que a impossibilidade referida em I. não se verifique.

III. A reforma do IRC de 2014 implicou que o CIRC densificasse os elementos mínimos que os documentos que sustentam os gastos devem conter.

IV. A falta de indicação, em fatura emitida pelo fornecedor, de algum ou alguns desses elementos não pode ser encarada como uma preterição de requisitos insanável, sendo admissível, em ordem a respeitar o princípio da tributação pelo rendimento real, que tais lacunas sejam supridas por quaisquer meios de prova admitidos.

V. Verificando-se a situação mencionada em IV. e não tendo sido realizadas quaisquer diligências de prova pelo Tribunal a quo, designadamente as requeridas pela Impugnante, foi violado o princípio do inquisitório.

Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

I. T. – Unipessoal, Lda (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 24.06.2023, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, na qual foi julgada parcialmente procedente a impugnação por si apresentada que teve por objeto a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinente ao exercício de 2014.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“Por douta Sentença proferida nos presentes autos, foi a Impugnação Judicial da Recorrente contra a liquidação de IRC com o acerto n.º 2016 00012578148, no montante de 17.189,89 €, julgada parcialmente procedente, quanto à correção da matéria coletável no valor de 2.000,00 €, respeitante ao utente A. M. e improcedente quanto ao demais peticionado pela aqui Recorrente.

II. No presente Recurso, está em causa a douta Decisão, na parte em que conclui pela legalidade da atuação da Administração Tributária ao não aceitar a dedução, em IRC, da fatura fatura nº 245 do fornecedor F. C. no montante de 39.175,50 € (incluindo IVA) nos custos do exercício de 2014 da Recorrente e, como tal, julgou improcedente a Impugnação Judicial nesta parte.

III. Resulta da douta Sentença que a AT não coloca em causa a veracidade ou a indispensabilidade do custo em causa, mas tão só o preenchimento de certos requisitos da norma do art.º 23.º do CIRC.

IV. De acordo com o art.º 23.º n.º 4 do CIRC, a fatura n.º 245 emitida por F. C. menciona os sujeitos (als. a) e b)), o objeto da operações (al. b)), a quantidade / extensão (al. c)) o preço (al. d)), a data (al. e)) e, pelo que cumpre as formalidades legais previstas na norma do art.º 23.º n.º 4 do CIRC para que tal custo seja dedutível.

V. A Fatura nº 245 do fornecedor F. C. cumpre todos os requisitos do CIRC, incluindo os que na douta Sentença se consideraram incumpridos, nomeadamente:

a) os requisitos da alínea c) e e) do nº 4 do artº 23.º do CIRC na parte relativa à descrição do serviço “Aluguer de equipamentos sem limite de impressões” e à data “de 1-2-2014 a 31-12-2014”;

b) os requisitos das alíneas c), d) e e) do nº 4 do artº 23.º do CIRC na parte relativa à descrição dos serviços “Design de logotipos e impressão de economato”, ao valor da contra prestação «14.100,00» € e à data dos serviços; c) os requisitos do artº 23º nº 4 al. c), d) e e) do CIRC na parte relativa ao objeto da transação - descrição dos serviços “Decoração de 2 viaturas e colocação de sinalética interior e exterior”, ao valor da contra prestação «8.950,00» € e à data dos serviços “28/11/2014”.

VI. No RIT, o Auto de declarações emitido pela AT não podia ser valorado como foi pelo Tribunal porque dele não resulta que a gerente tenha sido confrontada com a fatura em causa; as declarações ali apostas são vagas e genéricas; não é possível apreender quais foram as perguntas que a AT fez à gerente sobre as omissões na fatura que teve por essenciais, existindo erro no julgamento da matéria de facto.

VII. Não é possível apreender como, porque é que, e de que forma, a partir das declarações da gerente apostas no Auto da AT - «fornecimento de uma fotocopiadora […] e F. C. continua a ser responsável pelos consumíveis (substituição de toner e peças) bem como pelo fornecimento de papel» a AT conclui que «não se tratou de um aluguer mas da aquisição [entenda-se compra] de uma fotocopiadora, a fatura não titula uma aquisição e o sujeito passivo não contabilizou a aquisição desse ativo fixo tangível nem os respetivos gastos de depreciação», porquanto esta afirmação da AT não tem qualquer correspondência com o teor do Auto que elaborou.

VIII. A AT não questionou a efetividade dos custos da Recorrente; contudo, a AT não considerou tais custos, que admite terem ocorrido, no cômputo da matéria tributável de IRC da Recorrente.

IX. A AT corrigiu os custos por considerar que a fatura nº 245 não cumpria os requisitos formais das alíneas c), d) e e) do n.º 4 do artigo 23.º do CIRC lta do RIT o entendimento da AT.

X. Por conseguingte a AT considerou que a fatura nº 245 não lhe permitia a correta determinação do lucro tributável, não sendo tais custos dedutíveis nos termos do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea c), do Código do IRC.

XI. Resulta do Relatório de Inspeção Tributária referido no ponto 8 dos factos provados, «O valor constante dos quadros apresentados […] tem por base as seguintes correções: Correções meramente aritméticas».

XII. Se a fatura não permitia a correta determinação do lucro tributável, então a avaliação direta não permitia “a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação”, ou seja, a “comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável” do IRC referente ao ano de 2014 da Recorrente.

XIII. A AT incorreu em erro por ter insistido num procedimento de avaliação direta da matéria tributável de IRC e, dessa forma, ter desconsiderado os custos em apreço cuja efetiva existência confirmou.

XIV. A adoção pela AT do procedimento de avaliação direta em detrimento do procedimento de avaliação indireta – não sendo essa uma opção discricionária da AT, mas um verdadeiro poder-dever –, redundou na ilegalidade das correções efetuadas à matéria tributável de IRC relativamente aos custos corrigidos, por violação das regras de determinação da matéria tributável.

XV. Se o Tribunal entendia que a fatura continha lacunas tidas por essenciais, ao dispensar a instrução dos presentes autos pese embora o requerimento probatório da Recorrente, o Tribunal a quo acabou por incorrer, salvo o devido respeito, em erro de julgamento também por falta de instrução.

XVI. Havendo a douta Sentença na parte em que considerou legal a correção, efetuada pela AT, dos custos suportados pela Recorrente com os serviços prestados e descritos na fatura nº 245 do fornecedor F. C, no montante de 39.175,50 € (incluindo IVA), de ser revogada e substituída por Acórdão que, dando provimento ao presente Recurso, anule a correspondente liquidação de IRC daí decorrente; ou subsidiariamente, ordene a devolução dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para produção da prova testemunhal.

XVII. A douta Sentença, ao sufragar o entendimento da AT, violou o art.º 23.º nº 4 do CIRC; o art.º 226.º da DIVA, o artigo 36.º nº 5 al. b) do CIVA; os artigos 83.º, 87.º e 88.º da LGT.

Termos em que, concedendo V. Exas. provimento ao presente recurso e revogando a douta Sentença na parte em que considerou legal a correção, por parte da AT, dos custos suportados pela Recorrente no exercício de 2014 com os serviços descritos na fatura nº 245 do fornecedor F. C., e substituindo-a por Acórdão que anule a correspondente liquidação de IRC daí decorrente; ou subsidiariamente, ordenando a devolução dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para produção da prova testemunhal, farão a costumada JUSTIÇA.”

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, dado estarem cumpridos os requisitos previstos no art.º 23.º, n.º 4, do Código do IRC (CIRC)?

b) Verifica-se erro de julgamento, porquanto a administração tributária (AT), ao ter concluído no sentido da admissão do gasto pelos motivos que assinalou, deveria ter lançado mão de métodos indiretos de determinação da matéria coletável?

c) Verifica-se erro de julgamento, por défice instrutório?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1) Em 01-01-2012, M. S. e A. M. assinaram documento intitulado “Aditamento ao Contrato de Alojamento e Prestação de Serviços celebrado em 11/04/2010”, no qual consta o seguinte:

“(…)


Imagem: Original nos autos

(…)” – cfr. documento a fls. 29 dos autos;

2) M. F., mencionada no ponto antecedente, foi proprietária do “L. F. N. S. E.”, cujas instalações então situadas na R. C. M. D., n.º …, 2...-… R. – B., até 12- 01-2014, e é a mãe da gerente da Impugnante, L. R. – cfr. página 2 do Relatório de Inspeção Tributária (a fls. 11 a 24 dos autos, doravante RIT) e documento a fls. 29 dos autos;

3) A Impugnante encontra-se registado pela atividade de “Atividades Apoio Social para Pessoas Idosas, com Alojamento”, C.A.E. 87301, sendo o seu objeto social “Lares de idosos, Casas de acolhimento e outras atividades de apoio social" e gere o “L. F. N. S. E.”, mencionado no ponto antecedente desde 13-01-2014, data do início da sua atividade – cfr. página 2 do RIT;

4) Em 01-09-2014, a Impugnante emitiu a fatura n.º 207 referente a mensalidade no montante de 900,00 EUR, faturada a A. V. – cfr. página 3 do RIT;

5) A Impugnante não registou contabilisticamente a fatura mencionada no ponto antecedente – cfr. página 3 do RIT;

6) Em 28-11-2014, F. C. emitiu, em nome da Impugnante a fatura n.º 0245, no valor total de 39.175,50 EUR (IVA a 23% incluído), constando da mesma o seguinte:


Imagem: Original nos autos

– cfr. página 3 do RIT;

7) A coberto da Ordem de Serviço n.º 01201600309 de 04-02-2016, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leiria desencadearam à Impugnante a ação de inspeção de âmbito parcial relativa ao IRC de 2014 – cfr. página 1 do RIT;

8) Em 28-06-2016, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leiria elaboraram o Relatório de Inspeção Tributária no qual consta, designadamente, o seguinte:

“(…)


Imagem: Original nos autos

(…)

Imagem: Original nos autos

(…)


Imagens: Originais nos autos

(…)



(…)



(…)” – cfr. RIT, que se dá aqui por integralmente reproduzido;

9) Em 21-07-2016, com base no RIT a que respeita o ponto antecedente, foi emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira a liquidação de IRC, relativa ao ano de 2014, com o n.º 2016 8310034419, constando da respetiva demonstração o seguinte:




– cfr. documento a fls. 9 dos autos.”

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efetuou-se com base na análise crítica dos documentos constantes dos autos, não impugnados, bem como no PAT apenso”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Por uma questão de precedência lógica, analisar-se-á, em primeiro lugar, a questão supra identificada com a alínea b), apreciando-se, caso tal se justifique, as demais subsequentemente e em simultâneo, dada a conexão entre ambas e dado o facto de o défice instrutório ter sido alegado a título subsidiário.

III.A. Do erro de julgamento, por não utilização de metidos indiretos

Considera a Recorrente que se verifica erro de julgamento, porquanto, em situações como a dos autos, mantendo a AT o seu entendimento, no sentido de que a fatura, mencionada em 6) do probatório, não reúne os pressupostos do art.º 23.º, n.º 4, do CIRC, deveria ter lançado mão de métodos indiretos.

Vejamos.

A aplicação de métodos indiretos de fixação da matéria tributável é subsidiária em relação à avaliação direta [cfr. art.º 85.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT)].

A este propósito, e para melhor densificação dos termos em que se admite o recurso a um ou outro método de determinação da matéria coletável, há que apelar, desde logo, ao art.º 81.º da LGT, nos termos do qual:

“1 - A matéria tributável é avaliada ou calculada diretamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indireta nos casos e condições expressamente previstos na lei”.

Por seu turno, o art.º 83.º do mesmo diploma determina que:

“1 - A avaliação direta visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.

2 - A avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha”.

A avaliação direta tem como ponto de partida as declarações dos contribuintes e/ou os dados apurados na sua contabilidade, que se presumem verdadeiros – cfr. o art.º 75.º, n.º 1, da LGT.
A aplicação de métodos diretos de avaliação da matéria coletável redunda nas chamadas correções técnicas ou meramente aritméticas.(1)
Apelando às palavras de Casalta Nabais , (2)

“as correcções técnicas, são as correcções que a administração tributária faz à matéria tributável determinada no âmbito da avaliação directa, como a correcção concretizada, por exemplo, na não consideração de determinadas verbas como custos fiscais assim qualificadas na declaração de rendimentos (…) [;] (…) as correcções aritméticas ou correcções meramente aritméticas, têm lugar quando a administração tributária se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações”.

Já a avaliação indireta deverá ocorrer apenas nos casos previstos nos art.ºs 87.º a 89.º da LGT.
Para que seja legítimo o recurso à tributação por via dos métodos indiretos, cabe à AT o ónus da prova de que se reúnem os pressupostos da sua aplicação, consubstanciando­-se tal ónus probatório na demonstração da existência de situações fáticas, designadamente irregularidades contabilísticas, que assumam alcance tal que impossibilitam o recurso a métodos diretos de avaliação.(3)
Logo, quando se verificarem os pressupostos de recurso à avaliação indireta é possível lançar mão de métodos presuntivos de determinação da matéria tributável, surgindo como mecanismo de reação contra a fraude e evasão fiscal, dando resposta, por esta via, à incumbência do Estado, prevista no art.º 81.º, al. b), da Constituição da República Portuguesa.(4) [segundo o qual “[i]ncumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: (…) b) Promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal”].

O recurso a estes meios de avaliação não é discricionário, como se conclui do que viemos expondo: estão legalmente definidas, de forma circunscrita, as situações em que é admissível à AT a sua utilização.
Portanto, e em suma, o nosso ordenamento prevê que a avaliação da matéria tributável se possa realizar direta ou indiretamente, sendo que o recurso à avaliação indireta funciona como ultima ratio, só podendo ocorrer quando se revele impossível o recurso à avaliação direta. (5)Posto isto, o recurso a uma ou outra das formas de avaliação não é uma opção arbitrária da AT: ou se verificam condições para a avaliação direta ou, não existindo, nos termos já assinalados supra, é possível recorrer à avaliação indireta.
Feito este introito, cumpre apreciar.

In casu, a AT considerou não ser dedutível o gasto titulado pela fatura mencionada em 6) do probatório, em virtude de a mesma não conter, em seu entender, todos os requisitos constantes do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC.

Ora, estamos perante uma situação em que a própria lei prevê a não dedução de um determinado custo quando o documento de suporte tenha determinadas lacunas [cfr. art.º 23.º-A, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CIRC; ainda que, como veremos infra, seja admissível suprir essas lacunas].

Trata-se de situação perfeitamente identificável e mensurável, pelo que se trata de caso suscetível de correção através de métodos diretos, inexistindo fundamento, pois, que sustente o recurso à avaliação indireta.

Como tal, nesta parte, não assiste razão à Recorrente.

III.B. Do erro de julgamento, quanto ao preenchimento dos requisitos constantes do art.º 23.º, n.º 4, do CIRC, e do défice instrutório

Considera, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, em virtude de estarem cumpridas as exigências constantes do art.º 23.º, n.º 4, do CIRC, sendo que, de todo o modo, sempre o Tribunal a quo, caso assim não o entendesse, deveria ter levado a efeito as diligências instrutórias requeridas.

Vejamos, então.

In casu, a correção sob escrutínio respeita à fatura mencionada em 6) do probatório. Extrai-se, em síntese, do relatório de inspeção tributária (RIT), o seguinte discurso fundamentador da AT, para sustentar tal correção:

a) A representante legal da Recorrente foi ouvida, tendo referido que a fatura respeitava a fornecimento de fotocopiadora e fornecimento de consumíveis, decoração de três viaturas, fornecimentos de flyers, cartões de visita, envelopes (com e sem janela), cartazes em formato A3 e sinalética;

b) Foi referido que foi celebrado contrato verbal;

c) Não estão reunidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do art.º 23.º do CIRC, a saber:

- Quanto à menção “aluguer de equipamentos sem limite de impressões de 01.02.2014 a 31.12.2014”, não são definidos quantos nem quais os equipamentos, não cumprindo os requisitos do art.º 23.º, n.º 4, al. c);

- Não obstante as declarações da representante legal, a fatura não titula a aquisição de fotocopiadora;

- Quanto aos logotipos e economato, não são definidos quantos e quais os logotipos, a data em que o serviço foi realizado, não é definido nem quantificado o economato, não são indicadas as datas dos fornecimentos, não é discriminado o preço referente ao design do logotipo nem das diversas componentes do economato [cfr. art.º 23.º, n.º 4, als. c), d) e e)];

- Quanto à decoração das viaturas e sinalética, não estão cumpridos os requisitos do art.º 23.º, n.º 4, als. d) e e), dado não estar indicada a data de fornecimento dos bens e a da prestação dos serviços nem indicado o preço da decoração das viaturas e dos fornecimentos de sinalética e respetiva colocação.

Vejamos, então.

In casu, estamos perante uma desconsideração de um gasto, para efeitos de IRC, ao abrigo do art.º 23.º-A, n.º 1, al. c), do CIRC.

Estando nós perante IRC de 2014, trata-se do primeiro exercício em que foi aplicada a disciplina resultante de uma significativa reforma da tributação das sociedades, que deu origem à Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

Tal como já acontecia com a disciplina anterior, para a aceitação de um determinado gasto como sendo dedutível, é exigido que o mesmo se encontre cabalmente documentado.
Na disciplina pretérita, essa exigência resultava, desde logo, do corpo do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, que utilizava o advérbio comprovadamente”(6)
Era entendimento pacífico a este propósito que, sendo certo que, em regra, a efetiva existência de um gasto é aferida e comprovada pela fatura respetiva, que faz com que haja uma presunção de veracidade do gasto que documenta, a mesma pode ser comprovada por outro documento, que, se dotado de algumas insuficiências, poderá ser complementado através de recurso a outros meios de prova, designadamente meios complementares de prova documental e testemunhal. (7)
Como referido por António Moura Portugal, (8) “… para efeitos de IRC, a exigência de prova documental nesta sede não se confunde com a exigência de factura, bastando, para comprovação de que o custo foi incorrido, a existência de simples documento interno (…), acompanhada por outros meios de prova que inculquem no julgador a convicção que a operação material teve lugar e que efectivamente foi necessária para a obtenção dos proveitos”.

Por forma a refletir, de algum modo, o que já resultava destes entendimentos e a dotar a lei de especificações mais concretas, em termos de requisitos que devem constar dos elementos documentais que sustentam o gasto, o CIRC passou a consagrar uma maior densificação neste domínio.
Como resulta do Relatório elaborado pela comissão para a reforma do IRC, face à extensa litigância em torno deste tipo de questão, considerou-se que deviam ser “clarificados os casos de não-aceitação de gastos para efeitos fiscais por incumprimento dos requisitos atinentes ao respetivo suporte documental".(9)

Daí que tenha sido proposta a redação do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC, em termos similares à que veio ser adotada a final (não obstante o aditamento de um n.º 6, não constante da proposta da comissão, aqui não relevante, por não ter sido o mesmo que sustentou a correção em crise, dado que existia fatura emitida).

Assim, o art.º 23.º do CIRC, na redação aplicável in casu, prescreve que:

“4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos:

a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;

b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

d) Valor da contraprestação, designadamente o preço;

e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados”.

Por seu turno, o art.º 23.º-A, n.º 1, do CIRC prescreve:

“1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

(…)

c) Os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º, bem como os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou inválido ou por sujeitos passivos cuja cessação de atividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do n.º 6 do artigo 8.º”.

Este quadro legal, definindo concretamente os elementos mínimos que devem constar do documento que sustenta o gasto em causa, não afasta a hipótese de a demonstração de determinados elementos ser feita através de outros meios de prova, designadamente quando as faturas de que dispõe o sujeito passivo não tenham o nível de detalhe exigido.

Aliás, veja-se que, mesmo ao nível do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), considera-se que, em nome do respeito pelo princípio da neutralidade, seja admitida a demonstração das exigências de fundo do direito à dedução através de outros meios de prova, quando as faturas padeçam de algumas irregularidades formais [seguindo-se o entendimento plasmado, desde logo, na jurisprudência do Tribunal de Justiça de União Europeia (TJUE), de onde destacamos os Acórdãos do TJUE de 08 de maio de 2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07, EU:C:2008:267, de 1 de março de 2012, Polski Trawertyn, C-280/10, EU:C:2012:107, e de 15 de setembro de 2016, Barlis, C-516/14, EU:C:2016:690].

Assim, como referido no Acórdão do TJUE de 08 de maio de 2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07, EU:C:2008:267, n.º 63, “o princípio da neutralidade fiscal exige que a dedução do IVA a montante seja concedida se as exigências de fundo foram cumpridas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais”.

Ora, se, para efeitos de IVA (imposto em cuja disciplina, por força das suas próprias caraterísticas, há uma importância muito mais proeminente do papel do cumprimento dos requisitos exigidos às faturas), o entendimento é no sentido de, em respeito pelo princípio da neutralidade, se admitir a dedução, quando, designadamente através de meios complementares de prova documental, são demonstradas as exigências substantivas da operação, consideramos que, por maioria de razão e em respeito pelo princípio da tributação pelo rendimento real, semelhante raciocínio tem de ser aplicável em sede de IRC.

Com efeito, só este entendimento, em nosso entender, permite salvaguardar o respeito do princípio da tributação pelo rendimento real, princípio esse com assento na nossa lei fundamental (cfr. art.º 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

Não é controvertido que não foi posta em causa a veracidade das operações tituladas na fatura mencionada em 6) do probatório, centrando-se a AT exclusivamente na falta de preenchimento de alguns dos requisitos constantes do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC.

Analisemos, pois, se tais requisitos estão ou não preenchidos, seguindo a mesma ordem sistemática constante do RIT.

(i) «Aluguer de equipamentos sem limites de Impressões de 01-02-2014 a 31-12- 2014»

Como já referido supra, nesta parte, a AT considerou não terem sido preenchidos os requisitos constantes da alínea c) do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC (quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados).

Em sede de análise do referido no âmbito do exercício do direito de audição, a AT faz ainda menção à falta de menção da periodização.

Quanto a esta parte da fatura, concorda-se com a Recorrente, quando refere que a AT fez uma extrapolação das declarações da sua representante, ao afirmar estar-se perante uma aquisição de fotocopiadora.

Nas declarações referidas a expressão utilizada é fornecimento de uma fotocopiadora, o que de todo equivale a aquisição, nem há qualquer sustentação a esse propósito (veja-se que toda a contabilização efetuada pela Recorrente e descrita no RIT evidencia, justamente, que não foi adquirida qualquer fotocopiadora – aliás, nada foi corrigido nesse seguimento).

No tocante à periodização, desde já se refira que a mesma consta expressamente da fatura, com indicação do período temporal abrangido, o que não foi posto em causa.

Quanto à alínea c) do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC, de facto, considera-se que a fatura contém imprecisões, na medida em que se apreende que a mesma respeita a aluguer de equipamentos sem limite de impressões, mas não é inequivocamente referido que equipamento ou equipamentos foram alugados.

Portanto, quanto ao preenchimento deste requisito, considera-se, efetivamente, que o mesmo se encontra por cumprir nos termos exigíveis.

(ii) «Design de logotipos e impressão de economato»

No tocante a esta parte da fatura, a AT refere não terem sido cumpridos os requisitos das alíneas c), d) e e) do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC.

Com efeito, concorda-se com este entendimento, na medida em que há vários serviços aqui incluídos sem um nível de detalhe exigível (quantos logotipos, quantas impressões de economato). O valor surge em bloco, não sendo percetível que valor respeita a cada componente dos serviços, inexistindo igualmente a menção temporal exigida.

Portanto, aqui concorda-se com a AT ao referir que os requisitos constantes das als. c) a e) do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC não estão cabalmente cumpridos.

(iii) «Decoração de 2 viaturas e colocação de sinalética interior e exterior»

Finalmente, quanto a esta terceira componente, a AT considerou não estarem cumpridos os requisitos previstos nas als. d) e e) do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC. Estão, pois, apenas em causa o valor da contraprestação e a data [e não a alínea c), pelo que carece de relevância o referido pelo Tribunal a quo quanto ao número de viaturas, dado que a descrição da fatura e a sua efetividade não foram postas em causa].

Neste caso, a AT apreciou corretamente as lacunas das faturas, justamente pela ausência de discriminação do valor, quando estamos perante vários serviços (decoração de viaturas e colocação de sinalética), estando igualmente ausente o momento temporal.

Portanto, não se acompanha o entendimento da Recorrente, no sentido de que a fatura responde integralmente às exigências do n.º 4 do art.º 23.º do CIRC.

No entanto, já se acompanha o seu entendimento quanto à ausência de diligências instrutórias.

Com efeito, entende-se que, nestes casos, as lacunas que haja nas faturas podem ser supridas por qualquer meio de prova, preferencialmente documental, mas não excluindo a testemunhal.

Logo, face a este quadro, o Tribunal a quo não poderia ter deixado de realizar as diligências instrutórias requeridas, não se acompanhando o entendimento plasmado na sentença recorrida, no sentido de que apenas são aceitáveis, enquanto prova, elementos documentais contemporâneos da fatura.

Acrescente-se que, em sede de exercício do direito de audição, a Recorrente se disponibilizou para substituir o documento, facultando inventariação pormenorizada. Ora, deveria igualmente o Tribunal a quo ter requerido, oficiosamente, tal inventariação (quer junto da Recorrente, quer mesmo junto do próprio emitente da fatura).

O Tribunal a quo, ao não ter levado a cabo as diligências instrutórias, incorreu em défice instrutório, não respeitando o princípio do inquisitório.

O princípio do inquisitório é um dos princípios que enforma o processo tributário. Atento o mesmo, impõe-se que o juiz realize ou ordene todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade material.

O mesmo encontra previsão expressa no n.º 1 do art.º 99.º da LGT, nos termos do qual “[o] tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer”, encontrando-se consagrado, em termos idênticos, no art.º 13.º do CPPT.

O respeito pelo princípio do inquisitório implica, pois, que, sendo relevantes para a descoberta da verdade material, se levem a cabo diligências de prova, quer requeridas pelas partes, quer mesmo oficiosamente.

Assim, o respeito pelo princípio do inquisitório reflete-se, desde logo, na decisão de ordenar a realização das diligências necessárias à descoberta da verdade material.
A circunstância descrita no caso em concreto implica a anulação da sentença sob escrutínio, (10) atento o disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.

Como tal, neste prisma, assiste, neste concreto segmento, razão à Recorrente, o que implicará que os autos retornem ao Tribunal a quo para a realização das necessárias diligências instrutórias e ulterior apreciação apenas no sentido de estarem ou não demonstrados os elementos em falta e supra enumerados – com a eventual ampliação da decisão proferida sobre a matéria de facto daí adveniente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, anular a sentença na parte recorrida, por défice instrutório;

b) Ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para eventual ampliação da matéria de facto na sequência da realização das diligências de prova referidas supra e outras que se venham a revelar pertinentes;

c) Sem custas;

d) Registe e notifique.


Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Jorge Cortês)

(Luísa Soares)






















1) Para uma noção de correções meramente aritméticas, v. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.09.2013 (Processo: 00120/03 – Porto).
2) Direito Fiscal, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 389.
3) Neste sentido, v., exemplificativamente, os Acórdãos deste TCAS de 17.10.2019 (Processo: 487/11.6BECTB), de 25.05.2017 (Processo: 06473/13), de 17.03.2016 (Processo: 06556/13) e de 13.03.2014 (Processo: 07216/13).
4) V. a este propósito o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 84/2003, de 12.02.2003.
5) V. a esse respeito José Maria Fernandes Pires (Coord), Maria João Menezes, José Ramos Vidal e Gonçalo Bulcão, ob. cit., pp. 867 e 888.
6) Cfr., a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16.03.2005 (Processo: 00340/03) e de 23.04.2015 (Processo: 06468/13).
7) Cfr. Tomás de Castro Tavares, «Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas colectivas: algumas reflexões ao nível dos custos», Ciência e Técnica Fiscal, 396, p. 123.
8) A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 204.
9) Relatório Final – uma reforma do IRC orientada para a competitividade, o crescimento e o emprego, pp. 90 e 91.
10) Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23.10.2013 (Processo: 0388/13).