Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:22/22.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/31/2022
Relator:CATARINA VASCONSELOS
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário:I - Um processo justo (art.º 20º, n.º 4 da CRP) não pode consentir que as partes sejam surpreendidas com decisões e com uma fundamentação que, razoavelmente, não podiam prever e que não tiveram oportunidade de contrariar.
II - A violação do princípio do contraditório no momento em que se profere a sentença é causa de nulidade da mesma nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC (excesso de pronúncia).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

O V…– Futebol, SAD, nos termos dos art.ºs 8º, n.ºs 1, 2 e 5 da LTAD, interpôs o presente recurso do acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 12 de novembro de 2021 que julgou improcedente o recurso do acórdão proferido pelo Pleno de Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol no âmbito do processo disciplinar n.º 98-19/20 no qual foi a Demandante condenada a uma multa de € 1 224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros) e à realização de 2 (dois) jogos à porta fechada pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 62º, nº 1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (“RDFPF”).
Formulou as seguintes conclusões:

1º.
Vem o presente recurso interposto da decisão proferido pelo Colégio Arbitral constituído sob a égide do Tribunal Arbitral do Desporto e que confirmou a decisão que havia sido proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.
2º.
É entendimento do Recorrente que a decisão proferida padece de vícios, quer no apuramento da matéria de facto, quer na solução de direito que propugnou, razão pela qual este Recurso versa matéria de facto e matéria de direito.

É entendimento do Recorrente que deveria ter sido dada como provada a seguinte matéria de facto:
a) O Campo Gémeos Castro, em Candoso, Guimarães não possuía sistema de som para anúncios ao público espectador, nem estava regularmente obrigado a possui-lo!
b) O director de segurança da Demandante, A…, presente no recinto de jogo identificou a pessoa que proferiu observações de cariz racista dirigidas ao jogador J…, tratando-se de um adepto idoso;
c) O Senhor A… mandou um reforço de ARD’s para o local antes de ter identificado o adepto, circunstância que serenou os ânimos;
d) O Comandante do Policiamento da PSP, J…, presente no recinto de jogo, foi informado pelo Senhor A… de quem era o adepto, tendo aquele decidido que o mesmo não seria expulso, para não acicatar os ânimos e, para além disso, porque era idoso, ia ter o apoio do público, pelo que seria apenas identificado no final do jogo num auto a ser elaborado para o efeito;
e) O Senhor A… acatou a referida ordem policial;
f) O delegado da FPF apareceu no local após o Senhor A… ter identificado o adepto;
g) A Demandante tem implementadas as seguintes medidas destinadas à prevenção e combate a comportamentos racistas: (i) o equipamento é branco e preto; (ii) a decoração no estádio com frases contra comportamentos racistas, como sucedeu, por exemplo, aquando da realização de jogos da Liga das Nações; (iv) a existência de murais com antigos jogadores do V… de raça negra; (v) o Relações Públicas é de raça negra – N…; (vi) a realização de ações nas escolas contra a violência e o racismo; (vii) a divulgação de vídeos e de mensagens por parte do speaker antes e depois dos jogos; (viii) a realização de ações de sensibilização e de formação dos adeptos, designadamente através do OLA;
h) A identificação do adepto permitiu que a Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto instaurasse um processo de contraordenação nos termos do qual o mesmo foi admoestado e lhe foi aplicada uma sanção assessória de interdição de acesso a recintos desportivos pelo período de 9 meses;
i) A Demandante instaurou um processo disciplinar contra o adepto.”


Para formação da convicção quanto a estes fatos que deveriam ter sido dado como provados, resulta o depoimento da testemunha A…, em nada posto em causa nos autos, bem como a demais prova documental dada nos autos, tudo conforme resulta do corpo das alegações.

Desde sempre ressaltou à saciedade dos autos, vertida no relatório do delgado da FPF e do relatório do Chefe da Força policial, que terá sido apenas uma pessoa aquela que alegadamente dirigiu palavras de cariz racista ao Jogador J…

Resulta, também de forma abundante que os elementos do Staff do V… tentaram acalmar os ânimos da bancada única existente no recinto, partilhada por adeptos visitados e visitantes, ânimos esses que, na sua globalidade não tinham qualquer teor racista ou xenófobo (feita exceção daquele único adepto).

Foi precisamente por os elementos do V… e os elementos da força policial, terem tentado ir acalmar os ânimos que foi possível ouvir, dentro daqueles ânimos exaltados, que havia uma única pessoa singular que estaria a dirigir palavras de cariz racista,

Apenas ao chefe da força policial cabia autoridade para remover aquele adepto da bancada, mas no entanto este esclareceu nos autos que: fls. 111, que «o infrator não foi expulso do recinto desportivo porque, os ânimos estavam exaltados por parte dos adeptos da equipa visitada e eram em número considerável, para que não houvesse uma reacção violenta por parte desses adeptos que eram em número significativo», aditando que «uma intervenção musculada por parte da PSP poderia desencadear uma alteração da ordem pública, podendo por em risco terceiros, que nada tinham a ver com a situação», terminando concluindo que «por tal motivo entendeu-se interceptar e identificar o infrator apenas no final do jogo, tendo sido informado do motivo da identificação e dos trâmites legais a seguir»;

Realça-se, agora, que conforme expos a testemunha A…, Coordenador de Segurança do V…SAD, esta decisão do Comande policial foi-lhe também a ele comunicada, pelo que, o que existiu por parte do V…, foi um total acatamento da ordem da P.S.P, mas é também importante realçar que, conforme também expos a testemunha A…, este colaborou e foi preponderante para que ambos (i.e, o coordenador de segurança e o comandante de policiamento) conseguissem detetar aquele único individuo que tomou as lamentáveis condutas relatadas nos autos.
10º
Entende o recorrente que a procedência do recurso da matéria de facto demonstra, desde logo, a existência dos factos que impõe a sua absolvição, mas, no entanto, ainda que o recurso da matéria de facto seja julgado improcedente, a correta interpretação da norma jurídica impõe a absolvição do arguido.
11º
É entendimento do recorrente que a norma do artigo 62º do RDFPF, não contém, nos seus elementos objectivos, a tipificação de uma conduta omissiva de um clube no sentido de aquela conter uma obrigação de, em momento posterior aos factos, o clube punir os adeptos que pratiquem actos racistas, sob pena de, na sua ausência, se ter como assente que o clube consentiu ou tolerou o acto racista anteriormente sucedido.
12º
Na verdade, nos termos do artigo 62º do RDFPF, a acção ou omissão do clube, tem que ser tida como causal na produção do resultado, o que excluiu desde logo a interpretação da decisão recorrida no sentido de que a produção desse resultado tenha ocorrido pela omissão de um acto a praticar posteriormente ao resultado!
13º
Fácil está de compreender, assim, a incoerência lógica em que incorre a decisão recorrida, cuja interpretação não encontra qualquer amparo na norma punitiva, pelo que cumpre absolver o recorrente!
14º
Por outro lado, nos termos do artigo 66º do RDFPF a Recorrente tem a obrigação de punir aquele seu adepto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8º alínea c) e artigo 39-A n.º 1 alínea b) da lei de combate á violência, racismo, xenofobia no desporto, aprovado pela lei 39/2009 de 30 de Julho na sua actual redação, doravante LCVD.
15º
Assim, o incumprimento da arguida deste seu dever legal previsto nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8º alínea c) e artigo 39-A n.º 1 alínea b) da LCVD faria a arguida incorrer numa violação ao sobredito artigo 66º do RDPFP.
16º
Aqui chegados, conclui-se que o entendimento que a decisão recorrida faz da norma do artigo 62º do RD entra em conflito com a norma do artigo 66º do RD, na medida em que ambas as normas exigiriam ao V… a punição do seu adepto, sob pena de incorrer em infração disciplinar, pelo que, a vingar o entendimento que a decisão recorrida faz do artigo 62º n.º 1 do RD, deparamonosíamos, assim, com a existência de um verdadeiro e efetivo concurso de normas punitivas, uma vez que o artigo 62º e o artigo 66º, ambos do RD, disputariam, entre si, a autoridade punitiva sobre a conduta típica, in casu, a falta de punição do adepto.
17º
É, assim, premente, concluir-se que a norma típica do artigo 62º do RD não contém, nos seus elementos objectivos, a tipificação de uma conduta omissiva de um clube no sentido de aquela conter uma obrigação de, em momento posterior aos factos, o clube punir os adeptos que pratiquem actos racistas, sob pena de, na sua ausência, se ter como assente que o clube consentiu ou tolerou o acto racista anteriormente sucedido.
18º
A decisão do Conselho de Disciplina, entendeu que o V… consentiu ou tolerou o acto racista, uma vez que “ este ponto é decisivo para podermos afirmar a tolerância da sociedade anónima desportiva arguida. Com efeito, no mínimo, logo que foi audível o proferir de tais expressões, estes deveriam ter reagido de imediato, uma vez que nessa altura era já absolutamente evidente, para todos, o que se estava a passar. Não obstante, nesse momento, os dirigentes da SAD arguida nada fizeram, permaneceram inertes, aceitando passivamente a conduta do seu adepto, tomando perante a mesma a posição de meros espetadores, assim a tolerando. A SAD arguida adotou pois uma atitude omissiva perante a ocorrência dos factos, não tendo reagido de modo algum, designadamente mediante o contato direto e pessoal perante o adepto prevaricador, com vista a determinar que tal comportamento cessasse, o que podia e devia ter feito, assim tolerando aquela conduta do seu adepto. E essa tolerância apenas cessou no momento em que o Delegado da FPF os «obrigou» a agir (sendo aliás de acreditar, pelos elementos que emergem dos autos, que, se o mesmo o não tivesse feito, a sociedade anónima desportiva não teria tomado qualquer atitude.)” – Cfr. decisão do Conselho de Disciplina, ponto 57.
18º
Quer isto dizer que, quando em 28 de Setembro de 2020, o Recorrente intentou recurso junto do Tribunal Arbitral do Desporto, toda a conduta omissiva que lhe era imputada e que constituía a fundamentação da condenação, residia numa suposta omissão de atos pelo V…, durante o jogo, junto do adepto que terá proferido os insultos racistas.
19º
No entanto, a decisão recorrida, tendo aceite o recurso do V… naquilo que constitui a impugnação dos fundamentos da decisão do conselho de Disciplina, optou por uma inovadora via punitiva e ancorou a sua fundamentação, numa alegação que “deveria a Demandante ter procurado outras soluções para fazer cessar o grave incidente que se verificou e evitar semelhantes comportamentos para o futuro, como fossem: alertar direta e pessoalmente o adepto infrator (que era apenas um, e estava individualmente identificado); aproveitar este incidente para expor e repudiar publicamente este tipo de comportamentos, alertando a massa associativa para a ilegalidade destes comportamentos e a possibilidade de penalização do clube; ou ainda, impor ao adepto em causa um procedimento disciplinar interno célere e eficaz, culminando numa sanção disciplinar efetiva e exemplar. Não tendo feito nada disto, nem esboçado qualquer outra reação ou iniciativa semelhante, deve concluir-se que a Demandante não fez o que se lhe exigia, revelou inexplicável passividade perante o incidente e incumpriu com os seus deveres gerais de proteção do fenómeno desportivo e combate aos comportamentos violentos e discriminatórios.” – Cfr decisão recorrida , sumário ponto III.
20º
A fundamentação que a decisão recorrida optou, verdadeiramente inovadora no processo, constitui matéria que não fazia parte do objeto do litígio, tal como foi configurado pela decisão do Conselho de Disciplina, constituindo, assim um atropelo ao objecto do processo, o que em tudo prejudicou o arguido, posto que não logrou fazer prova sobre essa matéria, que, até à decisão, lhe era desconhecida.
21º
Assim, a decisão recorrida, ao condenar o recorrido com base em matéria que não fazia parte do objeto do litígio, tal como foi configurado pela decisão do Conselho de Disciplina, ignorando a estrutura acusatório do processo, procedeu a uma violação nítida do direito ao contraditório, conforme este se encontra vertido no artigo 34º alínea c) da lei 74/2013 de 6 de Setembro na sua redação actual.
22º
Como tal, tem-se como inconstitucional, por violação do artigo 32º n.º 5 da CRP, a interpretação que extraia dos artigos 34º alínea c) e 46 da lei 74/2013 de 6 de Setembro na sua redação actual, no sentido de que a decisão a proferir pelo tribunal Arbitral, pode, sem qualquer necessidade de contraditar o arguido, proceder à sua condenação com base em e factos fundamentação diversa da que consta na decisão recorrida, in casu, do Conselho de Disciplina.
23º
Ademais, a decisão recorrida incorreu, de igual modo, em nulidade por violação do disposto nos artigos 379 n.º 1 aliena b) e c) do Código de Processo Penal, o que aqui, também, expressamente se invoca!
24º
No caso em apreço os relatórios do jogo, do delegado da FPP ao mesmo e de policiamento, bem como o depoimento prestado pela testemunha inquirida, nada referem quanto a um qualquer comportamento do arguido e, tão pouco, a um qualquer dever, legal ou regulamentar, por este inobservado, concretamente por via do enunciar, de forma objetiva e concreta, de factos, de atos ou omissões do arguido destinados a evitar o comportamento ocorrido e, em consequência disso, se poder estabelecer um nexo de causal com a conduta do seu adepto e, assim, dela se pudesse retirar o juízo de censurabilidade subjacente a uma violação culposa por sua parte de deveres in vigilando.
25º
Deste modo, sempre também fica por provar a culpa do arguido quanto ao comportamento do seu adepto, pelo que sempre se teria, por esta razão, que ter por inverificada a infração que lhe era imputada, que só pode resultar de um seu comportamento culposo –afastada que está a possibilidade de qualquer responsabilidade objetiva - ou seja, de a V… ter violado (por ação ou omissão) um concreto dever que lhe era imposto.
26º
Atento o exposto, não tendo a Recorrida quer nesta sede arbitral, quer em sede disciplinar - logrado fazer a prova da atuação culposa do arguido, não está preenchido o tipo do ilícito p.p. no artigo 62º, n.º 1 do RDFPF – posto que não provou que o arguido tivesse violado e, muito menos, culposamente, concretos deveres regulamentares e legais a que se encontra adstrita, promovendo, consentindo ou tolerando, por via de ações ou omissões concretamente identificadas, as palavras de cunho racista que um adepto dirigiu a um jogador.
27º
Como se disse, a fundamentação que a decisão recorrida optou verdadeiramente inovadora no processo, constitui matéria que não fazia parte do objeto do litígio, tal como foi configurado pela decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF .
28º
Por esse motivo, o Recorrente não logrou fazer prova, no decorrer da audiência disciplinar dos actos que praticou, posteriormente ao jogo, no sentido de proceder á punição do adepto, pelo que, abrigo dos artigos 423º e 651º do Código de Processo Civil, o Recorrente requer a junção aos autos da decisão disciplinar que, em processo movido pelo V… contra o seu sócio que praticou os actos racistas em causa nos autos, o condenou, em 9 de Dezembro de 2020, na sanção de 9 meses de suspensão prevista no artigo 19º n.º 1 alínea b) dos seus estatutos.
29º
Do documento junto resulta, assim, à saciedade que o V… não ficou inerte à conduta daquele seu adepto, tendo-o punido com uma sanção de suspensão, o que fez num processo disciplinar célere que, em plena pandemia e confinamento, se iniciou e concluiu em apenas 5 meses, facto do qual resulta, de igual modo, o total desacerto da decisão recorrida, pelo que, também por esse motivo, deve o recorrente ser absolvido.

A Recorrida contra-alegou tendo formulado as seguintes conclusões:

O recurso da V… – Futebol SAD tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto que declarou improcedente o recurso interposto, o qual dizia respeito à impugnação do acórdão de 18.09.2020, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, através do qual foi confirmada a decisão de aplicação à ora Recorrente de multa e de 2 (dois) jogos à porta fechada, por aplicação do disposto no artigo 62.º, n.º1, do RD da FPF.

Em concreto, a Recorrente foi punida por, em jogo disputado no Campo Gémeos Castro, em Candoso, Guimarães, em jogo disputado entre a equipa da Recorrente e a S…, Futebol SAD, a contar para a Liga Revelação Sub 23, os seus adeptos terem levado a cabo variadíssimos comportamentos incorretos, designadamente insultos de índole racista dirigidos a jogador da equipa adversária.

A Recorrente invoca matéria que não foi alegada na petição inicial apresentada junto do Tribunal Arbitral do Desporto e de que, por isso, aquele Colégio Arbitral não se ocupou, designadamente, a junção de documento que atesta a sanção aplicada ao adepto que proferiu os insultos racistas.

Vigora o princípio, acolhido dominantemente pela jurisprudência, de que os recursos são meios de obter a reforma das decisões dos tribunais inferiores pelo que o seu objeto tem de cingir-se em regra à parte dispositiva destas encontrando-se, portanto, objetivamente delimitado pelas questões postas ao tribunal recorrido.

É sobre o Recorrente que impende o ónus de alegar e concluir, não podendo suscitar questões novas, não enunciadas na petição inicial apresentada previamente, sendo que, notoriamente, não foram arguidas nulidades de conhecimento oficioso nem existem questões supervenientes à tomada de decisão por parte do Tribunal Arbitral que poderiam legitimar uma reexame, ou exame ex novo, por parte deste Tribunal Central Administrativo.

A Recorrente vem juntar um novo documento, que podia já ter sido junto anteriormente em sede de processo arbitral, suscitando assim uma questão nova apenas perante o Tribunal ad quem, já que não foi invocada perante o Tribunal a quo.

A Recorrente pretende a emissão de pronúncia sobre questões novas, pelo que tais questões suscitadas nas conclusões excedem o objeto do recurso, implicando a sua apreciação a preterição de um grau de jurisdição, pelo que, salvo melhor entendimento, não podem ser conhecidas por este Douto Tribunal Superior.

A Recorrente não nega a ocorrência dos factos pelos quais foi punida e não nega que os factos foram praticados por adeptos ou simpatizantes do V…. Ficou, portanto, por discutir se a Recorrente violou os deveres que sobre si impendem – e é inegável que os violou, por omissão, tal como entendeu o Colégio Arbitral no seu Acórdão ora recorrido.

Os representantes da Recorrente poderiam ter procurado abordar diretamente o autor dos referidos insultos e alertá-lo para a gravidade (e ilegalidade!) do seu comportamento, procurando sensibilizá-lo para a necessidade de cessar e abster-se do mesmo, sob pena de estar a penalizar o espetáculo e o seu clube, para além de se estar a sujeitar a penalizações disciplinares em várias frentes.
10º
Poderia a Recorrente, publicamente, ter feito uma denúncia e manifestação de repúdio pelo referido comportamento.
11º
Deveria a Recorrente apostar em medidas preventivas, de sensibilização da sua massa associativa para a temática do racismo e demais comportamentos incorretos no Desporto.
12º
Dispõe artigo 62.º, n.º 1 do RD da FPF, o seguinte: “1. O clube que promova, consinta ou tolere qualquer tipo de conduta, escrita ou oral, que ofenda a dignidade de agente desportivo ou espectador em função da sua ascendência, género, raça, nacionalidade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, é sancionado com realização de 2 a 5 jogos à porta fechada e cumulativamente com multa entre 10 e 30 UC.”
13º
A expressão utilizada pelo adepto da Recorrente, a saber, “preto vai para a Cova da Moura”, são aptas a ofender a dignidade do visado, em função da sua raça. Com efeito, estamos perante um menosprezo e inferiorização em razão da raça do jogador J…, o merece tutela disciplinar.
14º
Tanto mais que a referida norma do artigo 62.º, n.º 1 visa sancionar condutas como aquela em crise nos autos, sendo que, no caso concreto, sanciona a Recorrente que, tendo tido conhecimento da especial gravidade da agressão praticada, nada fez, demonstrando a sua indiferença perante a mesma.
15º
Ora, não reagindo a tal comportamento do seu adepto, a Recorrente tolera o referido comportamento que ofende a dignidade do visado em função da sua raça.
16º
A Recorrente adotou assim uma postura omissiva perante a ocorrência de actos discriminatórios, por parte de um seu adepto, como alias, a própria Recorrente afirma que fez, justificando que o fez, por indicação das autoridades policiais.
17º
Cumpre esclarecer que o facto de as autoridades afirmarem que não irão intervir directamente no episódio em concreto, não justifica que a Recorrente, porque mais próxima e com outro tipo de relação com os seus adeptos, não o faça.
18º
Assim, a Recorrente, adoptando o comportamento omissivo, representou como possível que o resultado da sua conduta consubstanciaria a prática de um ilícito disciplinar, sendo que não diligenciou par que tal não acontecesse.
19º
Ora, a Recorrente ao ter conhecimento e ao nada ter feito para pôr cobro a estes comportamentos, acabou por os tolerar e consentir, encontrando-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo da norma constante no artigo 62.º, n.º 1 do RD da FPF.
20º
As testemunhas ouvidas em sede arbitral em nada contrariam ou colocam em crise a factualidade dada como provada pelo Conselho de Disciplina.
21º
Em suma, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão recorrido, deve o recurso ser considerado totalmente improcedente.

O Ministério Público não se pronunciou.

Da requerida junção de documento:
Com o requerimento recursivo, a Recorrente junta um documento que consubstancia uma decisão da “Direção do V…”, em 9 de dezembro de 2020, no âmbito de processo disciplinar que moveu contra o seu sócio, autor da alegada expressão de teor racista, nos termos da qual foi este punido com a sanção de 9 meses de suspensão.
Trata-se, portanto, de um documento pré-existente em relação à data em que foi proferido o acórdão recorrido (11.11.2021).
A junção de documentos na fase de recurso apenas se pode admitir a título excecional e depende da alegação pelo interessado nessa junção da impossibilidade da sua apresentação em momento anterior e de ter o julgamento em primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, como resulta dos art.ºs 651º, n.º 1 e 425º e 423º do CPC (cfr. v.g. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09.2012. processo 174/08, do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.02.2018, processo 176/14, do Tribunal da relação do Porto de 08.03.2018, processo 4208/16 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.11.2014, processo 628/13, todos publicados em www.dgsi.pt).
O documento em questão não é superveniente (objetiva ou subjetivamente).
Mas, efetivamente, o acórdão arbitral de que se recorre introduziu um “fator de novidade” (em relação ao acórdão do Pleno de Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina) que justifica a junção do documento apenas nesta fase.
Na verdade, aí se identifica, pela primeira vez, algumas condutas omissivas que são imputadas à Recorrente, referindo-se, designadamente, que “poderia ainda a Demandante ter iniciado imediatamente, e conduzido com celeridade, processo disciplinar interno para sancionar o adepto envolvido”.
E, portanto, tem-se por justificada a junção apenas agora (em sede de recurso da decisão do TAD) de documento que vise refutar o facto (negativo) a que o Tribunal recorrido, inovatoriamente, atribuiu relevância decisiva para efeitos de subsunção do comportamento da Recorrente ao tipo-de-ilícito em questão (não obstante, indevidamente, não o tenha elencado na fundamentação de facto).
Termos em que se admite a junção do documento.


II – Objeto do recurso:

Em face das conclusões formuladas, são as seguintes as questões que cumpre conhecer:
- nulidade do acórdão (decorrente da violação do princípio do contraditório);
- erro de julgamento quanto a matéria de facto (inclusão nos factos provados de nove factos que não foram selecionados);
- erro de julgamento quanto a matéria de direito (violação dos art.ºs 32º, n.º 5 da CRP e do art.º 62º, n.º 1 do RDFPF).


III - Fundamentação De Facto:

No acórdão recorrido foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. Na época desportiva 2019/2020, a arguida V… –Futebol, SAD esteve inscrita, entre outras competições, na Liga Revelação Sub 23, prova organizada pela FPF.

2. No dia 07 de dezembro de 2019, realizou-se, no Campo Gémeos Castro, em C… Guimarães, o jogo oficial nº230…, disputado entre a V…, SAD e a B…, SAD, a contar para a jornada 19 da Liga Revelação Sub 23, época desportiva 2019/2020, cujo resultado final foi 0-4, com vitória da equipa visitada, B…, SAD.

3. A equipa de arbitragem que dirigiu esse jogo era composta por J…, árbitro, J…, árbitro assistente nº 1, e L…, árbitro assistente nº2.

4. Aquele jogo oficial foi acompanhado por Delegado da FPF, e a segurança esteve a cargo da Polícia de Segurança Pública, num total de 10 (dez) elementos, e não contou com a presença de observador da equipa de arbitragem.

5. A partir do minuto 67 do jogo, aquando da marcação do segundo golo da equipa visitante, e sempre que o jogador nº 7 da B…, SAD, J…, tocava na bola, os adeptos afetos à equipa da V…, SAD, que se encontravam na bancada exclusivamente destinada aos adeptos visitados, por detrás dos bancos de suplentes, e que envergavam adereços alusivos àquele clube, dirigiram-lhe diversas palavras, nomeadamente: “filho da puta, boi”; e, um desses adeptos, disse ainda “corta o cabelo piolhoso” e “preto, vai para a Cova da Moura”.

6. As referidas expressões eram audíveis e notórias, ocorreram várias vezes e de forma persistente.

7. As referidas expressões foram ouvidas pelo Delegado da FPF, que solicitou ao Coordenador de Segurança e ao Chefe da PSP para que tentassem acalmar os ânimos dos adeptos visitados, de modo a que terminassem as frases dirigidas àquele jogador, tendo os ânimos acalmado, mas as palavras dirigidas ao jogador no 7 da equipa visitante não cessaram e mantiveram-se até ao final do jogo;

8. O jogador no 7 da B…, SAD, J…, é de cor negra.

9. Os dirigentes da V…, SAD, tiveram conhecimento do sucedido no decorrer do jogo e, ainda assim, não afastaram o seu adepto que adotou a conduta mencionada no facto provado 5), nem adotaram qualquer medida que fizesse cessar aquela situação;

10. No final do jogo, o chefe da força policial informou o Delegado da FPF que o adepto autor daquelas expressões “preto vai para Cova da Moura filho da puta, corta o cabelo piolhoso” tinha sido identificado e que lhe seria levantado um auto.

11. A arguida V…, SAD, à data dos factos, época desportiva 2019/2020, e na competição em causa, apresentava averbada a prática de 1 (uma) infração disciplinar, prevista e sancionada pelo artigo 109º, nº 1, do RDFPF e, por referência à época desportiva 2018/2019, mostram-se averbadas a prática de 1 (uma) infração ao artigo 209º e 1 (uma) infração ao artigo 109º, nº 1, do RDFPF.


IV – Fundamentação De Direito:

- Das nulidades do Acórdão:

A Recorrente considera que o acórdão recorrido incorreu nas nulidades previstas nas alíneas b) e c) do art.º 379º do Código de Processo Penal.
O regime das nulidades previsto no CPP não é, no entanto, aplicável às nulidades imputáveis a um acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto.
O regime das nulidades aplicável é o que resulta do Código de Processo Civil (art.º 615º) por força dos art.ºs 61º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro e do art.º 1º do CPTA.
Tendo presente que as nulidades da sentença não são de conhecimento oficioso (cfr. v.g. Rui Pinto. Manual do Recurso Civil, volume I, AAFDL, 2020, pág. 77 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.1997 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.02.2018 (processos n.ºs 96B415 e 1806/17.7T8GMR-C.G1, ambos publicados em www.dgsi.pt)) mas que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, n.º 3 do CPC), cumpre, no entanto, indagar se a materialidade factual sobre a qual a Recorrente faz assentar a invocação de tais nulidades tem correspondência no regime processual que se julga aplicável (o artº. 615º do CPC).
A Recorrente fundamenta as nulidades do acórdão na violação do princípio do contraditório (previsto no art.º 34º, al. c) da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro) de acordo com o qual “em todas as fases do processo, é garantida a estrita observância do princípio do contraditório”. Considera que o Tribunal Arbitral do Desporto fundamentou a sua decisão com recurso a factos “novos” sem previamente a confrontar com os mesmos, de modo a que lhe fosse dada a oportunidade de se pronunciar.
Vejamos se tem razão.
O Pleno da Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina decidiu sancionar a Recorrente pela prática de uma infração disciplinar prevista e punida pelo art.º 62º, n.º 1 do RDFPF nos termos do qual “o clube que promova, consinta ou tolere qualquer tipo de conduta, escrita ou oral, que ofenda a dignidade de agente desportivo ou espectador em função da sua ascendência, género, raça, nacionalidade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, é sancionado com realização de 2 a 5 jogos à porta fechada e cumulativamente com multa entre 10 e 30 UC”.
Julgou, em suma, que a Recorrente consentiu e tolerou um ato racista porque logo que se ouviram determinadas expressões de teor racista, deveria ter reagido de imediato sendo que os dirigentes da SAD “nada fizeram, permaneceram inertes, aceitando passivamente a conduta do seu adepto, tomando perante a mesma a posição de meros espetadores, assim a tolerando. A SAD arguida adotou pois uma atitude omissiva perante a ocorrência dos factos, não tendo reagido de modo algum, designadamente mediante o contato direto e pessoal perante o adepto prevaricador, com vista a determinar que tal comportamento cessasse, o que podia e devia ter feito, assim tolerando aquela conduta do seu adepto. E essa tolerância apenas cessou no momento em que o Delegado da FPF os «obrigou» a agir (sendo aliás de acreditar, pelos elementos que emergem dos autos, que, se o mesmo o não tivesse feito, a sociedade anónima desportiva não teria tomado qualquer atitude.)” – Cfr. decisão do Conselho de Disciplina, ponto 57.
Confrontada com essa decisão e com os seus fundamentos, a Recorrente estruturou o seu recurso junto do TAD com base na mesma, refutando a concreta conduta omissiva que lhe foi imputada: a omissão de atos praticados durante o jogo.
Sucede que o acórdão do TAD (decisão recorrida) tendo reconhecido, em parte, a bondade das alegações da Recorrente (designadamente julgando que não lhe poderia ser assacada qualquer responsabilidade pela decisão de não proceder à expulsão do adepto (cfr. ponto 21.) julgou, sem qualquer expressão ao nível da fundamentação fáctica, que a Recorrente não adotou determinadas condutas designadamente ter iniciado e conduzido um processo disciplinar interno para sancionar o adepto em questão e que assim consentiu e tolerou o comportamento racista.
É verdade, portanto, que a Recorrente foi surpreendida com uma decisão cuja fundamentação assenta, ao menos em parte, em factos que não foram valorados pela decisão do Conselho de Disciplina, que não foram por si alegados no requerimento recursivo (dirigido ao TAD) e que nem sequer foram selecionados, não constando da fundamentação factual do acórdão (como provados ou não provados).
Com efeito, em face da motivação vertida no acórdão do Conselho de Disciplina, não era exigível à Recorrente que perspetivasse a fundamentação jurídica (e, em boa verdade, factual) que veio a ser adotada pelo TAD.
Um processo justo (art.º 20º, n.º 4 da CRP) não pode consentir que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões e com uma fundamentação que, razoavelmente não podiam prever e que não tiveram oportunidade de contrariar.
Por isso o princípio do contraditório é um dos princípios fundamentais do processo civil e também, especificamente, do processo arbitral, como decorre dos art.ºs 34º, al. c) e 61º da LTAD e 3º, n.º 3 do CPC.
Trata-se de um “direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo” que é hoje “entendido como corolário de uma conceção mais geral de contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., 2014, Coimbra, pág.7).
Nem se pode admitir, em concreto, qualquer postergação do princípio em causa (conforme admitido pelo n.º 3 do art.º 3º do CPC) porquanto está longe de ser manifesta a desnecessidade do seu cumprimento. Com efeito, conforme resulta da junção aos autos da decisão punitiva ora admitida, a Recorrente terá instaurado e promovido um procedimento disciplinar que culminou, efetivamente, com a punição do adepto em questão.
A violação do princípio do contraditório no momento em que profere a sentença é causa de nulidade da mesma nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC (excesso de pronúncia) (Nesse sentido v.g. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil. 6.ª ed. atualizada, Almedina, 2020, pág. 24 a 26 e Miguel Teixeira de Sousa, Jurisprudência 2020 (47) in Blog do IPCC https://blogippc.blogspot.com/2020/09/jurisprudencia-2020-47.html e os acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2020 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.03.2020 (processos 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, 6760/19.8T8GMR-A.G1, respetivamente, ambos publicados em www.dgsi.pt).
O acórdão recorrido é, portanto, nulo o que de julgará, devendo o Tribunal a quo, cumprir escrupulosamente o princípio do contraditório em relação a quaisquer factos que, julgando assumir relevância para a decisão da causa, não tenham sido tidos em conta na decisão do Conselho de Disciplina.
E não obstante não caiba no âmbito do presente recurso, porquanto não foi arguida, a apreciação da causa de nulidade vertida na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, deverá o Tribunal recorrido atender a que todos os factos que julgue relevantes (provados ou não provados) deverão ser descritos na fundamentação fáctica do acórdão sob pena de se poder incorrer, novamente, em nulidade decisória.
Verificada a nulidade do acórdão fica prejudicada a apreciação dos erros de julgamento que ao mesmo eram imputados.

As custas serão suportadas pela Recorrida, nos termos do art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em:
- admitir a junção de documento requerida com a apresentação do requerimento recursivo;
- conceder provimento ao recurso e, consequentemente, anular, por excesso de pronúncia, o acórdão recorrido;
- determinar que, após a baixa do processo ao TAD, seja proferido despacho a ordenar a notificação da Recorrente para se pronunciar sobre a instauração e desenvolvimento de processo disciplinar tendente à punição do sócio, autor da expressão racista em questão.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 31 de março de 2022



Catarina Vasconcelos
Rui Belfo Pereira
Dora Lucas Neto