Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:204/10.8BEPDL
Secção:CA
Data do Acordão:05/28/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:PAGAMENTO DE JUROS DE FATURAS DE EMPREITADA,
MODO DE CONTAGEM DOS JUROS,
ACORDO DAS PARTES
Sumário:I. Tendo as partes acordado no clausulado o contrato o escalonamento do pagamento da empreitada, em termos abrangentes, que incluem a revisão de preços, deve entender-se que pretenderam regular todo o regime do pagamento da empreitada, o que inclui os respetivos juros de mora.
II. Não faria sentido que as partes tivessem querido certas regras para a obrigação de capital, nos termos por si acordados no clausulado do contrato e quisessem regras diferentes para a obrigação de juros, por, não obstante a sua autonomia, a obrigação de juros é uma consequência da obrigação de capital.
III. Pelo que, é de aplicar à obrigação de juros as regras que pelas partes foram estipuladas para a obrigação de capital da empreitada, designadamente, em matéria de pagamento.
IV. De acordo com o acordado pelas partes, sempre que os valores em dívida – independentemente se respeitam a dívida de capital, de juros ou de revisão de preços da empreitada – ultrapassem a dotação de cada ano, esses valores têm necessariamente de transitar para o ano seguinte, por só no ano seguinte passarem a ser devidos, vencendo juros no prazo de 44 dias após 1 de janeiro do ano correspondente.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

A C................, SA, devidamente identificada nos autos, no âmbito da ação administrativa comum instaurada contra o Município do Nordeste, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, datada de 14/11/2011, que julgou a ação parcialmente procedente, condenando o Réu a pagar à Autora a quantia de € 50.426,64, no mais absolvendo do pedido, fundado no contrato de empreitada.

O Réu, Município do Nordeste, igualmente inconformado com a sentença recorrida, vem dela também interpor recurso.


*

Formula a Autora, aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões, que infra e na íntegra se reproduzem:

“1.º

O contrato de empreitada de obras públicas dos autos é omisso quanto ao pagamento de juros de mora, já que entre a recorrente e o recorrido foi apenas estipulado um regime de pagamento dos trabalhos com base anual, sem que com isso a recorrente tenha prescindido ou renunciado ao pagamento de juros de mora.

2.º

O cabimento orçamental referido no contrato de empreitada junto aos autos refere-se somente ao pagamento repartido do capital (“pagamento dos trabalhos”) e não ao pagamento de juros de mora.

3.º

Significa isso que, estando, como está, excluída da previsão contratual o pagamento de juros de mora, ficam esse pagamento sujeito aos termos legalmente estabelecidos, até porque no texto do próprio contrato dos autos as partes acordaram que, nos casos omissos, se aplicaria a lei, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março.

4.º

Resulta directamente da lei para a qual o contrato remete que se as facturas forem liquidadas extemporaneamente, isto é, após o decurso do prazo de vencimento (que é de 44 dias) fixado no artigo 212.º, do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, serão abonados ao empreiteiro os juros de mora.

5.º

O Tribunal a quo violou, assim, o artigo 212.º, do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, que deveria ter sido aplicado nestes autos no sentido de que serão abonados os juros de mora pelo atraso no pagamento 44 dias após a data de vencimento de cada factura, já que no contrato dos autos as partes acordaram apenas um plafonamento quanto ao pagamento de capital e não quanto ao pagamento de juros, no valor de €.365.858,16

6.º

Sem prescindir, e para o caso de assim não se entender, mesmo que se acompanhe o raciocínio do Tribunal a quo, o certo é que se tem de considerar que sempre que os valores ultrapassarem a dotação do ano, têm necessariamente de transitar para o ano seguinte, por só aí passarem a ser devidos, pelo que vencem juros de mora no prazo de 44 dias após 1 de Janeiro do ano correspondente.

7.º

Significa isso que, mesmo acompanhando o raciocínio do Tribunal a quo, os juros que o recorrido deve ao recorrente totalizam a quantia de €.129.175,00, conforme melhor consta do quadro constante destas alegações, onde se reparte o valor dos autos n.º 6, 11 e 16 e se contabilizam 44 dias contados desde 1 Janeiro do ano correspondente, porque o valor acumulado ultrapassa a dotação para cada ano.

8.º

Ora, na fundamentação da sentença, o Tribunal a quo seguiu uma determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidiu noutro sentido.

9.º

Neste caso, impunha-se que o Tribunal a quo, ao pugnar pela interpretação extensiva da al. c), do n.º 1, do artigo 212.º, do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, que considerasse que, ao serem ultrapassados a dotação daquele ano, necessariamente transitam para o ano seguinte, por só ai passarem a ser devidos, pelo que vencem juros de mora no prazo de 44 dias após 1 de Janeiro do ano correspondente.

10.º

Assim se demonstra, mais uma vez, que o Tribunal a quo violou o artigo 212.º, do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março.

11.º

Qualquer decisão diferente da peticionada e constante das alegações supra n.º 5 implica, necessariamente, a violação de uma norma imperativa, anti-abuso do poder público, constante do artigo 212.º do Decreto-Lei de 2 de Março.”.

Pede a revogação e a substituição da sentença por outra que condene o Réu a pagar à Autora a quantia de € 365.858,16, por serem devidos ao empreiteiro juros de mora pelo atraso no pagamento de 44 dias após a data de vencimento de cada fatura e, caso assim não se entenda, deve o Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia de € 129.175,00 porque, sempre que se ultrapasse a dotação do ano, tem de transitar para o ano seguinte, vencendo juros de mora no prazo de 44 dias após 1 de janeiro do ano correspondente.


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O Réu, ora Recorrente, no recurso interposto, formulou as seguintes conclusões, que infra se transcrevem:

1. O presente recurso está circunscrito apenas ao método de cálculo dos juros devidos nos anos de 2002 e 2003, utilizado pelo Tribunal a quo.

2. Em 2002, o R deveria ter pago ao A o valor de 948.000,00€, quando apenas pagou 473.290, 54€, pelo que há um valor de 474. 709.46€ que não foi pago.

3. Em 2002 e 2003, o R deveria ter pago ao A o valor de 2.038.000,00€, quando apenas pagou 2.034.758, 01€, pelo que há um valor de 3.241.99€ que não foi pago.

4. Os juros devidos pelo R ao A, quanto ao valor de 474.709.46€ devem ser calculados a partir de 44 dias após 31 de Dezembro de 2002 e quanto ao valor de 3.241.99€, a partir de 44 dias após 31 de Dezembro de 2003.

5. Os juros de mora são calculados de acordo com as seguintes taxas: entre 14 de Fevereiro de 2003 e 17 de Fevereiro de 2003 - Taxa de 2,75% (Comunicado do BCE de 05 de Dezembro de 2002); entre 18 de Fevereiro de 2003 e 24 de Março de 2003 - Taxa de 12% (Decreto-Lei nº 30/2003, de 17 de Fevereiro); restantes períodos - Taxa de 12%

6. Tudo por referência ao disposto no artigo 213º do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março.

7. Os montantes pagos pelo R ao A durante os anos de 2002 e 2003 devem ser imputados, na dívida vencida, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 784º do Código Civil.

8. Pelo que, fazendo essa imputação, os juros devidos pelo R ao A são de 11.590.92€, considerando os prazos e montantes de pagamentos efectuados, como resulta dos factos assentes.

9. A douta sentença recorrida deve, assim, ser revogada e substituída por outra que apenas condene o R ao pagamento ao A do valor de 11.590.92€.”.


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O Réu, Município do Nordeste, ora Recorrido, contra-alegou o recurso interposto pela Autora, tendo assim concluído:

“1. O contrato celebrado entre A e R em 31 de Julho de 2002 é um contrato de empreitada de obras públicas, submetido à disciplina do Decreto-Lei n° 59/99, de 2 de Março (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas - RJEOP), em vigor à data da sua celebração, com a natureza de contrato administrativo.

2. Os juros de mora constituem uma obrigação acessória do contrato de empreitada celebrado.

3. Por recurso à alínea c) do nº 1 do artigo 212º do RJEOP, numa interpretação extensiva, relativa à decisão dos acertos, A e R acordaram o montante e prazo dos pagamentos a efectuar no âmbito do contrato de empreitada, compreendendo o preço e as suas eventuais revisões.

4. Deste modo, estabeleceram um modo de pagamento "plafonado", a que ambos, livre e contratualmente, se vincularam.

5. O regime legal de contagem de juros a partir dos 44 dias, não sendo afastado pelas partes, apenas seria aplicável a partir das datas em que os "acertos sejam decididos, cf. alínea e) do n° 1do artigo 212°.

6. Tal como as partes contrataram, os 44 dias contar-se-iam do dia 31 de Dezembro de cada uma dos quatro anos em causa: 2002, 2003, 2004 e 2005, pelo que os juros de mora devidos são contados a partir de cada uma daquelas datas.

7. As relações contratuais entre A e R devem ser interpretadas à luz da força vinculativa dos contratos, como resulta do nº 1do artigo 406º do Código Civil, que se projecta nos contratos administrativos.

8. De acordo com esta disposição, os contratos devem ser pontualmente cumpridos.

9. A estabilidade do contrato administrativo celebrado entre A e R compreende a sua irretratabilidade e irrevogabilidade.

10. A conduta do A, ora recorrente configura, um "venire contra factum suum" ou "proprium", ou abuso de Direito, cf. o artigo 334º do Código Civil que, em Direito Administrativo, "se reconduz a violação do princípio da boa-fé, no seu subprincípio da primazia da materialidade subjacente, também aplicável a particulares co­ contraentes da Administração Pública stricto sensu" (Marcelo Rebelo de Sousa).

11. Que não merece tutela ou protecção jurídica.

12. O A celebrou livremente o contrato, retirou dele vantagem económica, vindo agora invocar a ilegalidade ou invalidade de disposições do contrato que aceitou na data da sua celebração

13. Pelo que improcedem as razões de Direito invocadas pelo A, ora recorrente.

14. Devendo, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida, com a excepção do método de cálculo dos juros de mora utilizado, objecto de recurso, em tempo interposto pelo R.”.


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A Autora, ora Recorrida, contra-alegou o recurso interposto pelo Réu, formulando as seguintes conclusões:

“1.º

O raciocínio a desenvolver no cálculo dos juros de mora não é o alegado pelo recorrente, já que, não obstante terem sido estabelecidos limites para os montantes a pagar nos anos de 2002 a 2005, o certo é que o contrato de empreitada de obras públicas dos autos nada prevê relativamente ao pagamento de juros de mora.

2.º

Entre as partes foi estipulado um regime de pagamento dos trabalhos, sem que a ora recorrida tenha prescindido ou renunciado ao paga mento de juros de mora devidos pelo facto de as facturas não terem sido pagas pelo recorrido no prazo de 44 dias estatuído no artigo 212.º do Decreto-Lei n.º 59/ 99, de 2 de Março.

3.º

Na omissão do contrato, e ainda que interpretada como norma supletiva (sendo que é inexoravelmente imperativa), se aplica a lei, ao caso o disposto no artigo 212.º do Decreto-Lei n.º 59/ 99, de 2 de Março.

4.º

Tendo as facturas sido pagas, como foram, para além do referido prazo de 44 dias, decorre directamente da lei que serão abonados ao empreiteiro os respectivos juros de mora, peticionados pela ora recorrida na presente acção.

5.º

Os respectivos pagamentos efectuados pelo recorrente à ora recorrida fazem cessar a mora e, como tal, nessa data termina a contagem do período de juros que se iniciou a partir do quadragésimo quarto dia após a emissão da respectiva factura.

6.º

Logo, devem ser abonados os juros de mora pelo atraso no pagamento 44 dias após a data de vencimento de cada factura, já que no contrato dos autos as partes acordaram apenas um plafonamento quanto ao pagamento de capital e não quanto ao pagamento de juros, no valor de €.365.858,16

7.º

Com esse raciocínio, e não com o expendido pelo recorrente Município do Nordeste nas suas alegações, é que não era violado, como foi o artigo 212.º, do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/ 99, de 2 de Março.”.

Pede que o recurso interposto pelo Réu seja julgado improcedente e a sentença seja revogada e substituída por outra que condene o Recorrido a pagar à Recorrente a quantia de € 365.858,16, por serem devidos juros de mora ao empreiteiro, pelo atraso no pagamento de 44 dias após a data de vencimento de cada fatura.


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Notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não foi emitido parecer.

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O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pelos Recorrentes, sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

Segundo as conclusões de ambos os recursos, a questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento de direito quanto à forma de cálculo dos juros de mora devidos, por violação do artigo 212.º do regime jurídico das empreitadas de obras públicas, aprovado pelo D.L. n.º 59/99, de 02/03, quanto ao abono dos juros de mora pelo atraso no pagamento de 44 dias após a data de vencimento de cada fatura ou, a considerar-se que sempre que os valores ultrapassem a dotação do ano, têm necessariamente de transitar para o ano seguinte.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“O R. adjudicou à A., por contrato celebrado em 31 de Julho de 2002, a execução da empreitada de "Reparação e Ampliação da Escola Básica Integrada de Nordeste", a realizar por preço global, sendo o pagamento de trabalhos, incluindo revisão de preços, efectuado mediante a apresentação de autos de medição dos trabalhos executados.

Durante a execução do contrato de empreitada, a A. facturou ao R., na qualidade de dono da obra, os trabalhos executados, mediante a apresentação dos respectivos os autos de medição, dos autos de revisão de preços e dos autos de trabalhos a mais.

Os autos de medição, os autos de revisão de preços e os autos de trabalhos a mais, acompanhados das respectivas facturas, foram, todos eles, aceites e pagos à A. pelo R.

Os números das facturas, os autos de medição a que correspondem, as datas de sua emissão, as suas importâncias e as datas de pagamento são as constantes do gráfico constante de fls 5 dos autos.

Várias vezes os representantes da autora interpelaram o réu para pagar os juros, não tendo havido consenso quanto ao seu montante, embora os representantes da Câmara do réu sempre tenham admitido a existência de tal dívida.

Em reunião havida no dia 24 de Agosto de 2007, entre os representantes da autora e técnicos do réu, foi feito o cálculo dos montantes dos juros em dívida - 147.954,58 € -, de acordo com os critérios referidos na informação constante em cópia no documento nº 45 junto com a petição inicial.

Em 10 de Dezembro desse mesmo ano de 2007, a autora recebeu do Presidente Câmara Municipal Nordeste, representante do ora réu, o ofício n.º 3365, relativo à "Escola EB 2.3/S Nordeste - Pagamento de Juros de Mora", com a informação de que "na sequência de reunião com o Excelentíssimo Senhor Vice-presidente e após informação deste sobre aquela, comunico que a dívida à C................ (Açores), S.A., será paga após a aprovação do orçamento. Assim, solicito que aguardem a execução do orçamento de 2008, sem o qual o Município não pode por Lei proceder ao pagamento".”.


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Nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do CPC, adita-se neste Tribunal ad quem o seguinte facto com relevo para a decisão a proferir:

A) No contrato de empreitada celebrado entre o Réu e a Autora, referente à "Reparação e Ampliação da Escola Básica Integrada de Nordeste", consta que o preço da empreitada é de € 4.364.379,93, acrescido de IVA no valor de € 174.575,20, o que perfaz o valor global de € 4.538.955,13, sendo o pagamento, incluindo a revisão de preços, efetuado mediante a apresentação de autos de medição dos trabalhos executados, sendo repartido da seguinte forma:

a) Ano de 2002 – até ao montante de € 948.000,00;

b) Ano de 2003 – até ao montante de € 1.093.000,00;

c) Ano de 2004 – até ao montante de € 1.000.000,00;

d) Ano de 2005 – até ao montante de € 1.511.000,00 – cfr. doc. de fls. 10-13 dos autos.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada e a ora aditada, importa, agora, entrar na análise do fundamento de ambos os recursos jurisdicionais, visto ser a mesma a questão fundamental de direito controvertida.

Erro de julgamento de direito, quanto à forma de cálculo dos juros de mora devidos, por violação do artigo 212.º do regime jurídico das empreitadas de obras públicas, aprovado pelo D.L. n.º 59/99, de 02/03, quanto ao abono dos juros de mora pelo atraso no pagamento de 44 dias após a data de vencimento de cada fatura ou, a considerar-se que sempre que os valores ultrapassem a dotação do ano, têm necessariamente de transitar para o ano seguinte

O presentes recursos incidem sobre a mesma questão fundamental de direito, respeitante ao modo de cálculo de juros de mora decorrentes do atraso de pagamento da dívida da empreitada e, consequentemente, à interpretação do disposto no artigo 212.º do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, aprovado pelo D.L. n.º 59/99, de 02/03, na redação em vigor à data dos factos.

Antes, porém, impõe-se a análise dos factos relevantes da causa.

Importa considerar que a factualidade provada na sentença recorrida não foi impugnada por qualquer dos Recorrentes, pelo que será com base na concreta factualidade assente que se procederá à aplicação do direito.

Nos termos da factualidade ora aditada, decorre que as partes outorgantes do contrato de empreitada regularam, em particular, o escalonamento do pagamento da empreitada, estipulando quantitativos anuais diferenciados, que não deviam ser excedidos em cada ano.

Segundo o acordado entre as partes existiu uma regulação sobre os termos em que deve ocorrer o pagamento da empreitada, incluindo a revisão de preços.

Não existiu uma regulação expressa quanto ao pagamento dos juros, mas que deve ser entendido como estando também incluído no acordo das partes, por os juros legais serem legalmente devidos e integrarem o pagamento da empreitada.

Da cláusula contratual acordada entre as partes ressalta a finalidade de incluir todas as quantias devidas a título de pagamento da empreitada no citado escalonamento anual de pagamentos.

Será essa a interpretação que melhor corresponde ao elemento literal do acordado e também à finalidade teleológica, considerando: (i) a referência genérica ao pagamento da empreitada; (ii) a inclusão da revisão de preços e (iii) a falta de exclusão de qualquer matéria incluída no pagamento devido da empreitada.

Assim, não só se denota a intenção de regulação abrangente do pagamento da empreitada, como não existiu a ressalva de qualquer matéria, como a referente aos juros.

Por conseguinte, aplica-se à obrigação de pagamento de juros, designadamente, em matéria de vencimento e respetivo pagamento, as mesmas regras que se aplicam à obrigação de pagamento da dívida de capital da empreitada.

Não faria sentido que as partes tivessem querido certas regras para a obrigação de capital, nos termos por si acordados no clausulado do contrato e quisessem regras diferentes para a obrigação de juros, tanto mais que, não obstante a sua autonomia, a obrigação de juros é uma consequência da obrigação de capital.

Pelo que, é de aplicar à obrigação de juros as regras que pelas partes foram estipuladas para a obrigação de capital da empreitada, designadamente, em matéria de pagamento.

Assim, não assiste razão à Autora, ora Recorrente, quanto ao aduzido nas conclusões 1.º a 5.º do seu respetivo recurso, porque ao contrário do defendido, é de entender que o pagamento de juros de mora está incluído na regulação do contrato, a respeito do acordado escalonamento do pagamento da dívida da empreitada.

Tal acordo, porém, não implica qualquer renúncia da Autora ao direito aos juros de mora, pois apenas releva em sede de contagem do prazo dos juros.

Daí que não seja de aplicar subsidiariamente o disposto no artigo 212.º do RJEOP, por não existir uma omissão de regulação pelas partes.

No demais, assiste razão à Autora, ora Recorrente, porque de acordo com o acordado pelas partes, segundo a factualidade ora aditada por este tribunal de recurso, sempre que os valores em dívida – independentemente se respeitam a dívida de capital, de juros ou de revisão de preços da empreitada – ultrapassem a dotação de cada ano, esses valores têm necessariamente de transitar para o ano seguinte, por só no ano seguinte passarem a ser devidos, vencendo juros no prazo de 44 dias após 1 de janeiro do ano correspondente.

Este é o entendimento que subjaz à factualidade dada como provada na sentença recorrida, nos termos do clausulado do contrato.

Assim, qualquer valor que diga respeito ao pagamento da empreitada, segue a citada regra acordada pelas partes.

Por isso, também decorre da factualidade apurada que na reunião realizada em 24/08/2007, entre os representantes da Autora e os técnicos do Réu, foi feito o cálculo dos montantes dos juros em dívida, segundo os termos da informação elaborada pelos serviços do Réu, a que se refere o documento 45, junto com a petição inicial, a fls. 87-88 dos autos, anuindo quanto aos respetivos de juros de mora serem devidos à Autora.

Por conseguinte, tem a Autora, ora Recorrente, o direito a ser ressarcida dos juros de mora, calculados segundo as prescrições ora fixadas, com a consequente condenação do Réu ao respetivo pagamento.

No entanto, quer por o julgamento da matéria de facto da sentença recorrida não incluir os factos pertinentes à liquidação da quantia de juros em dívida, quer por o mapa apresentado pela Autora, ora Recorrente, no presente recurso ser diferente do que fora apresentado na petição inicial, não existem elementos suficientes nos autos para que se proceda à respetiva liquidação da quantia de juros em dívida.

Nestes termos, procedem, por provadas, as conclusões 6.º a 9.º do recurso da Autora, ora Recorrente, salvo no tocante ao respetivo quantitativo da quantia em dívida, que, por ausência de elementos, ora não se consegue quantificar, remetendo para liquidação de sentença.

O que implica a procedência parcial do recurso interposto pela Autora, ora Recorrente.


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Em consequência do exposto, falecem os pressupostos em que o Réu sustenta o seu recurso, tanto mais, por suportar o recurso em factos que não constam do elenco do julgamento da matéria de facto assente.

Como supra referido, nenhum dos Recorrentes impugnou o julgamento da matéria de facto constante da sentença recorrida, sendo com base nele que este Tribunal de recurso aprecia os fundamentos dos recursos interpostos.

Por isso, também o Réu apresenta no presente recurso, um quadro relativamente ao cálculo de juros que não tem tradução no julgamento da matéria de facto assente.

Em consequência, não pode proceder o recurso apresentado pelo Réu, por se basear em pressupostos de facto e de direito contrários aos que resultam da matéria de facto provada e segundo a interpretação e aplicação dos normativos aplicáveis ao contrato de empreitada em questão, nos termos supra expendidos.

O que acarreta a improcedência do recurso apresentado pelo Réu, ora Recorrente, por não provado.


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Em suma, nos termos e com as razões de facto e de direito supra expostas, será de conceder parcial provimento ao recurso da Autora e de negar provimento ao recurso do Réu.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Tendo as partes acordado no clausulado o contrato o escalonamento do pagamento da empreitada, em termos abrangentes, que incluem a revisão de preços, deve entender-se que pretenderam regular todo o regime do pagamento da empreitada, o que inclui os respetivos juros de mora.

II. Não faria sentido que as partes tivessem querido certas regras para a obrigação de capital, nos termos por si acordados no clausulado do contrato e quisessem regras diferentes para a obrigação de juros, por, não obstante a sua autonomia, a obrigação de juros é uma consequência da obrigação de capital.

III. Pelo que, é de aplicar à obrigação de juros as regras que pelas partes foram estipuladas para a obrigação de capital da empreitada, designadamente, em matéria de pagamento.

IV. De acordo com o acordado pelas partes, sempre que os valores em dívida – independentemente se respeitam a dívida de capital, de juros ou de revisão de preços da empreitada – ultrapassem a dotação de cada ano, esses valores têm necessariamente de transitar para o ano seguinte, por só no ano seguinte passarem a ser devidos, vencendo juros no prazo de 44 dias após 1 de janeiro do ano correspondente.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em:

1. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Autora, em revogar a sentença recorrida e, em substituição, julgar a ação parcialmente procedente, condenando o Réu a pagar à Autora os juros de mora da empreitada, calculando os valores em dívida segundo a regra estipulada de que, sempre que ultrapassem a dotação de cada ano, esses valores têm necessariamente de transitar para o ano seguinte, por só no ano seguinte passarem a ser devidos, vencendo juros no prazo de 44 dias após 1 de janeiro do ano correspondente, a liquidar em execução de sentença;

2. Negar provimento ao recurso interposto pelo Réu, por não provado.

Custas por ambos os Recorrentes, na proporção do respetivo decaimento, fixando em 1/3 das custas a cargo da Autora e 2/3 a cargo do Réu.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Pedro Marchão Marques)

(Alda Nunes)